Eduardo Newton é Defensor Público, autor de A defesa intransitiva de direitos – Ácidos inconformismos de um Defensor Público.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O início dessa conversa é marcado por uma confissão: tenho enorme dificuldade em estabelecer uma rotina. Quiçá pelo fato de ter estudado por 9 (nove) anos em escolas militares, sendo 5 (cinco) deles em regime de internato, tenho uma enorme resistência aos regramentos rígidos. A única atividade que não sai da manhã é a necessidade de uma boa quantidade de café.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Dentre os 5 (cinco) anos em que vivi em regime de internato, em 4 (quatro) deles fui sub- metido ao chamado estudo obrigatório, que consistia em ficar em uma sala de aula das 19h30m às 21h30m. Ali ficou marcado meu apreço por estudar à noite. Ao que se refere ao ritual, defendo que sem um exercício prévio de leitura não se mostra possível escrever. Muitos textos meus são oriundos de reflexões – eu chamo de diálogos – que travo no curso das leituras. Com o lápis, marca-texto, uma régua e as fichas, é iniciado o processo criativo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
As anotações são praticamente diárias; porém, nem sempre isso implica na elaboração, mesmo que parcial, de textos. Na verdade, não estabeleço qualquer meta de escrita, mas sim de leitura.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como afirmei, a leitura é sempre uma premissa, sendo certo que dela surgem as notas e as conversas com os autores que estudo. Mas não se restringe a isso. Muitas vezes, o início do processo se efetiva de maneira espontânea. Já tive insights no meio de uma corrida, ouvindo música ou vendo um filme. Independentemente da forma como se inicia o processo, não posso deixar de reconhecer algo que aprendi com uma Defensora Pública do estado de São Paulo que muito admiro, a Flávia D’Urso. Assim que tomei posse no cargo de Defensor, ouvi dela uma frase marcante: a cabeça pensa onde o pé pisa. As pesquisas que realizo, muito embora possam ter temas diversos, são pautadas pela minha realidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Atire a primeira pedra, quem nunca travou ao escrever um texto! Esse fenômeno é uma realidade, que, com o passar dos anos, aprendi a conviver e a respeitar o tempo necessário para o aprofundamento das reflexões. Até mesmo porque entendo que a minha realidade se encontra presente em minha escrita, sempre sustentei que escrever não só tem um aspecto autobiográfico, mas, principalmente, representa um ato de exposição. E para se expor é preciso vencer os mais diversos receios. Há uma frase de D. Pedro Casaldáliga que sempre invoco diante dessas situações: o problema é ter medo do medo. Sobre projetos longos, sempre deixo tudo para o último momento e isso sempre configura um enorme stress, mas justifico em um possível gosto pela adrenalina.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A revisão dos textos é algo próprio de cada um deles. Não há uma regra absoluta. Por possuir uma coluna em site jurídico – e convido a todos a interagirem comigo no justificando -, muitas vezes, sou literalmente atropelado pela lógica do efêmero. Ou abordo aquele tema naquele momento ou ele será objeto de descarte próximo, o que implicará na perda do seu interesse. Sem sombra de dúvida, há uma repercussão na revisão, tanto que alguns erros passam despercebidos. Quando se trata de artigos para a composição de obras físicas, há um número maior de revisões. Me considero um cara com muita sorte por ter conhecido gente muito paciente com meus textos, pessoas com quem sempre converso e peço que realize a revisão. Samuel Lourenço, Alberto Sampaio e Cristiana Cordeiro devem gostar muito de mim, pois sempre se mostram disponíveis. Um caso à parte é a da minha namorada Michele, já que faz questão de revisar e debater tudo o que escrevo. Sem ela, o processo da escrita seria muito mais difícil.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou graduado em história e em direito e, após formado, fiz o mestrado sob a batuta do maestro Lenio Streck e em todos trabalhos finais, monografias e dissertação, existe um dado uniforme: foram escritos à mão e só depois digitados. Não se pode negar que isso demanda mais tempo, até mesmo porque a minha caligrafia não é das melhores, o que me impede de delegar a função de digitar, mas acho importante para a revisão esse processo. A minha tensa relação com a tecnologia não se esgota com a preferência na feitura inicial à mão, pois tenho sérios problemas com livros digitais. É muito fácil me perder na leitura ebooks e, por essa razão, evito-os ao máximo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Sou filho temporão de uma das maiores vendedoras de enciclopédias que o Brasil já teve e, por essa razão, mesmo quando mais jovem tive sempre o hábito de ler uma Barsa ou uma Mirador de maneira aleatória. Era uma forma que tinha para ocupar meu tempo, que acabou aguçando a minha curiosidade. Ainda sobre a minha mãe, e ela me conta que até em enterro já conseguiu vender livros, o que não duvido, aprendi que lidar publicamente com pessoas era algo normal. Pois bem, os anos passaram e em razão de ter sido aprovado em um concurso público, eu estou na condição de Defensor Público, acabei tendo contato diário com muitas histórias, muitos dramas, que são basicamente de onde tiro a inspiração da escrita. Meu encantamento pela temática dos direitos humanos não é fortuito, é fruto da convivência dramática da realidade de muitas pessoas e um comprometimento ideológico em ampliar a voz aos esquecidos.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Alguns “atalhos” são descobertos com o passar dos anos. Destaco, principalmente, a capacidade de lidar com os momentos em que a escrita trava. Acredito que o processo da escrita, por mais que seja prazeroso com o resultado final, é doloroso durante o seu curso. Em outros momentos, a angústia por ter travado já foi maior e, com o tempo, aprendi a lidar com isso, o que não significa que me acomodei com esse incômodo. Sobre a escrita do mestrado, se pudesse voltar no tempo, apesar de não saber se conseguiria, tentaria me programado melhor na distribuição do tempo, isto é, diluiria o tempo da escrita, e não o concentraria no final, quando o prazo fatal para o depósito da dissertação se tornou um pesadelo. Na minha pesquisa, eu tratei do ativismo judicial, acho que poderia ter explorado mais exemplos de decisões judiciais que se pautam por esse fenômeno que atenta contra o regime democrático.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gosta- ria de ler e ele ainda não existe?
