Diogo Locci é escritor e jornalista, autor de “Cruel” (Folhas de Relva, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Inicio o dia lidando com as demandas do trabalho formal e vou me contagiando ao longo dele com arte e literatura. Minha rotina pelas manhãs é bem pouco excepcional, até porque sou uma pessoa bem mais noturna. Aproveito as manhãs para tarefas de planejamento, de organizar as principais atividades que pretendo desempenhar no dia, seja de âmbito profissional ou pessoal.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Prefiro escrever pela noite, depois de já ter sido embolado pelo dia. Escrever com esse carregamento me ajuda a fazer mais associações e explorar os temas que estive pensando nas horas anteriores. O estado de corpo com que escrevo literatura me oferece um grau tão grande de liberdade que o cansaço não se torna impeditivo, pelo contrário – é quase um momento de recomposição em que posso tornar a escrita menos regrada do que na prática do trabalho como jornalista.
Sobre o ritual de preparação, gosto de alguma psicodelia ao redor. Luzes coloridas, música concreta e vídeos com desenhos distorcidos no fundo da tela criam uma estética que facilitam meu trabalho em literatura. Ambientes dispostos dessa forma aguçam minha criatividade e me tornam mais suscetível a pesar a mão nos absurdos e imagens grotescas que gosto de criar em meus textos.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tento escrever diariamente, mas fazendo questão de respeitar uma escolha que não nos é dada no dia-a-dia, que é acolher as limitações, sejam elas pelo cansaço, pelas tantas faltas que podem nos acometer ou pelo próprio desejo de não escrever naquele determinado dia.
Páginas inteiras ou poucas linhas são igualmente especiais para mim em sessões diferentes de escrita e faço questão de fazer com que a literatura não se torne uma busca por produtividade ou algum tipo de competição. Ao sentar para escrever, minha meta é engordar a história – e isso pode ocorrer tanto no texto final quanto em notas ou em percepções que me fazem escolher os caminhos novos pelos quais a narrativa vai fluir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu compilo as notas durante a própria escrita do texto literário – não sou capaz de compilar notas para depois escrever. Essa é, inclusive, uma forma de ir “corpando” as personagens ao longo do tempo. Gosto de entender algumas características temáticas do que estou criando para ir atrás de outras referências que se conectem com aquilo. Essas referências são de áreas distintas, como as artes plásticas, teatro, cinema e a própria literatura.
Meu processo de criação, portanto, existe num crescente de colagens que se sobrepõem enquanto estou escrevendo. Se percebo algum tipo de excesso, o removo durante as releituras, que servem também para reforçar algumas questões sobre as personagens que eu só desenvolvi com o texto geral já mais avançado. No mais, reforço a pluralidade de referências que compõem meus textos e que afetam minha criação. Há obras de artistas plásticos que inspiraram contos inteiros e peças de teatro que fundamentaram o tema de outros. São esses embolamentos diversos que mais me atraem.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sendo gentil comigo. Hoje entendo as travas como elementos que também compõem um projeto literário. É preferível olhar para elas, entender no que estão fundamentadas, para que seja possível entender as questões sobre as quais preciso me debruçar mais.
Prefiro jogar com a trava. Olhar para ela e fazer perguntas, em vez de ser categórico e reduzir uma experiência difícil em frente à tela a um bloqueio criativo ou procrastinação. Muitas vezes o que poderia ser lido por aí como tempo perdido se torna um novo tipo de invenção literária. Tropeçar no texto oferece certa resistência para não incorrer nos mesmos problemas das próximas vezes. E dessas próximas vezes, que sejam levados em consideração os novos problemas.
Sobre medos e ansiedades, tenho exercitado muito a ideia de que não é justo antecipar questões que estarão sempre fora do meu controle, como o desejo, a fala e o pensamento do outro. Deixo que as pessoas lidem elas próprias com as expectativas não atendidas e me concentro em criar trabalhos legítimos e honestos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Como o grande frequentador de oficinas literárias que sou, gosto de colocar o texto à prova. Isso fez com que eu criasse a prática de revisitar meus textos com frequência, editando quando preciso, e também de confiar a leitura a amigos e pessoas próximas das temáticas com que estou trabalhando.
Acho generoso esse momento de oferecer um texto que ainda não está pronto para que outra pessoa te escute. Dessa experiência, é possível entender as pulsações dos textos e como eles reagem “do lado de fora”. No processo de edição, sou favorável aos cortes brutos, ainda que isso cause dor em alguns momentos.
