Diego Guerra é escritor de fantasia, horror e ficção científica.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina da manhã é bastante organizada. Como o telefone ainda não começou a tocar, é o momento ideal para deixar as coisas em ordem. Acordo cedo. Um pouco por hábito, outro tanto por causa das minhas cachorras que pedem para passear. São quarenta minutos de caminhada, que aproveito para pensar e onde normalmente tenho algumas ideias. Tento ficar longe do celular nessas voltas, para ficar atento ao que acontece ao redor – nunca se sabe onde uma ideia está a espreita –, mas confesso que nos últimos tempos isso não tem sido tão simples. Quando volto, alimento as cachorras e faço o café. Com uma caneca de café quente eu me sento para tomar notas de qualquer ideia que tenha surgido na caminhada. É quando o dia realmente começa. Tento manter essa parte do dia para escrever sempre que possível. Melhora muito o meu humor começar o dia escrevendo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu sou designer. É com design que eu pago o aluguel, compro livros e coloco ração no pote das duas endemoniadas caninas aqui em casa. Minha rotina é uma loucura e eu normalmente não sei que horas meu dia vai terminar, mas ele geralmente começa as 9:30, então aproveito a manhã para me dedicar a escrita. Quando não estou enfiado em nenhum projeto longo, o período das 7:30 as 9:30 são dedicados ao conteúdo do meu site, contos curtos para a minha newsletter e crônicas. Quando estou envolvido em algo, tento me manter mais focado, pois tenho tendência a fazer milhares de coisas ao mesmo tempo e não terminar nada. Minha preparação para escrever envolve tentar me isolar completamente do mundo ao redor, eu me distraio com facilidade, então procuro eliminar qualquer tipo de interferência exterior. As manhãs são a melhor parte do dia, mas sempre que consigo um tempinho, também escrevo durante o dia. Já tentei produzir mais durante a noite, mas para mim é um período bastante sofrido, pois normalmente estou cansado e as ideias não fluem ou, quando fluem, precisam ser completamente revistas pela manhã. Meu ritual é estalar as costas, sentar o mais ereto possível e beber alguma coisa quente. De preferencia café. Depois é martelar as teclas o mais rápido possível antes que alguém me interrompa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu gosto de escrever todos os dias. Fico mal quando não consigo. Fisicamente mal. Sinto como se tivesse jogado metade da vida fora se não escrevi nenhuma linha. Se acumulo muitos dias sem escrever a coisa pode ficar bastante séria. Escrever me ajuda a combater a ansiedade e a depressão, então vai um pouco além de um passatempo, é a minha terapia. Mesmo quando estou escrevendo sobre monstros do espaço ou cavaleiros demoníacos, sinto que tem algo dentro de mim que é exorcizado no processo. Se não escrevo isso acumula. Minha meta de escrita diária é de mil palavras, mas se estou concentrado em um projeto, posso dobrar esse número. Para não ficar muito pesado as vezes divido essas palavras em três partes 500/250/250 e os distribuo ao longo do dia, mas isso é mais fácil quando eu já sei o que eu preciso escrever. Se estou em busca de alguma ideia o melhor mesmo é sentar e escrever tudo de uma única vez. É assim que escrevo a maioria dos artigos do meu blog, as crônicas quinzenas e os contos da newsletter. É a forma que eu encontrei para não alongar demais uma história que precisa ser curta, porquê tenho tendência a ser prolixo e isso quase nunca é algo bom.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bem, acho que existem dois processos aqui. Quando a ideia me encontra e quando eu encontro a ideia. Quando a ideia me encontra, costumo me sentar e anotar o maior número de coisas aleatórias que puder. Prefiro fazer isso a mão, me parece mais orgânico. Frases soltas, dicas de pesquisa, desenhos, citações, livros de referencia. É bem emaranhado e caótico, depois tem um processo de colocar em ordem para entender onde está a história. Um exemplo disso é “Quando Deus surgiu no canto do meu quarto”, conto que publiquei na Gazeta Ordinária N. 37. A ideia brotou quando vi uma pequena aranha em sua teia, quieta e vigilante e a frase “Quando Deus surgiu no canto do meu quarto” brotou espontaneamente. Quando sentei para anotá-la, me vieram outras referências. Uma letra de musica, uma cena de filme, memórias do meu próprio passado, algumas referências do presente. Era um caldeirão de ideias que foram se ajeitando, como um quebra-cabeças, até que o conto fizesse sentido, a partir disso foi só escrever e lapidar.
