Eliete Della Violla é escritora e ilustradora, autora de “Sim” (2019), “Corte” (2019) e “balanço blue” (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu começo o dia num ritmo super lento. Levanto, tomo café da manhã, tomo um banho e medito por 10 ou 15 minutos. A meditação é um hábito recente e tem me ajudado muito na diminuição da ansiedade. De manhã eu prefiro fazer atividades mais automáticas, que não exigem muito da criatividade ou da tomada de decisões. Eu trabalho como designer e ilustradora freelancer, além da escrita e edição dos meus livros, então estou sempre envolvida em processos criativos. De manhã eu gosto de organizar as tarefas do dia, responder e-mails, rever, ou reler coisas que eu produzi no dia anterior, com a cabeça mais descansada. Gosto também de ler nesse horário, é meu horário favorito pra estudar, assistir algum vídeo ou curso sobre temas que estou pesquisando.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho bem melhor à tarde e também à noite. Mas não posso estender muito no horário senão tenho dificuldade pra desligar do trabalho e dormir. Não gosto de ter muitos rituais pra escrita, nem pra desenhar ou criar qualquer coisa. Pra mim isso dá uma sensação de coisa sagrada demais e acho que acabo ficando travada. Gosto de estar em silêncio, acho que essa é a única preferência. Mas já tive que trabalhar em lugares com muito barulho e aí colocava música no fone de ouvido pra conseguir me concentrar. A escrita costuma acontecer a qualquer momento, principalmente essa escrita que parece que vem do nada, mas que acontece quando já estou concentrada em algum tema ou projeto específico. Nesses casos, sempre gostei de anotar nos meus caderninhos ou em qualquer pedaço de papel, guardanapo, etc. Nos últimos anos, tem sido no bloco de notas do celular. Essa é uma escrita mais de registro, quando uma ideia vem, ou às vezes uma frase inteira, uma combinação de palavras que preciso registrar. Quanto menos cerimônia eu tiver nesse sentido, melhor. Depois, quando é hora de reler, editar, reorganizar, reescrever, aí geralmente vou pro computador e preciso focar naquela atividade. Mas isso só acontece depois de ter um bom volume de textos e imagens pra trabalhar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho meta de escrita diária e costumo escrever em períodos concentrados. No caso do meu último livro de poesia, o Sim, o processo foi meio híbrido. A primeira parte do livro foi escrita ao longo de dois anos, de um jeito bem solto porque eu ainda nem sabia que aquilo seria um livro. Já a segunda parte foi escrita em poucos dias, em um período que eu trabalhei só nisso. Logo que terminei a segunda parte, eu vi que tinha muita conexão com a primeira leva de poemas que já tinha escrito e aí decidi reler, editar e organizar o livro. Pendurei todos os poemas na parede da sala e ia lendo em voz alta toda vez que passava por ali. Fui riscando partes e adicionando coisas ali mesmo, nas folhas que eu tinha datilografado. Aliás, esse livro teve essa particularidade também. Senti a necessidade de escrever os poemas da segunda parte em uma máquina de escrever. Sentia que precisava ter esse movimento físico mais intenso durante a escrita e que eu gostaria de ter essa interferência, já que os poemas falam muito da relação com o meu corpo, o deslocamento que eu estava vivenciando por ter acabado de me mudar de casa, sair da casa dos meus pais e vivenciar uma nova relação comigo e com as minhas emoções. Em geral, até ali eu costumava escrever tudo à mão, como aconteceu com a primeira parte do livro e também se repetiu no livro que escrevi depois do Sim, chamado Carne, que acabei lançando um pouco antes, no mesmo ano de 2019.