Não diria que não comecei o projeto, mas ainda não o sistematizei apesar de já ter muito material coletado. Quando exerço a função de Defensor Público, realizo alguns apontamentos sobre o asséptico ambiente forense, os Palácios da Justiça, que não conseguem suportar o trânsito de determinados grupos vulneráveis, sendo certo que destaco a figura dos presos provisórios. Por força constitucional, são pessoas que deve(ria)m ser tratadas como inocentes, mas na nossa sociedade autoritária isso é uma verdadeira utopia, quando não objeto de questionamento pelos mais diversos setores. Assim, realizo anotações sobre o que ocorre nas audiências criminais. Foi uma ideia do Lenio, que inclusive sugeriu o nome do futuro livro – Diário do horror.
Se me permite, deixo aqui dois relatos de audiências criminais em que participei:
“R.C.L: O réu responde por 2 crimes: desacato – é ainda possível punir alguém por esse crime à luz do que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos? – e ultraje público ao pudor. Em plena madrugada e aos gritos de que estaria nascendo, o acusado estaria exibido sua genitália. Ao ser abordado por policiais militares, teria xingado os “agentes da lei”. O processo penal tramitou inicialmente no Juizado Especial Criminal. O réu foi condenado em 6 meses pelo desacato e em 3 meses pelo outro crime. Foi interposto recurso de apelação e a Turma Recursal anulou todo o processo, o que incluiu a condenação. O processo penal teve então que ser redistribuído para uma Vara Criminal, sendo certo que o pedido defensivo sobre a incidência da prescrição ainda não foi apreciado. Desde 2012, o Poder Judiciário, a despeito de todo juízo de reprovabilidade moral da conduta do preso – discute se mostrar uma genitália em público e desacatar um policial deve, ou não, receber a pior reprimenda estatal: a pena criminal”
“ES: É a terceira passagem do indiciado na Central da Audiência de Custódia somente no ano de 2017. Teve a liberdade restringida em razão de suposto cometimento de furto. Por parte do delegado de polícia, foi arbitrada fiança no valor equivalente a 3 salários-mínimos, que – obviamente – não foi recolhida. Ganha a vida no chamado “garimpo”. O Ministério Público entendeu que a fiança arbitrada deveria ser cassada e, por ter sido solto em período inferior a 10 dias, ter a prisão em flagrante convertida em preventiva. A Defesa, por sua vez, postulou pelo relaxamento, uma vez que o prazo de 24h para a realização da audiência de custódia havia sido superado e, de maneira subsidiária, en- tendeu que o caso não era de conversão, quer seja pela ausência dos requisitos exigidos para a medida excepcional, quer seja pelo fato de a miserabilidade ser causa suficiente para a concessão da liberdade provisória sem o recolhimento da fiança, sob pena de se criminalizar a pobreza. O Judiciário cassou a fiança e converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva. Antes de sair da sala, o indiciado se voltou para a autoridade judicial e com olhos lacrimejantes pediu mais uma chance para o “chefia”. Os seus argumentos, tal como os empregados pelo Defensor, não se mostraram eficazes.”
Um livro que ainda não existe, mas gostaria de ler? Que situação delicada você me coloca! Mas vou me arriscar mesmo podendo ser um delírio e sonhar é algo muito importante, algo que valorizo. Um livro de história do Brasil que indicasse que algumas mazelas, que tanto nos envergonham, seriam situações superadas: a tortura praticada por agentes públicos, a perversão de determinados atores jurídicos que confundem suas funções com àquelas próprias dos agentes de segurança pública, a criminalização da defesa criminal, os direitos sociais à educação e à saúde como um privilégio de poucos, entre tantos outros malditos exemplos. Se essa realidade um dia chegar, e luto, mesmo que de maneira pequena para isso ocorra, espero que algum historiador possa trazer à luz esses fatos. Se me cabe sugerir um título para essa obra, fica o nome Nunca mais!