Elói Alves é escritor, poeta e ensaísta, autor de “O olhar de lanceta” e “As pílulas do santo Cristo”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Acordo cedo desde menino, isto é certo; o resto vai do tipo de compromisso. Na escola estudava cedo, ou ia trabalhar cedo, por vezes de madrugada, quando fui cobrador de lotação pelos 12 anos de idade; às 6h. já estava em serviço. Daí para frente raras vezes levantei depois das 8h, o próprio curso na USP, no Butantã era pela manhã. Era preciso sair bem cedo, indo da Zona Leste para a Oeste, isto consumia quase 2h, num dia normal; à noite seria pior, nem sempre há ônibus ou se anda vivo pela madrugada na periferia de São Paulo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Com o tempo isso muda, já escrevi muito pelas madrugadas, mas quando são muitos os compromissos, eles nos moldam; assim, escrevo quando sou invocado pelo ofício; já escrevi de pé, na condução, num pedaço de papel, já cravei na mente algumas anotações ou até textos mais amplos e mais elaborados, por falta de outros meios, correndo, logo que pude, a fixar em matéria mais palpável aquilo que parecia valer o esforço. Quanto ao ritual, move-se meu cérebro pela leitura, da Literatura em sua mais diversa diversidade, da ciência; e move-se pela imaginação, quem sabe tantas vezes perdendo-se trilhos de bêbados; pela observação, tão profícuo e mestra e tão inútil como tantos fazes dos homens.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como não vivo da minha escrita, somente, mas de alheias, inclusive, revisando-as, orientando-as, peço-lhe sempre que segure a ansiedade e espere por mim, que isso de escrita automática descarrilha vagões. Mas há tempo, há dias, há relógios, há editores, leitores, prazeres e ansiedade…s; de modo que há texto que pede para correr; corre-se com ele ou escapa-se, mirra as pernas ou cai no buraco. Assim faz-me o poema, ou termino-o ou quebra-se-lhe a perna; o conto, o romance, como AS PÍLULAS DO SANTO CRISTO, …, não me fazem de diferente modo: ou atendo-lhes a pressa ou entrego-lhes ao coveiro. Doutro modo é o ensaio, como um OLHAR DE LANCETA, que pede espaços, respiros, reflexão; assim o artigo, o texto didático com suas tantas peculiaridades espaçosas e mesquinhas riscas a conduzirem o autor…
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho mania de anotar; gosto do que me lembra o Mestre “convive com teus poemas…”; depois disso, dessa estada, separamo-nos; viro amanuense e os personagens, a história seguem o seu caminho.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
“In the long run we are all dead”, dizia sir Keynes; não porque a morte esteja à porta e espreita, mas outro motivo, que dá no mesmo: para todos, hoje o folego é curto, de modo que grandes projetos exigem parceiros mais jovens, discípulos amados, dispostos a continuar o trabalho que deixamos. É Keynes e é liberalismo. Meus textos são, em geral, curtos; romance, ensaios, contos, crônicas, poemas, artigos; todos meus livros vão cada um pelas suas cem pp.,; na ficção literária a procrastinação é muitas vezes um mal grave; os personagens, largados a um canto, deformam-se e morrem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Revisar é atividade infindável, mas uma hora dá-se um fim, ou publica-se ou o texto fenece; aliás, há texto que não tem remendo, outros que já nascem querendo ser lido, então dá-se a um leitor, um amigo, um leitor de blog; sempre partilhei e compartilhei leituras, então, no meu caso, sempre houve alguém para ler, o texto contagia muito mais em comunidade, é algo da tradição oral.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso os dois, mas ainda uso muito papel, rabiscos, folhas entre livros; neste ponto sou romântico: o rabisco, as marcas, o caminho traçado; a caneta não sumiu, como previam profetas da tecnologia.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Surgem do mundo, dos mundos, do real, da imaginação, do mundo a se fazer, para onde se fugir… do que leio, sonho, detesto, amo, do quero e não quero. A leitura sempre foi um hábito, desde cedo, mas este termo não se lhe encaixa, parece-me; a leitura foi-me companheira, escape, porta, para o real e para o imaginário, que é mais realidade que imaginável.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Tenho textos que publiquei depois de anos, escritos pelos vinte anos; muita coisa muda, o modo de composição, humor, a crítica, suas formas, vocabulário, a relação com leitor, a compreensão dos processos, de si, do mundo, do humano. Não gostaria de voltar, não acho que perdi algo nesse sentido, sempre fui exigente com meu fazer; perdi algo da materialidade, mas as ideias, o que importa comunicar, permanece, com suas transformações que sempre energizam.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não estão ao meu alcance, “vasto mundo”!; quanto ao livro, um livro parido da dor e da arte e que tivesse veneno e saúde. Sobre projeto, gostaria de fazer algo que valesse alguma coisa, sem projetar nada, que essa coisa de projetista chama muito a ciência e leva agente para realidade, no fim, já não se sabe mais onde está a arte.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O escritor muitas vezes trabalha no caos. Nesse sentido, parece que Deus é um artista, e por excelência: “fiat lux et facta est lux”, “faça-se a luz, e houve luz”.