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Em geral, eu junto um grande volume de trechos, notas, poemas e imagens pra depois organizar. Não sinto que exista uma transição da pesquisa para a escrita, acho que tudo acontece simultaneamente. Pelo menos esse tem sido meu processo de escrita de poesia, que eu vivencio há mais de dez anos. No momento, eu estou escrevendo um romance gráfico (ou graphic novel), então o processo tem sido um pouco diferente. Durante as minhas últimas férias esse ano, eu comecei a escrever esse romance. Comecei com a escrita de vários trechos soltos de pequenas cenas, que envolviam um mesmo tema: uma mulher que está prestes a entrar sozinha em uma viagem de mais de quarenta horas de ônibus pelo Brasil, em busca do seu lugar no mundo. É um livro que fala sobre memória, identidade, estruturas de poder, sexualidade e protagonismo feminino. As cenas foram se formando na minha cabeça a partir de memórias pessoais, incluindo coisas que eu vivi e ouvi de outras pessoas. Tenho um documento com uma série dessas cenas escritas que ainda não tem qualquer conexão, é um material bruto que ainda pretendo trabalhar, descartando algumas coisas, reescrevendo outras. Em paralelo a isso, comecei a estruturar a narrativa, usando técnicas de estrutura dramática de roteiros de cinema. Nesse ponto, senti a necessidade de usar imagens pra narrar essa história e foi aí que decidi dar sequência no projeto optando pelo romance gráfico. Agora eu estou no processo de desenhar algumas cenas, rascunhar personagens e diálogos e coletar imagens de referência. Já percebi que esse projeto vai demandar uma estruturação maior do que nos meus livros anteriores, em que eu terei que definir metas, tanto de escrita quanto de desenho das páginas, pra que eu consiga desenvolver a história até o fim.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Pra mim é muito importante dividir o projeto em etapas menores e traçar um cronograma que seja realista. Acho que eu já vivenciei mais esse medo de não corresponder às expectativas com projetos em que eu fui contratada como designer ou ilustradora, do que nos meus projetos de escrita, que até aqui foram iniciados por uma demanda muito pessoal. A procrastinação acontece com uma certa frequência, mas eu sempre tento observar o que está por trás dela. Pode ser que eu só esteja cansada e precise descansar. Pode ser que eu esteja com medo de finalizar aquele projeto porque aí eu sei que ele será veiculado e isso me deixa insegura. Pode ser que eu não esteja num momento favorável pra ter ideias, tomar decisões, como acontece em alguns períodos do mês, por conta do meu ciclo menstrual. Tento observar tudo isso e não me julgar tanto, mas é claro que não é sempre que isso funciona. Quando eu estou com dificuldade de trabalhar em um projeto, tento ver coisas que me inspiram. Adoro assistir entrevistas, por exemplo, saber como outros artistas fazem seus trabalhos. Têm dias que não estou conseguindo fluir naquele projeto, então pego pra fazer alguma pesquisa relacionada ao tema, ler algum livro que eu goste, assistir um vídeo de um canal legal. Nos dias em que nada disso funciona, eu faço uma pausa, saio do ambiente que estou, faço uma caminhada pelo bairro, vou pensar em outras coisas, fico uns dias sem pensar naquele projeto. É por isso que eu gosto de começar os projetos com uma certa antecedência, porque já sei que vou ter essas flutuações ao longo do caminho.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Até o processo do meu último livro eu não tinha o costume de mostrar nada pra ninguém. Não acho que isso seja muito recomendável, mas era o jeito que eu conseguia fazer pra ter coragem de publicar. Sempre tive muita vergonha de mostrar as coisas que eu escrevo, até hoje sinto que tenho esse bloqueio. Entre 2017 e 2019 eu publiquei mais de dez livros e zines de poesia. Foram obras que eu mesma imprimi e distribuí pelas feiras de publicações independentes em que fui selecionada pra expor. Eu não tinha uma equipe de editores ou revisores pra quem mostrar esses textos, e também não tinha coragem de mostrar pra amigos e pessoas próximas, então eles só eram lidos quando já estavam publicados. Já no caso do Sim, que foi um livro viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura de Sorocaba, eu pude contar com uma equipe que incluiu uma coordenadora editorial e revisora, que já era uma amiga muito querida e também uma assessora de imprensa que se tornou minha amiga durante o processo. Nesse caso, tive a leitura e o acompanhamento