Já quando estou procurando uma ideia, o processo é um pouco mais organizado. Eu me sento e escrevo uma lista de ideias que estão passando pela minha cabeça. Tento ser o mais simples possível, para criar um bom número. Também tento nãofugir das ideias obvias. É bom já anotá-las para elas não ficarem perturbando por muito tempo. Se você pegar meu caderno de anotações, ele vai estar cheio tropos e clichês bastante óbvios. Herói parte para salvar a princesa? Tomo nota. Robô se rebela e planeja destruir a humanidade? Tomo nota. Anotar as ideias ruins ajuda a tirar a pressão de achar que todas as ideias precisam nascer boas. Se você anota ideias ruins o suficiente, uma boa logo aparece. A partir do momento em que encontro a ideia, por alguma razão ela costuma vir junto com o título. Já escrevi sobre isso no blog, por alguma razão sinto que o título dá vida a história. Com a ideia e o título, eu escrevo o resumo da história e identifico onde vou precisar de mais pesquisa. Geralmente sinto muita necessidade de pesquisa nos detalhes mais bobos, por exemplo: quando escrevi o Gigante de Guerra gastei um tempo considerável tentando entender o processo de cultivo de milho, mesmo isso aparecendo muito superficialmente na história. Os detalhes me ajudaram inclusive a saber o que eu podia evitar de contar enquanto estava escrevendo. As vezes a pesquisa é isso: descobrir o que não interessa. Como gosto muito de ler sobre assuntos aleatórios, eu prefiro deixar o grosso para pesquisar enquanto estou escrevendo. Faço isso porque sei que nunca vou me sentir absolutamente seguro para começar a escrever e para não ficar preso no eterno ciclo de pesquisas. Você começa se perguntando a época do ano em que deve-se plantar o milho e termina em rituais astecas de sacrifício ao sol. Deixo então para a pesquisa acontecer para resolver dúvidas pontuais. O que é bom e ruim ao mesmo tempo, pois as vezes descubro algo que me faz ter que voltar ao início do trabalho e refazer o que antes parecia correto. Começar a escrever é bastante fácil, difícil mesmo é terminar, porquê estou sempre empolgado com a próxima ideia. Então tento ser rígido comigo mesmo, para me obrigar a terminar as coisas antes de começar algo novo. Quase nunca funciona.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Lido mal (rs). Não tenho nenhum problema com as críticas, em nenhum sentido. Já teve gente que leu meus livros e odiou, me disse e por mim tudo bem. Já teve gente que adorou e mesmo assim me mostrou problemas que eu tentei consertar no que escrevi depois. Nesse ponto sou um cara bastante tranquilo, sei que não vou agradar todo mundo e sei que nunca vou atender as expectativas dos outros. Essa parte é simples, porquê no fim das contas ninguém vai ser mais crítico do meu trabalho do que eu mesmo. A minha ansiedade é totalmente voltada para que as pessoas me leiam, não para que elas gostem do que eu fiz. Se a pessoa dedicou seu tempo a ler qualquer coisa que eu fiz é um prazer ouvir sua opinião, não importa qual seja. Escrever é um trabalho muito solitário, exceto quando o leitor entra no seu universo. A companhia pode ser fugaz e até mal educada, mas se deu ao trabalho de chegar até ali, eu espero que pelo menos fique para tomar um café.