Na minha experiência, o intencionalmente bonito muitas vezes esconde apenas um narcisismo que interrompe as verdades do texto. Gosto de ler me removendo do texto, deixando nele apenas o que realmente interessa.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Prefiro escrever tudo no computador. As anotações imperdíveis ao longo do dia às vezes são feitas em cadernos, mas priorizo anotações no celular – inclusive faço parte do grupo de pessoas que tem um grupo no WhatsApp apenas com si mesmo. Não me vejo sendo a pessoa que escreve no papel para depois passar tudo a limpo no computador, embora acredite que essa prática gere ganhos no processo de edição e de escuta do texto.
Tento compensar essas perdas relendo o texto continuamente em voz alta. Tenho escrito por uma ferramenta chamada Scrivener, um organizador com funções muito interessantes para a escrita literária. Hoje posso afirmar que, no ambiente digital, me sinto mais confortável para sessões de escrita.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias para construção de textos costumam vir dos lugares onde localizo casos mais grosseiros de injustiça social – o que é muito fácil de identificar no contexto neoliberal e altamente violento que vivemos. Para que seja possível dar vazão dessas ideias aos textos, costumo praticar uma espécie de aprofundamento do absurdo. Penso em como metaforizar essa situação e é neste ponto que lanço mão do realismo mágico, fazendo com que uma discussão a princípio social também encontre uma simbolização poética. Essa captura me interessa demais e resulta na criação de textos com elementos fantásticos, como animais antropomorfizados, corpos com composições de gestos e movimentos impossíveis, reações humanas pouco naturais, tecnologias sufocantes e por aí vai.
A respeito dos hábitos, entendo que a minha criatividade está completamente associada a minhas incursões pela arte. Sou um frequentador assíduo de espetáculos de teatro, dança, cinema, shows, saraus e eventos culturais de modo geral. Busco o texto nesses espaços. É pela arte, certamente, que me mantenho criativo e também atento às discussões que compõem nosso tempo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Há dois fenômenos que marcaram mudanças profundas no meu processo de escrita dos últimos anos: uma delas eu credito ao Marcelino Freire, com quem tive o prazer de frequentar as tradicionais oficinas de escrita no centro cultural b_arco. Ao ler textos antigos que eu trouxe como uma espécie de contraposição ao que eu estava escrevendo naquele momento, Marcelino me ajudou a entender que eu tinha todo o direito de desburocratizar minha escrita.
Eu estava vivendo um dilema, pois os textos recentes estavam carregados de manifestações de realismo mágico, surrealismo e outros elementos do absurdo, enquanto os antigos tinham certa pompa, uma formalidade, como se eu estivesse escrevendo um folhetim no século XIX. Me desprender desse tipo de escrita renovou meu olhar para o que eu queria criar de verdade, além de me fazer entender que erudição não é, necessariamente, uma boa qualidade.
Outra experiência que deslocou completamente minha escrita para um outro lugar foi a aproximação com o ecossocialismo, uma corrente política que compreende o ser humano como parte indissociável da natureza e que luta para que as práticas neoliberais sejam superadas tendo em vista a necessidade de criarmos uma sociedade do bem-viver, livre de explorações e opressões. Essa pesquisa me orientou inevitavelmente à perspectiva de povos originários, que oferecem um exemplo abundante de comunhão, pertencimento e preservação da natureza.
Essas aproximações fizeram com que minha escrita ganhasse novas prioridades e isso afeta processo, conteúdo e forma. Não foi possível escrever nenhuma página do mesmo modo depois de ler Ailton Krenak dizer que pedras, montanhas, árvores e rios são parentes, não coisas.
Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, procuraria compreender a literatura como um ato de solidariedade para propor novos entendimentos de mundo e reforçaria o meu desprezo à vaidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um livro composto por descrições detalhadíssimas de instalações artísticas de grande porte criadas em algum museu bizarro. Queria que houvesse pouquíssima ação nesse texto e que ele friccionasse ao máximo a relação da escrita poética com as artes plásticas. Escrevo isso e penso logo n’As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino.
Um livro que quero ler, mas que ainda não existe, é um tratado não-ficcional que registre o processo de implementação, no Brasil, de um sistema político, econômico e social antiopressões, solidário, ecológico e construído pelo e com o povo. Desejo que nesse tratado haja o registro da contribuição imensa dos povos originários para a construção de uma cosmovisão do bem-viver e que, finalmente, seja um absurdo pensar de novo que precisamos pagar por qualquer direito básico ao bem-estar e à sobrevivência.