Evandro Valentim de Melo é escritor brasiliense.
Como você começa o seu dia?
Quem me dera poder responder a essa questão falando, exclusivamente, sobre literatura… infelizmente, não é minha atividade principal. Adentrei ‘nessa vida’ por prazer (e teimosia). De segunda a sexta-feira, há tempos, começo o dia levando minha filha (hoje com 14 anos) à escola e, em seguida, dirijo-me ao trabalho. Sou empregado público de uma empresa do Governo do Distrito Federal. Cabe registrar, contudo, que não foram poucas as vezes em que as conversas com minha filha e/ou acontecimentos na dimensão laboral me inspiraram contos, crônicas e microcontos. Ainda que minha produção literária não seja acadêmica, dessa época, quando cursava o mestrado, guardei uma observação de meu orientador. Nunca soube se foi elogio ou constatação de que meu estilo não combinava com o jeitão da academia. Ele disse mais ou menos assim: “você escreve como vê a vida, narrativamente”. Elogio ou crítica, ele acertou em cheio. Tudo o que vejo é matéria prima para meus escritos.
Você tem uma rotina matinal?
Posso dizer que sim. Ligo meu radar assim que desperto. A tudo observo, a fim de obter, como dito acima, matéria prima para a criação literária. Faço isso 100% do meu tempo. Essa é a minha rotina matinal, vespertina, noturna e até mesmo no mundo onírico de Morfeu.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor?
Responder a essa pergunta requer explicação prévia. Sou oriundo de uma grande família, pai, mãe, sete irmãs e cinco irmãos (quinze no total). Forjei meu jeito de ser em meio ao caos. Era preciso ‘sobreviver’, entendendo-se como tal, conseguir concentração para as tarefas escolares, pesquisas (sem internet), leituras, assistir TV… Dito isso, não há período do dia em que eu ache que é melhor para produzir literatura. Qualquer ‘janela’ de oportunidade que me surja, quando em casa, lá estarei criando histórias.
Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sim. Acontece nos minutos imediatamente anteriores ao desejo de escrever. Cerco-me de fiéis companheiros: um dicionário de sinônimos e antônimos; um dicionário tradicional, de significados das palavras; um dicionário de ideias afins (raridade que guardo com muito zelo); e um dicionário léxico. Equipe da melhor qualidade. Com essas obras ao alcance das mãos e o notebook ligado, sento-me em minha poltrona especialmente designada para esse fim e deixo a imaginação fluir.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados?
Normalmente, escrevo todos os dias. Quando isso não ocorre, quaisquer que sejam os motivos, sinto como se o dia ficasse incompleto, capenga, claudicante.
Você tem uma meta de escrita diária?
Fujo de metas quando se trata de literatura. Minha relação com ela é de total e puro prazer. Escrevo por gostar. Assim, nada de prazos, pressão, agonia… com essa realidade, eu já convivo na dimensão laboral. E basta!
Como é o seu processo de escrita?
Contemplo a vida, como dito, narrativamente. Não há um só momento em que eu não esteja prospectando oportunidades em busca de matéria prima para meus escritos. Quaisquer eventos são ‘arquivados’ na memória ou anotados em um bloco de notas que me acompanha. Tão logo quanto possível, salvo as memórias e anotações em uma pasta, no computador, nominada “Ideias para futuras criações”. Ao me acomodar em minha poltrona e acessar essa pasta, mergulho em meu processo criativo. Avanço até onde puder. Às vezes, simultaneamente, em mais de uma ideia arquivada.
Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar?
Ao contrário. Com as leituras prévias, anotações de suporte, o difícil é adiar o início.
Como você se move da pesquisa para a escrita?
Com muita leveza. O processo criativo flui com naturalidade da pesquisa à escrita. Minha dificuldade é a escolha do título de minhas criações. Demoro muito mais nisso. Aproveito a deixa para externar minha admiração à competência dos escritores (e compositores) que conseguem sintetizar em palavra única o título de suas criações. Dificilmente consigo tal proeza.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Convivi com essa ‘trava’ na elaboração de minha dissertação de mestrado. E sou capaz de apostar as minhas fichas, que esse problema decorreu da dificuldade de conciliar o estilo de minha forma de escrever com as exigências acadêmicas. Elaborar a dissertação foi a experiência mais difícil que conheci até hoje (refiro-me à criação literária). Lá havia prazos, requisitos metodológicos, banca examinadora, receio de não corresponder, ansiedade… Fase complexa, complicada, mas que, felizmente, me foi possível superar. Experiência marcante.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos?
Textos prontos e acabados? Isso existe? Quaisquer textos meus, de qualquer época, quando os releio, sinto comichão para acrescentar, excluir ou alterar seu conteúdo. Voltando aos concursos literários, no momento em que imprimo um texto para enviá-lo pelo correio ou o envio eletronicamente, o faço para que nos libertemos um do outro, do contrário sempre encontrarei razões, todas justificáveis, para modificá-lo.
Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Apenas quando se trata do trabalho prévio à publicação de livros, nesse caso é imperioso fazê-lo. Do contrário, não. Há alguns anos, ouvi uma entrevista de Herbert Vianna, d’Os Paralamas do Sucesso. O repórter que o entrevistava, abordou temas como a longevidade da banda, a motivação para continuar compondo, o estilo musical prevalente na programação das emissoras de rádio etc. Herbert Vianna comentou que os integrantes d’Os Paralamas eram, antes de tudo, amigos. Ainda que a mídia não mais veiculasse as canções deles como nos anos 1980, o prazer em estarem juntos e de tocarem as composições autorais eram suficientes para que se sentissem felizes. Meus textos, quando eu os crio, têm efeito similar. Vê-los no ponto de alçarem voo é algo muito prazeroso. Claro, gosto enormemente quando são selecionados, premiados, publicados, apreciados, mas se nada disso ocorrer, a satisfação de ter dado vida a eles supera o que lhes acontece depois do parto. Assim sendo, não sinto necessidade de mostrá-los previamente.
Como é sua relação com a tecnologia?
Em aprendizado. Escrevo utilizando o Word e o nível de domínio que possuo nessa ferramenta atende às minhas necessidades. Seria muito vantajoso para mim se eu resolvesse aprender a “desenhar eletronicamente”, utilizando recursos tecnológicos existentes para isso. Sou um desenhista até razoável (com lápis e papel), prova disso são as ilustrações de meus três livros infantis/ambientais (2016, 2017 e 2018), nos quais divido a autoria com um menino, o Paulo Sérgio, que, em outubro de 2018, completará 11 anos de idade. Ambos escrevemos e ilustramos as histórias desses livros que, claro, no momento da edição receberam o toque mágico da editora. Falta-me priorizar tempo para aprender a usar esse recurso. Mas a decisão de priorizar é só minha. Não terceirizo a culpa por não fazê-lo.
Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Diretamente no computador. Os escritos manuais, quando ocorrem, são curtos e registrados no bloco de notas que me acompanha. À exceção disso, dificilmente escrevo à mão. O curioso é que, nos anos iniciais de minha vida estudantil, meus cadernos viviam em exposição na escola. Minha caligrafia e organização motivavam elogios constantes das professoras. Apesar desse passado glorioso (minha mãe adorava ir às reuniões na escola para ouvir esses elogios), a agilidade propiciada pelo computador favorece as alterações ao longo da criação dos textos. E como eles nunca estão acabados, os recursos e facilidades computacionais ajudam enormemente as correções e ajustes.
De onde vêm suas ideias?
De minhas muitas leituras e da observação do cotidiano. São inúmeras as criações derivadas de episódios que presenciei ou que me contaram. É surpreendente o poder de nossa mente de criar relações entre as experiências e transformá-las em algo novo! Há quem chame isso criatividade. Sei é que esses ingredientes misturados geram sempre novos textos.
Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Escuta ativa e interessada e ler, ler, ler, ler e ler.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos?
A satisfação decorrente dos textos selecionados/premiados quando de minhas participações em concursos literários deu-me segurança. Os resultados alcançados me sinalizam positivamente quanto ao que produzo. De uns tempos pra cá, confirmei que pesquisa em temas de interesse pessoal ou aqueles escolhidos por organizadores dos concursos literários dão lastro ao que escrevo. Adotei esse procedimento como prática corriqueira.
O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Persista. Você nem imagina o tanto que escrever lhe proporcionará momentos alegres em sua vida.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou?
Dada a minha predileção por crônicas, contos e microcontos (não necessariamente nesta ordem) tenho adiado “sine die” a tentativa de escrever um romance. Mas, de forma alguma, sofro com isso. Apesar de haver lido dezenas deles, atualmente preciso superar certa resistência a tal categoria. Alguns que, por deferência a autores e autoras, não revelarei título nem quem os escreveu, me parecem com excessiva quantidade de páginas, que bem poderiam ser suprimidas, sem prejuízo à obra. Adiciono que são tantos livros à espera de leitura, que ao comparar a lombada de um romance de 500, 600 páginas com livros de contos e/ou crônicas, com suas histórias curtas mas cheias de conteúdo, acabo optando pelos de leitura mais ágil. Creio que o conjunto dessas variáveis sobre a categoria ‘romance’ esteja, de certa forma, desempenhando papel de barreiras a superar para um começar a ser delineado.
Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Lá nos tempos idos de minha adolescência, ao ler 1984 fiquei muito impressionado, com a visão de George Orwell, que o escreveu 35 anos antes do ano que deu título à obra. O livro, portanto, tratava de uma visão de futuro. Analogamente a essa situação gostaria de ler um livro “nostradâmico”, que previsse o Brasil, daqui a 35 anos com uma realidade bem diversa da atual. Diferente para melhor. Explico: leio os comentários de vídeos disponibilizados nas redes sociais sobre como são as pessoas, os costumes, o funcionamento em países como Japão, Noruega, entre outros. Os comentários são sempre enaltecedores àqueles países e denegridores ao compará-los com o nosso país. Contudo, não é incomum verificar alguns brasileiros, que tanto elogiam a cultura e os hábitos dos de lá, agindo como os de cá, reproduzindo comportamentos que eles próprios (os autores dos comentários) condenam. O livro futurista que gostaria de ler descreveria o Brasil em outro patamar de qualidade de vida, de caráter, de educação… E que tal estágio fosse realidade concreta, pelo menos daqui a 30 anos. Parece pessimismo? Talvez. E essa sensação me propiciou escrever um conto intitulado “Comportamentos invernais”, selecionado para a antologia “Eterno Inverno”, dedicado à estação. Para quem se interessar e quiser ler, o download é gratuito. Basta acessar este link.