Não me refiro à desorganização peculiar à muita gente criativa cuja lógica é distinta, mas à natureza da arte e da criação artística que não obedece necessariamente ao cartesianismo ou ao senso de compartimentação organizacional. Já se disse, em críticas, que certas obras artísticas não têm pé nem cabeça, e talvez aí resida o mérito de tais obras de artes.
Sobre isso, escrevi narrativas longas que, gratamente, foi bem recebida pelo público, e também por críticos literários, cujo início redigi com a obra já bem encaminhada (loucura!). Desse modo, houve pontos com densidade que fluíram à margem da definição de seu início, portanto, algo não plenamente controlável. Isso me faz lembrar o que os antigos chamavam “in media res”, para o meio dos acontecimentos.
De outro modo, há narrativas, sobretudo algumas de menor extensão, cujo texto me surgiu completo antes que corresse à tinta. Nesse caso, ou nesse momento, aparece, por assim dizer, mais um amanuense e revisor literário que propriamente um autor.
Há dilemas entanto que são cruciais; por exemplo, como narrar uma história que se tem em mente. Que tipo de narrador cabe melhor em determinada história que se está confabulando?
Enfim, planejar é fundamental, mas é bom sempre lembrar que a criação artística não é obra de forma e de metro, exceto em versos – e também no gênero – que assim o exijam.
Quanto à última frase, é muitas vezes, quase sempre, decorrência do que vem antes, não se permitindo ignorá-la impunemente; outras vezes ela não quer vir nunca e o autor que peça a sua musa um bom bocado de paciência.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Em criação artística é sempre bom manter o trem em movimento; quando se larga o ofício, parece que algo desanda. Por isso é preciso ter foco, direção, projetos, organização e persistência.
No aspecto da escrita artística, as noites me são, há muito tempo, boas companheiras; pelas manhãs, escrevo menos; mas, quando determinado projeto ganha corpo, parece que surge um motor que faz andar bem o trabalho, independentemente das horas; no meu caso essa força faz esquecer muitas coisas concorrentes, e adiar outras, mas sem olvidar que a vida impõe seus cuidados.
Sobre a diversidade de projetos, sempre fiz trabalhos diferentes ao mesmo tempo: aulas, revisão de textos que me mandam, apreciação de obras, prefácios, além de, espaçadamente, encontros com autores e leitores; principalmente, nunca deixei de ler, a leitura sempre me foi uma amiga indispensável e acho que, em alguma medida, e se não exagero, também oxigênio.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
A literatura artística me encantou desde cedo; ainda muito novo, perambulando pelos sebos do centro de São Paulo, onde comecei a trabalhar aos quatorze anos, fui adquirindo os livros dos autores que conhecia de ouvido, de algum comentário solto; lia com avidez.
Desde novo a comunicação, o rádio, os grupos de debates com amigos, o círculo teológico de minha adolescência onde conheci mestres de conhecimentos apaixonadamente acumulados; de modo que tinha elementos subjetivos para escrever e soube distinguir cedo os textos que tinham alguma maturidade estética, sendo alguns publicados mais tarde; aos vinte anos passei a escrever com alguma consciência crítica, pena que muito do que escrevi nesse período, inclusive alguns aforismos, tenha se perdido, serviria ao menos a alguma crítica genética.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Tive menor predileção pelos autores do romantismo, questão mais de estética do que de admiração pelo talento individual, como o de Alencar, autor de primeira grandeza da literatura de todo o tempo; posto que não os deixei de ler, mesmo os livros que me pareciam ter mais importância histórica, como A Moreninha, de Manuel de Macedo, li com mais afinco os autores do realismo; e, fato que sempre manifestei meu gosto pessoal por Machado, o realista que mais li, quando iniciei meu contato com tais autores, foi Aluísio Azevedo, autor do clássico O cortiço. Por essa época comprei Casa de Pensão e, antes, O mulato, que achei velho e carcomido entre outros livros ao fundo do antiquário, dando por ele os trocadinhos que iam no bolso; era pelos dezesseis anos, mais ou menos.
Essas leituras certamente influenciam, até porque mostram as escolhas e identificação do autor com certas escolas, autores, obras, época, linguagem, que vão se somar à subjetividade do escritor e à objetividade de seus métodos.
