Escobar Franelas é escritor, cineasta e educador.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Engraçado que antes da surpresa de ser convidado para participar dessa série, eu já estava acompanhando alguns depoimentos e me peguei pensando: “caramba, se eu tivesse que responder a essa questão, nem sei o que diria… todo mundo tem uma rotina, mínima que seja. Só eu sou caótico?” Pois, definitivamente, não tenho ordem ou ritual para escrever, para nada. Se “naquele momento” em que sou surpreendido pelo encantamento (como diria o poeta Akira Yamasaki), pelo espanto (como queria Ferreira Gullar), se for possível rascunhar, escrever, dar corpo à ideia, ok. Se não der, o que faço? Rascunho num pedaço de papel, no cantinho de algum livro, só para não perder o fio da meada. Ou então gravo áudio. Como dirijo muito por aí, às vezes sou pego por uma frase, um verso, uma palavra, uma ideia no meio do trânsito. Já parei muito em acostamento para anotar algo, mas hoje gravo áudio no celular. Depois, com calma, começo a burilar em cima. Isso se ainda tiver aquele elã inicial, o tal do insight. Pois às vezes o improviso faz com que a gente anote algo que depois esvazia, perde o sentido. Se for assim, ok também, dou de ombros e espero o próximo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo a qualquer hora e em qualquer lugar. As únicas coisas que atrapalham são música, televisão e rádio, pois me desconcentram. Sobre rituais, acho que prefiro primeiro escrever à mão e depois digitar, mas não tenho certeza.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como minha rotina é desigual (trabalho em projetos de educação social, produção de audiovisual e escritura em geral (jornais, portais, a própria obra etc), além de trabalhar no comércio, minhas manhãs, tardes e noites são também desiguais. Apesar de querer, hoje não posso me dar ao luxo de estabelecer que minha rotina seja escrever todas as madrugadas (aqui, outra desconfiança, a de que produzo mais e melhor quando estou na companhia das corujas e dos sons das motos dos entregadores de pizza), então faço o que é possível. Por exemplo, todos os banheiros da minha casa têm nichos para livros, jornais e revistas; e bloquinhos de anotação com caneta. Logo, ir ao banheiro pode ser um momento de leitura, ou de escritura, para mim ou minha família ou qualquer pessoa que esteja em casa. Trem, metrô, fila de banco, todos são ótimos lugares para leitura também. E o balcão da minha loja, quando não estou fazendo contabilidade, é um excelente lugar para rascunhar poemas. Só textos mais longos que exigem de mim o conforto da cadeira em frente ao micro da sala de casa.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
O processo está descrito na resposta anterior, mas posso acrescentar que a insegurança, esse mote que nos move, tanto traz a frieza da dúvida quanto o calor da expectativa. E esse embate gera o mistério, uma das coisas mais belas que temos, porque permite o cavalgar da imaginação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
As travas talvez não sejam naturais no processo, mas existem; e se existem, tenho que aprender a conviver com elas. Mais ainda, me esforço para aprender algo com elas. Talvez por ser aquele que no mercado é conhecido como “escritor independente” (se é que é possível alguém se pretender independente dentro das amarras do sistema no qual estamos inseridos), meu único prazo é comigo mesmo. Então, se tenho algum tipo de sofrimento quanto a esses possíveis prazos que me determino e quase nunca cumpro, não tenho a quem culpar. Logo, o negócio é levantar a cabeça e continuar ou parar. No meu caso, às vezes me pergunto porque escrevo, mas como não encontro respostas que justifiquem a abstinência ou pausa, continuo repetindo os mesmos gestos para a beleza incendiária que é esse verter ao mundo o brotar de versos da cabeça da gente.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tecnicamente seriam pelo menos duas vezes. Assim que escrevo, seja um texto jornalístico, um poema ou um romance, sinto uma necessidade de me afastar daquilo e deixar em fogo brando até voltar lá depois e reavaliar. Essa reavaliação é sempre através da leitura em voz alta. Nesse momento é que o texto se torna corpóreo pra mim. Depois disso, várias leituras se fazem necessárias, para as correções de praxe. E depois sempre peço a leitura crítica de gente amiga e de confiança para ponderar sobre. E a essa gente pago geralmente com sorrisos, abraços, menções e o trio café, cerveja e vinho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Como já respondi, tenho uma leve desconfiança que prefiro escrever primeiro no caderno, depois só digitar. Mas tudo isso é incerto, pois as urgências cotidianas às vezes exigem o atalho, ou seja, digitar direto no computador.
