Estêvão Machado é escritor, autor de Perspectivas da Escarpa (Patuá, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo pouco, mas durmo bem. Tenho mudado um pouco o meu hábito de dormir pela madrugada depois do nascimento de Bento, meu filho. De tal forma que tenho redescoberto a manhã ao dormir mais cedo. Eu acho bacana ir criando hábitos que se alteram. Ao criar os hábitos, vamos criando nosso futuro. Não o criamos certamente, mas criamos os hábitos que o habitará.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu tenho uma tendência notívaga, de ficar até tarde lendo, ouvindo música, tocando, vendo filme… Ocupando a madrugada. Então escrever sempre esteve nesse rol de atividades noturnas. Mas tenho percebido que acordar mais cedo tem me feito “trabalhar melhor”. Então digamos que estou numa fase de transição de hábitos; fico entre me concentrar nas novas produtividades e me manter fiel ao diálogo com as corujas. E quando fico mais produtivo, fico mais atento ao que estou fazendo. Produtividade não está relacionada com a análise corporativa de aferir quantidade de trabalho, mas muito mais com uma capacidade de: se concentrar no que me proponho a fazer de forma libertária; se revisar e revisitar outros caminhos estéticos para aquilo que está nascendo, no papel ou na tela do computador. E quase sempre isso está pouco relacionado ao número de linhas ou quantidade de verbetes. Eu acho que um bom ritual pra mim, é não ter ritual rsrsrs. Eu prefiro me dedicar, antes de cada processo de escrita, a uma pesquisa ou apontamentos de conteúdos que acesso e que estejam dentro do rol de assuntos que eu queira abordar. Revisito essas anotações, sem me prender a elas, mas me servem de norte, de guia, de rumo…
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Ao escrever meu livro, Perspectivas da Escarpa (Patuá, 2021), apesar de ser um livro de poesia, o que pra muitos já sugere uma ausência de hábitos fixos em favor de uma desejada espontaneidade, eu quis trazer uma rotina para concretizá-lo. Poucos poemas estavam prontos, e os pus na mesa para retrabalhá-los. Grande parte do livro eu escrevi no decorrer de 2020, em plena pandemia. Dentro de um horizonte cerceado do desejado trânsito livre, a metáfora da escarpa coube não só para a temática do livro – um eu lírico que se vê cativo às suas memórias e vivências, e distante no tempo e no espaço a sua cidade e ao seu povo – como também para mim, que estava reservado na minha escarpa/casa. Desde o término dele, tenho procurado criar uma rotina diária de escrita, não necessariamente com metas, mas na manutenção diária do hábito, do exercício de escrever. Vejo como mais importante do que ter metas em si, é construir uma vivência sobre os assuntos que estou escrevendo. Ou até mesmo os que estão no meu campo de visão para começar a trabalhar. Então, manter no meu radar a escrita sobre assuntos do meu interesse contribui naquilo que concretizamos e chamamos de “texto final”, “versão final” – não gosto desse nome, parece que não vai ter mais texto! rsrsr… Eu chamo de “versão pro prelo”, pronta pra rodar na gráfica! Estou com um livro de contos encaminhado, de maneira que esse exercício diário também tem essa finalidade de caminhar esse novo projeto.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Existem persistências da vida que recaem sobre o cotidiano… e não pensamos em outra coisa a não ser na nossa relação com elas. São as memórias da infância, as transformações da vida, episódios que nos chocam, fatos outros que se desdobram em impactos pessoais…E tudo isso, além da observação e diálogo com o mundo, nos conduz a algum tipo de espaço de poesia. Digo isso, por que há poesia em qualquer arte. Observar e sintetizar é uma característica do fazer poético. E vejo que ela existe em qualquer campo de criação. O poema é o fruto mais puro e parcimonioso disso… E acho que é a partir do reconhecimento e aceitação desse espaço poético próprio, que a escrita se desenvolve para mim. Há sem dúvida, o instrumento da pesquisa, do estruturar mesmo sem muito regramento, o que quero escrever. Não tenho muita ansiedade em determinar exatamente qual o “caminho” daquela pesquisa. Se eu vou deliberar um livro de poemas, ou um de contos, ou se vou estruturar um romance. Esse movimento da pesquisa é gradual, muita coisa é considerada, outras são consideradas em outros momentos. O importante é criar algum tipo de “fichamento” para você ter uma rápida noção do que foi pesquisado e que de fato colabore com os insights para escrita.