delas, conversamos muito sobre os textos e tive apontamentos muito valiosos. No caso dos meus trabalhos de design e de ilustração, eu gosto bastante de compartilhar o que estou fazendo, ao longo de todo o processo. Geralmente compartilho com meu companheiro, que também conta comigo quando está produzindo suas artes – ele é músico, animador e designer. Sempre que faço isso, sinto que o trabalho ganha muito. Têm coisas que parecem muito claras pra nós que estamos inseridos no projeto, mas não tanto pra quem está tendo contato pela primeira vez e é muito importante saber disso. Com os poemas eu não costumava revisar tantas vezes. Sempre me atentei muito ao ritmo e à narrativa que estava sendo contada, mesmo que isso não estivesse explícito ali. Eu sabia que estava buscando uma cena ou um efeito específico com aquele poema, então ia relendo e alterando coisas até sentir que tinha conseguido e assim eu dava o poema por terminado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No caso dos poemas, sempre escrevi à mão em caderninhos e pedaços de papel. Já na escrita do romance, estou escrevendo tudo no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das minhas experiências. Isso inclui coisas que eu vivi ou que foram contadas pra mim. Acho que o hábito que mais colabora pra tudo o que eu faço é a observação. Sempre observei muito todas as coisas. O jeito das pessoas falarem, de se mexerem, como elas começam uma conversa, como elas mudam pra outro assunto. Fico ouvindo conversas por aí, vou captando uns fragmentos engraçados ou inusitados. Fico inventando personagens na cabeça, inventando histórias, o tempo todo, desde criança. Acho que a minha maior matéria prima é a vida mesmo. Principalmente a vida cotidiana. Em termos mais práticos, tem muita coisa que ajuda a me manter criativa. Acho que os momentos mais valiosos pra mim são aqueles em que eu me sinto relaxada, sem muita pretensão de criar nada. Durante uma caminhada pelo bairro, conversando com minha família ou com amigos, viajando, dormindo bem, sonhando, fazendo atividade física.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Às vezes eu tenho a sensação de que eu fui ficando mais presa em alguns aspectos. Na adolescência a escrita foi uma ferramenta muito preciosa pra mim, eu sentia que era meu único veículo de expressão, onde eu ficava mais à vontade. Não tinha nenhuma pretensão com aquilo, nunca pensei que escreveria livros, que trabalharia com isso ou com qualquer atividade dita criativa. Nesse sentido, acho que a escrita fluía muito mais, era natural. Por outro lado, eu acho que tenho um senso crítico maior hoje em dia, talvez por isso mesmo as coisas não sejam mais tão naturais como eram. A vantagem é que eu acho que tenho muito mais força pra viabilizar meus projetos hoje em dia. Tenho um senso maior de organização, reescrita, edição e também consigo dar mais valor ao que eu faço. Consigo redigir um projeto de livro argumentando sobre a sua relevância, traçando cronogramas e metas, convidando equipe técnica, coisa que eu jamais faria no período em que eu estava escrevendo meus primeiros textos. Sinto muito mais vontade de mostrar o que eu produzo hoje em dia do que antes, e também mais coragem e menos vergonha ou medo do que vão pensar. A terapia tem me ajudado muito nesse processo.
10. Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu estou muito animada com esse romance gráfico que estou escrevendo, o que aumenta a minha expectativa consideravelmente. Não acho que ele seja diferente de tudo o que existe, acho que o que me anima é a vontade de passar pelo processo de criação, fazer essa travessia entre a ideia e a realização de um projeto. Ver a cara que ele vai ter no final. Essa mistura entre o controle e o descontrole dos processos me anima muito. Tenho me interessado muito pela escrita de ficção, tanto no formato do romance gráfico ou história em quadrinhos, quanto na animação, que são duas linguagens que estou experimentando no momento. Tenho tido muita vontade de construir cenas, personagens, diálogos. Acho que é a noveleira que habita em mim desde criança que está se manifestando, rs.