Tenho a impressão (e preguiça confessa, por isso só a “impressão”) de que um mesmo texto escrito pela mesma pessoa oferece resultados diferentes quando escritos à mão ou digitados direto na máquina. O fluxo manual cria um estado de tensão e cansaço que o bater nas teclas parece atenuar. Logo, é de se pensar se a escolha de uma ou outra forma não muda o seu processo de escrita. No meu caso, é quase certo que sim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Tudo é motivo para a mente atenta e a sensibilidade arguta. Qualquer coisa mesmo, palavra, cor, foto, cena, música ou lembrança, pode desatar um nó aqui e aí inicia-se um diálogo com o instinto criador. Um bom dia de alguém na rua pode percutir diferente aqui no labirinto e então liberar os eflúvios de algum mar represado que logo tornar-se-á outra coisa. O quê? Não sei, nunca sabemos para onde escorrerão as águas que vazam dentro da gente. Pode ser que não seja nada, mas também pode ser um verso, um poema, uma cor na minha voz ou uma música de meu gesto.
Quase disse que só a morte cala a poiésis, mas se mestre Machado conseguiu através dos engenhos da escrita retornar verborragicamente das amarras do “outro lado”, então, talvez, eu possa falar que “tudo posso no verso que me cresce”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
“Deixe de ser imitador, Escobar! Faça errado, mas faça do seu jeito!”
Durante um longo período de minha formação, quis ser um Pignatari ou um dos Campos. Também já tive uma fase de querer ser um sub-Drummond ou um semi-Bandeira. Hoje sou imperfeitamente eu, o que não quer dizer que não seja a soma de tudo o que li, ouvi, presenciei e sonhei.
Mas se pudesse voltar na máquina de fazer versos de minha adolescência criativa, diria, “moleque, para de mentir, seja menos adulto, escreva o que você é, não o que você quer que os outros imaginem que você seja”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho uns dez livros iniciados, entre romances, contos, crônicas, cronicontos, poesia, entrevistas, resenhas e História. Se até o fim da vida der conta de todos eles, acho que já estará de bom tamanho.
Os livros que gostaria de ler, os filmes que gostaria de assistir, todos existem, apenas não terei tempo de lê-los e vê-los. Então me obrigo a um exercício doentio de querer encontrar tempo (a moeda mais rara que temos), para estes e os que ainda serão criados, e que se tornarão tão importantes quanto.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Não diria difícil mas é chato pra dedéu revisar o que criamos, ah, isso é! Todavia, o ato criador, por ser libertador, é tortuoso e inseguro, e por isso mesmo é um prazer vivenciá-lo.
Quantos a projetos, há desde aquele que nasce sem sequer saber que é um projeto e mesmo assim cresce e dá seus frutos; como outros que são planejados mas depois morrem antes mesmo de “se tornar”. E tem ainda aqueles que ficam ali, sós, no campo das ideias.
Em mim o caos é orgânico. E longe de ser método, é a própria essência, minha condição de exisitir. Se não souber conviver com essa anarquia, surto.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não sei se gosto de ter tantos trabalhos, mas o fato é que inicio uns sem terminar outros. Logo, sempre tem alguma coisinha residual.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Desde criança quis ser engenheiro eletrônico, bombeiro, cantor de rock e principalmente jogador de futebol. Mas talvez pelo fato de sempre ter lido muito, creio que a literatura me influenciou sim, pois molequinho já me vi escrevendo uns versinhos soltos, umas trovas. Rascunhar essas historietas foi uma força de expressão que sobrepujou todas as outras, e muito eficiente para me afirmar como sujeito e superar a timidez, por exemplo.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Li bastante poesia concreta em certa idade e isso de certa forma contagiou minha escrita. Também tive minha fase leminskiana e bandeiriana. Até hoje sinto alguns reflexos desse pessoal, por mais que lute para apresentar uma certa autonomia estilística. Balela, pois todos nós sempre somos influenciados de alguma forma por alguém ou algo, assim como influenciamos, mesmo sem saber.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Vou citar obras que são bem diferentes e recentes (todas com menos de 5 anos) e por isso mesmo complementares na proposta estética e fruição. E contemplando autorias fora dos cânones estabelecidos, pois creio que precisamos ampliar esses voos para além das montanhas já reconhecíveis.
Como romance, cito “A Puta”, de Márcia Barbiéri. Escrito em parágrafo único, esta obra de mais de cem páginas, resume um diálogo denso e tenso entre precisão e expressão, vanguarda e tradição, catarse e mimese. Em poesia cito “Oliveiras Blues”, de Akira Yamasaki, um dos mais fecundos poetas brasileiros vivos. No gênero conto, penso em “A Invenção do Cemitério”, do escitor moçambicano Pedro Pereira Lopes, que tem arrebatado muitos prêmios por onde trafega e se revela um escritor diferenciado em tudo que toca: literatura infantil, prosa adulta e poesia.