Ederval Fernandes é poeta, mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sempre fico um pouco mais na cama lendo ou vendo pelo celular o noticiário político e esportivo. Depois levanto e vou preparar e tomar o café da manhã. Devidamente preparado (banho, um pouco de música ou algum cigarro quando estou particularmente ansioso), vou para o trabalho. Fico lá por cinco horas, às vezes seis. Trabalho no Centro Cultural de Belém, numa galeria de uma designer portuguesa chamada Ana Romero. Consigo ler e ouvir a música que eu quero, mas sempre, é claro, condicionado pelo fluxo de clientes. Há dias que leio mais, há dias que leio menos. Escrever, contudo, não consigo. Não sei a razão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso depende. Como tenho outros afazeres além de escrever, ocorre que a melhor hora é mesmo a hora em que eu estou livre. Se estou livre pela manhã, então escrevo pela manhã. E da mesma forma acontece se a minha “liberdade” é à noite ou à tarde. Ritual? Penso que não. Mas é preciso ter algum silêncio por perto e um pouco de café. Se estou agitado ou ansioso em virtude de ter me ocorrido uma boa ideia e por consequência penso no desafio que será colocar essa ideia em palavras no papel, ouço um pouco de música e fumo um cigarro. Se ainda assim a ansiedade e a agitação persistem, desço as escadas e vou dar uma caminhada na minha rua (que fica muito próxima ao Tejo e me acalma vê-lo à noite, enquanto descansa do sol).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo pouco de um modo geral. Não tenho a escrita como hábito. A escrita para mim é o ponto culminante de um processo – esse sim talvez contínuo – de interesse pelas palavras no seu estado de latência. Quanto a uma meta diária, não costumo ter. Às vezes a data de entrega de um determinado texto condiciona uma rotina temporária e alguma meta. Mas isso acontece muito pouco.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu tenho pelo menos dois processos de escrita que estão condicionados ao que eu me proponho a escrever.
Quando escrevo poesia, costumo dizer que nunca paro de escrever o poema. O processo já é o texto. A escrita é apenas parte disso. O poema para mim sempre surge quando um punhado de palavras escapa magicamente de seu estado mais banal e castigado pelo uso e reassume o seu poder de latência. Depois que essa mágica ocorre (e eu não tenho nenhum controle sobre esse fenômeno), o meu trabalho de escrita não se diferencia do trabalho de minha mãe, por exemplo, que modela e costura roupas. Assim como ela, sigo alinhavando as palavras até chegar a um estágio em que eu possa vesti-las para me proteger do frio ou ficar bonito para sair.
O mesmo não ocorre quando o que eu vou escrever é algo mais acadêmico e ensaístico. Depois de ler pelo menos os textos mais centrais sobre o tema que vou escrever/refletir, não é problemático começar a escrever. O que acontece é que é natural para mim ir parando durante a produção desse texto. Parar para continuar a pesquisa sobre o tema, e parar para ler e reler o que já escrevi. Assim os textos não nascem em grandes torrentes, mas vão se compondo de sessão a sessão com doses às vezes grandes, mas quase sempre bem pequenas.
Eu me movo da pesquisa para a escrita quando sinto que tenho algo a acrescentar ou a ordenar do que já foi lido e refletido previamente.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para ser sincero, sinto que ainda não lido da melhor forma com isso. Essas forças da paralisia ainda atuam sobre mim de maneira muito efetiva, principalmente no tocante ao texto acadêmico. No entanto, aprendi a ser uma pessoa perseverante. De uma forma ou de outra (uma obsessão?), acabo por entrar em um caminho e segui-lo até resolver o projeto ensaístico/reflexivo que me propus. Já em relação ao meu trabalho com a poesia, entendi que não sou de todo um criador prolífico. E que isto não é propriamente um defeito. Posso passar meses sem escrever um único poema. Isso já me castigou mais. Atualmente consigo entender que a greve que eu mesmo me imponho de tempos em tempos é uma forma das palavras reivindicarem melhores condições de trabalho. Os industriais, os operários e os sindicatos que estão em mim precisam de um tempo de negociação para que a dinâmica da produção volte a funcionar a contento para todas as partes.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Costumo dizer que o prazeroso mesmo é rever e reescrever. Por isso, a parte da revisão e da reescrita compreende um tempo grande e feliz da fabricação do meu texto. E isso ocorre tanto na poesia quanto na prosa acadêmica. Mostro para poucos amigos. Só o fato de mostrar para eles já configura, inclusive, o estágio embrionário da publicação. Enquanto o texto não tiver aquela ordenação mínima que permite que uma outra pessoa além de mim compreenda pelo menos as ideias ou sentimentos mais basilares, enquanto não houver esta engrenagem mínima, eu prefiro não mostrar a ninguém.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Poesia normalmente vem primeiro no caderno. Mas isso não é uma regra geral e nem mesmo reflete uma ética. É apenas porque, da forma como o fenômeno da poesia se apresenta para mim, é necessário mesmo capturar isso da forma mais rápida possível. Por isso a caneta e o caderno são mais fáceis de acessar do que o computador, que precisa ser ligado, etc, etc. Às vezes também recorro ao bloco de notas do celular quando a caneta ou o caderno estão difíceis. No caso da prosa, criei realmente uma dependência do teclado do computador. Não consigo preencher muitas folhas de caderno à mão. Fico logo cansado e aborrecido.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias certamente vêm das relações que estabeleço com a vida, com as pessoas, com os livros, com a arte de um modo geral. Não sei se consigo chamar isso de “um conjunto de hábitos”, mas é verdade que, quanto mais tenho contato com as coisas que me interessam – amigos brilhantes, música, poesia, injustiças que me provoquem agir de forma justa –, mais sinto que, dentro de mim, se abre a trilha para a criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Penso que não houve, no curso desses anos, nenhuma mudança brusca na minha relação com a escrita. As mudanças que aconteceram operaram de uma forma tão sutil e silenciosa que sou incapaz de estruturar pontos dignos de nota. Uma vez escrevi um poema chamado “Adeus às armas”, e nele fiz uma analogia entre o personagem do romance de Hemingway e o meu ato/desejo de escrever. Há um momento da narrativa em que Henry está num barco remando por horas e horas contra a correnteza para poder salvar seu grande amor (e ele mesmo) da guerra. No poema crio isso: essa analogia entre escrever e remar (ambos com o imperativo de serem contra a correnteza e de realizarem algo como um ritual de salvação própria e de salvação do grande amor). Ainda penso que seja assim. Desse modo, a coisa que diria a mim mesmo se pudesse voltar no tempo dos meus primeiros escritos seria: continue remando.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Doutorado. Quero continuar estudando sobre as relações entre política, língua e poesia. Livro que gostaria de ler e que ainda não existe? Um livro que fale da classe trabalhadora feirense (minha cidade natal), seus hábitos gerais e seus sonhos específicos.