Éle Semog é poeta e contista, mestre em História Comparada pela UFRJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Costumo acordar entre as 4 e 6 horas da manhã. Leio alguma publicação, vejo o jornal na TV, café da manhã, trata-se do inevitável. Mas sempre busco não estabelecer uma rotina; tenho a impressão que dessa forma o dia pode ser mais interessante. Quando estou trabalhando em algum texto ele fica direto na tela, dou uma olhada e reativo a lembrança do que escrevi, anoto intenções, ideias, mas só volto ao texto à noite.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho um horário específico, mas durante a noite e a madrugada o texto flui de forma leve e precisa. Quando se trata de escrever poemas busco me aprofundar no tema a ser abordado, leio outros poetas, artigos e releio meus próprios textos. Para os contos, geralmente estabeleço uma storyline, que fica mais fácil para não deixar que a estória a ser contada me engula, ou que os personagens façam o que bem entenderem dentro do meu enredo. Na maioria das vezes costumo conversar com meus personagens e vou criando seus traços físicos, suas manias, sua personalidade e seu caráter. Já os textos de artigos, roteiros de palestras são mais diretos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, em qualquer pedaço de papel, depois vou compilando, encontrando poemas escritos no caminho, mas não tenho uma meta de escrita diária. O problema é que quando se trata de poemas, tem alguns que reescrevo várias vezes, ou eles ficam amadurecendo por três, quatro anos, até que eu consiga superar o desafio da escrita, porque creio que a inspiração contribui com no máximo dez por cento do que o texto contém, os outros noventa por cento, pra mim, é trabalho. Isso não significa que deixo de aproveitar os momentos em que o poema surge inteirinho, sem mesmo a necessidade de trocar uma vírgula.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A escrita na verdade é uma reescrita. A pesquisa para a produção do texto está sempre inacabada porque, em certas situações, o texto insiste em ter vida própria, ele quer ser autônomo e determinar o seu próprio destino, mas não é assim que a banda toca. O que me deixa mais incomodado é quando tenho que burilar, ou recomeçar um texto, mesmo tendo estabelecido o tema e um roteiro inicial. Por outro lado já vivi casos de pegar um texto escrito e inacabado há alguns mês passados, atualizá-lo e concluí-lo com a maior satisfação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando trava não fico em pânico, pelo contrário, escrevo sobre assuntos diversos daquele que me travou. Com relação aos artigos e crônicas, vou ao limite para o início da escrita, mas em dois, três dias antes do prazo de entrega consigo dar conta. Já os textos acadêmicos são mais complicados. A disciplina é rígida e os prazos mais ainda, a mobilidade do texto exige uma coerência epistemológica, método, que no meu caso, não me permite ter ansiedade, se bem que passei muitas noites sem dormir, mas não era por ansiedade, foi insônia mesmo e ao invés de contar carneirinhos, eu contava o nome dos autores e os títulos dos livros usados na pesquisa. Se você tem o tema, o objeto, o problema e a hipótese bem definidos as possibilidades de êxito no resultado final são praticamente certas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei definir um número de vezes que releio os meus textos, mas vou à exaustão especialmente com os poemas. Entro numa briga de gato e rato com o texto; o que estava escrito como um poema volta ser poesia, o texto pede uma ênclise e uma palavra, cinco versos depois, pede um sinônimo, ai você mexe e fica aquele verso chocho, inodoro, sem alma. Então dá uma trabalheira danada, mas é exatamente isso que caracteriza o compromisso do escritor com a palavra. Mas comigo tem um porém: sou de descendência africana, monoglota e escrevo em português, língua imposta pelos escravocratas. Então se eu usar a palavra a palavra piano, certamente ele me remete à musica, mas se eu usar a palavra atabaque ela me remete também à música e mais a uma infinidade de signos, símbolos, corpos, subjetividades, vida comunal. Sempre mostro e discuto meus trabalhos, antes de publicá-los, para outras pessoas e acato as críticas e recomendações; depois do livro publicado levo uma semana, dez dias para conseguir voltar a reler o texto.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não tem coisa melhor do que escrever à mão. O texto vai fluindo no bloco, você risca uma frase, uma palavra, faz uma seta indicando para onde determinada frase sobe ou desce, faz um asterisco sobre a palavra e anota lá embaixo para buscar o sinônimo. Quando escrevo direto no computador, embora use os recursos, principalmente o ‘recorta e cola’, não é a mesma coisa, embora seja mais eficiente. Quando escrevo à mão, quase sempre tenho um dicionário ao alcance, já no computador tenho o Google. Não é a mesma coisa. É uma sensação muito boa ganhar 30, 40 segundos procurando uma palavra no dicionário impresso, viajando por outras palavras para quem sabe usa-las em outro poema. É assim comigo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
As ideias estão no mundo, na vida, no vento, no silêncio, nas ausências… é como se elas fossem frutos de um pomar, folhas de uma horta que alguém plantou, mas que todo mundo pode colher. Não tenho um conjunto de hábitos, mas alguns temas são recorrentes na minha obra, como a luta contra o racismo, as questões da sociabilidade entre as classes sociais, a ironia com as futilidades humanas, o amor entre as pessoas, a mulher amada, as questões que afetam as crianças.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O processo de escrita está sempre em evolução, mas hoje sou mais objetivo com os temas que abordo, embora alguns dos meus textos iniciais escritos em fins dos anos de 1970 início de 1980 parecem que foram escritos hoje. Escrevi muito, por conta da formação política, na perspectiva de uma sociedade socialista; poderia ter feito com mais ênfase nas questões raciais que afligem o Brasil e o mundo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro de uma história juvenil, sobre as vivências de um menino que mora num subúrbio carioca e seu cachorro “Bunda Mole” que é levado pela carrocinha e o destino certo era ele virar sabão. O nome do livro é “Adeus Bunda Mole” e creio que consigo entregar até meados do ano que vem à editora. Leio uns cinco, seis livros por mês, gostaria de ler mais. Então quantos mais forem lançados mais chances temos de sermos felizes.