O que há mesmo, na prática dos anseios, é um equilíbrio entre o que eu quero dizer e o que tenho em mãos como ferramentas para trabalhar. Dar início a isso, não é difícil. Até por que retomo e refaço algumas vezes o texto, o que de certa forma traz vários (re)começos. É sempre mais complicado se resolver com as interrupções ou possíveis bloqueios. Nem tudo que escrevo será um objeto pronto, acabado, mas muitas vezes é um caminho ainda mal traçado, e que serve de guia e orientação para seguir.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como em qualquer caminho que se trilha na vida, estamos sempre expostos às circulações do mundo. Elas nos movimentam e nos paralisa, feito os fluxos das marés. Se entendermos que existe essa lógica e que ela se repete, não nos desesperaremos – ainda que os prazos alheios nos pressionem. Eu acho que cabe, para mim, a figura do plano para vencer a procrastinação. Não o plano como algo ortodoxo e dogmático, que se deve seguir cegamente, mas como uma fala mais ou menos livre de um debate, e que está de alguma forma, estruturada. Isso me ajuda a tomar as decisões sobre pesquisar mais ou escrever mais; revisar mais ou entregar para alguém fazer uma leitura e etc. Vive-se melhor com as expectativas, quando elas estão a correr… distantes de nossas prisões. O medo já faz tanto parte de nós. É ele que nos obriga a conhecer melhor o que estamos temendo para deixar de lado a apreensão em favor de algo que nos contemple e nos realize como pessoa, como indivíduo. O medo não se teme, se convive. Temerosas são as prisões da alma.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso bastante, e gosto de ter algumas pessoas que são chave para um retorno crítico do trabalho. Reviso não só por questões ortográficas, semânticas e etc., mas por que normalmente temos excessos. Sempre queremos dizer mais do que precisamos, na verdade rsrs. Acho que o tempo nos ensina que o silêncio é um dialeto dentro das nossas linguagens e o invoco como língua própria, muitas vezes. Tento incorporar no meu processo de escrever esse entender o espaço das lacunas. Tenho um projeto de poesia visual que se chama “poemasquadros” – dá pra conferir no meu instagram – nele eu exercito muito a síntese e a semântica. Nesse exercício, fica inevitável o entendimento de como: o silêncio das palavras, ou melhor, a escolha mais clara de um sentido em detrimento de outro sem anulá-lo, requer revisões, releituras tanto pra quem faz (o poeta) como para quem lê também. É um eterno convite a (re)leitura. Então por conta desse trabalho, eu me acostumei a me corrigir sempre, e também a me expor ouvindo as pessoas.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu sou de uma geração que cresceu nos anos 80, então acho que vivíamos em um elo entre coisas analógicas que se propunham como digitais; coisas digitais com lógicas analógicas… e isso, particularmente, me deixa a vontade em não ser íntimo demais nem de uma coisa, nem de outra. Sair do papel para o teclado do notebook, não é tão abissal assim, pelo menos pra mim. Vejo que na poesia a coisa se consolida mais no papel, e quando trabalho poemas visuais que serão quadros, tendo a ir pro computador para diagramar, estudas fontes etc… Na prosa, eu divido um pouco entre escrever a mão e desenvolver as ideias na frente da tela. Gosto de anotar uns caminhos para os pensamentos, e depois seguir esse “roteiro” no computador. Dando certo ou não, geralmente eu continuo do próprio arquivo digital e vou incrementando a partir dele.