Há, é justo que o diga, autores do romantismo que li recorrentemente, como Alexandre Herculano, que juntou a literatura à história, e o mestre-pai de seu gênero, Scott, a quem sempre é bom retornar. Em alguma medida o método de Herculano me inculcou muito de positivo; mas hei de revelar algo: meu gosto pela história, que vai muito em meus textos com aplicação objetiva, p. ex., nos Ensaios de O Olhar de lanceta, vem dos meus doze anos, anterior a uma consciência de leitor literário; muito do que lembro da História do Brasil vem de minhas ávidas leituras dessa época, mesmo tendo voltado depois várias vezes a historiadores como Boris Fausto e conhecido o grande orador e ministro inglês, Churchill do qual o interesse dá-se, neste caso, tanto pela matéria como pela forma; é certo que ali naquelas leituras juvenis havia mais a memória e o gosto pelo que se lia do que a análise e as conjecturas metódicas que há nos Ensaios referidos, publicados em 2015, pela APMC.
Esse aspecto foi, aliás, observado pelo historiador e poeta Professor Germano Gonçalves em seu livro tese Literatura urbana e marginal (APMC, 2016), onde observa o autor: “[…] é realmente uma obra digna de literatura e história, no entender Alves sabe muito bem usar a estratégia de ações Integradas em literatura e aspectos históricos, tem no seu cerne o processo de docência acerca do processo letras e história […]” (p. 178).
Mas um estilo, para bem da literatura, talvez seja coisa que não se forme nunca, pode ser que até se deforme, quiçá positivamente, criando já outras formas; parece-me, aliás, que isso possa ser verificado em autores que nos deixou grandes obras.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Acima ficou claro meu gosto pelos clássicos, coisa que me chegou bem cedo, não sei se precocemente; não obstante, tenho lido recorrentemente autores contemporâneos e conhecido inclusive jovens autores de textos saborosos.
Vanda Felix está neste bom grupo; leio seu blog com gosto já há alguns anos, e tive o prazer de prefaciar um livro que publicou recentemente. “Francisco” (Ed. Essencial. 2020), que se lançará em breve, e de que sou apenas leitor com privilégio de ler antes da publicação, traz sua narrativa poética; nele a autora fala da infância com tanto tato e poesia que é um encanto.
O 2º que indico é o pequeno e saboroso livro de crônicas “Contos e causos notariais” (YK Editora), de autoria de Arthur Del Guércio Neto, cuja escrita, fluente, leve e habilmente trançada, agrada ao leitor todo o tempo; livro fruto da arte e da observação de um jovem e dedicado tabelião, apaixonado pelo conhecimento e pela arte de comunicá-lo.
No terceiro livro, gostaria de voltar “Às pílulas do santo Cristo”, (Linear B Editora), romance que publiquei em de 2012 e que caminha para seu oitavo ano, e 3ª ed., com a boa recepção dos crescentes leitores e de críticos literários, entre estes o escritor e psicanalista Eduardo Moreira, mestre em literatura pela USP, que diz em sua análise na 1ª edição do livro: “É mostrada a cidade visceral, repleta de gritos num tumulto amorfo. As ruas do centro tornam-se centopeias e perambulam por si mesmas, em círculos, quadrados, quarteirões e desenhos geométricos vistos de cima, de baixo e do subsolo. […]”.
Na narrativa pouco se recorre a fluxos psicológicos, anda-se sempre fluidamente, com as ações se passando continuamente aos olhos do leitor. O flash back também sede lugar à progressão continua, rápida. O narrador personagem, posto de um ângulo que lhe permite uma observação ampla, mostra-se também com um olhar atento e detalhista.
Romance moderno, urbano, As pílulas apresenta ao leitor inquietantes questões da humanidade, não só aos contemporâneos, mas que se verificam na história dos homens; nele, as multidões encontram-se e se desencontram na contínua luta por encontrar-se, em que há ilusões e desilusões, e os oportunistas. Num neologismo, cunhado pelo crítico e artista citado acima, há na narrativa uma “placeborreia”. Sua análise e as de leitores, de perspectivas tão diferentes, tantas vezes, é uma outra riqueza, que, em via de mão dupla, gratifica o empenho.
Se me permite concluir falando de poesia, Sobre o céu cinzento, livro que publiquei na Bienal do livro, em 2014 (SP), pela LP Book – livro esgotado, que espero relançar em breve – forma uma coesa coletânea de poemas que escrevi quase todos num curto espaço de tempo, e que tomou curso diferente de poemas de momentos anteriores cuja composição, não obstante a beleza da forma, as imagens criadas etc, pareciam-me, por assim dizer, obras de arte pouco comunicativas no sentido da complexa realidade da vida contemporânea. (Não que isso seja uma exigência). Tinham ares de parnasianismo sem o brilho dos príncipes daquela escola, no entanto.
Sob um céu cinzento, de outro modo, penetra a existência humana de modo atemporal, e ao mesmo tempo desvela peculiaridades da vida que a realidade contemporânea tem aguçado bastante.