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, eu costumo andar pela cidade… Sou arquiteto e moro no centro (do Recife) e tenho muitos hábitos pedestres que me lançam nessa relação com a cidade e seus dilemas, suas perdas, seus resgates. Fazer parte como transeunte ajuda na interlocução com os personagens / paisagens. Mas vejo, evidentemente, que há muita leitura prévia em meu caminhar, então ler e reler no vivo, no ao vivo é essencial. É muito importante para quem escreve ter uma leitura ativa. Não um hábito. Uma leitura estudada até certo ponto direcionada ao que vc quer falar, escrever, pensar… ajuda nas sinapses rsrsrs. Amplia as possibilidades de levar a criação para espaços particulares, porém reconhecíveis e acessáveis talvez nunca daquela maneira. Ao mesmo tempo, não acredito na ideia de criatividade contínua como se fosse um estágio. Mais uma vez, como falei a pouco, a ideia de produtividade não deve contaminar a criação, no seu sentido lato de ser criativo. Dessa maneira, eu percebo que existem momentos em que estamos mais abertos e sensíveis para fazer conexões e proposições geradoras de um sentimento, principalmente no leitor, de que isso que ele está lendo é criativo. Mas esses momentos são curtos… A maior parte do tempo você está trabalhando, simplesmente. Revendo suas conclusões, seus encaminhamentos, seus pensamentos, suas associações, suas bases, seus estudos… Escrever é estudar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Eu diria: Leia mais, Estêvão! No início, além de ler menos, o que é uma característica talvez geral, eu tinha uma tendência a fazer associações daquilo que estava lendo com outros livros e trabalhos artísticos. Talvez num esforço juvenil de buscar autenticidade e não se “contaminar” por linguagens alheias, ou também por não querer nada pronto. Regrado. Se por um lado, isso dificultava um entendimento mais amplo daquilo que me motivava, essa postura me obrigava a encontrar similaridades em outras escritas, ou até em outros processos criativos: música, cinema, artes visuais etc., para aquela expressão que literalmente estava gostando. Então se eu demorei a entrar no mundo de João Cabral de Melo Neto, antes de me aprofundar, eu pude associar o que ele fazia com alguma música de Caetano ou com um filme de Cláudio Assis. Não sei de cor nenhum poema dele (nem os meus rsrs), mas identifico a sua influência na escrita de outros escritores aqui de Recife, por exemplo, como Alberto da Cunha Melo, Esman Dias, Lucila Nogueira, Marco Polo Guimarães (esse, vocalista da banda Ave Sangria). Essa busca por diálogos entre trabalhos distintos, me ajuda a trabalhar no limite das expressões… Como mudança, ao longo do tempo, eu fui educando melhor a leitura, mas a procura por associações nunca parou. Isso me leva hoje a querer conhecer como pensa o autor ou autora, assistir uma entrevista dele ou dela no youtube, entender o contexto em que seu trabalho foi escrito e construir outras associações para suas obras, indo para além do que se vê, do que se fala…Em outras linhas: entender as entrelinhas!
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu pretendo fazer um romance que seja ambientado no bairro de São José em Recife, região central e original da cidade. Tá na pesquisa, muito longe do prelo… Um livro que não existe e gostaria que existisse? Um livro escrito por minorias, com linguagens e soberania linguísticas de culturas que estão à margem de um mercado ocidental de escrita; um livro que talvez nem fosse livro. Fosse um emaranhado de papeis feito com alguma fibra de uma palmeira que só exista em Papua Nova Guiné, mas que pareça com umas palmeiras que tem no litoral sul de Pernambuco. Que o livro seja um relato claro, sincero e sem imperialismo sobre o que é memória, deslocamento e reconstrução para esses povos que vivem sendo calados… mas tem muito para dizer.