Depois de anos eu entendi que as travas me pegam quando estou ansioso e cansado, então eu tento combater esses dois problemas para seguir adiante. Ajuda muito tirar a pressão de que você tem que ser genial o tempo inteiro, então as vezes me divirto escrevendo coisas idiotas, ou descrevendo fragmentos do dia apenas para manter o mecanismo em movimento. Procrastinar, pura e simplesmente, não é algo muito comum. O que é mais normal é eu perder meu senso de prioridades e começar um projeto novo sem terminar o anterior. As vezes me perco em tarefas que são completamente estapafúrdias. É meu jeito de fugir de uma tarefa, procrastinar sem me sentir culpado por isso, mas eu conheço esse mecanismo e sei que no fim é só cansaço, então tento encontrar alguma tarefa simples que me ocupe sem exigir demais da minha mente. Pode ser limpar a casa, podar o jardim ou organizar os livros. Tento deixar o cérebro o mais ocioso possível para ele ganhar um fôlego e voltar ao trabalho. Se esse intervalo durar muito, porém, eu posso tentar outros caminhos. Gosto de fazer listas de ideias, revisar trabalhos antigos ou conversar com amigos sobre alguma ideia que não sei onde vai dar. Nenhuma receita é 100%, mas tudo isso ajuda bastante.
Sou um cara bastante espaçoso. Gosto de histórias grandes. Gosto de ter tempo para desenvolver o enredo e apresentar os personagens, meu desafio sempre foi tentar não me alongar demais e existem pouquíssimos casos em que não ache que algo que escrevi ficou mais corrido do que eu gostaria. Minha sorte é que eu sou bastante organizado em minhas histórias longas. Antes de sentar e escrever de verdade, eu faço uma detalhada escaleta do livro todo, cena por cena, de forma a ver o livro inteiro antes mesmo de começar. Precisei ser assim para as coisas terem fim, ou eu as escreveria eternamente, acrescentando mais e mais histórias e personagens, dentro do livro. É minha forma de controle, mas todo controle é uma ilusão.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende. Depende muito. O Teatro da Ira teve uns dez tratamentos antes de ser publicado. O Gigante da Guerra teve dois. Acho que três é o número mágico, mas não me importo de fazer mais do que isso. A continuação do Teatro da Ira já teve quatro tratamentos e eu ainda não estou feliz, então me parece quase inevitável que uma quinta revisão aconteça. Olha, eu mostro meu trabalho sempre que encontro alguém disposto a ler e me dar ideias sobre ele, mas a verdade é que poucas pessoas tem tempo e disposição para isso. A vida anda corrida para todo mundo e não tenho nenhuma vontade de ficar cobrando as pessoas sobre respostas que me prometeram. Acho, porém, que essa leitura é bastante útil e necessária, então tento que alguém leia pelo menos a versão final antes de uma publicação impressa. No mundo ideal eu teria dinheiro e tempo para passar todos os trabalhos por uma leitura crítica remunerada para dar certo, quem sabe até um revisor para colocar minhas vírgulas no lugar e me impedir de passar vergonha, mas o mundo está longe de ser ideal, então eu caço os amigos e torço por respostas, o que não deixa de ser bastante frustrante. Para os textos online o tempo torna ainda mais complicado, pois raramente tenho o texto da semana pronto muito antes do prazo de publicação, se um dia conseguir adiantar (risos nervosos) duas ou três edições da Gazeta Ordinária, talvez encontre alguém disposto a ler antes dele ir para o ar. Até lá, sigo lidando com a frustração de achar ruim, depois de ser tarde demais.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu gosto de escrever a mão, mas sou um cara prático. Tenho blocos de notas espalhados pela casa toda, porém o jeito mais rápido de ter algo pronto para mim ainda é o computador. No geral, o papel fica para tomar notas rápidas ou para escrever um trecho de história quando estou afastado do teclado. Acho lindo quem consegue ter o livro escrito a mão antes de se sentar no computador, mas para mim isso é impraticável, até porquê eu acabo trabalhando com varias versões do livro, o que fica mais fácil “salvando como” do que abrindo um novo caderno.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Hum, acho que essa é a pergunta de um milhão né? Dá para encontrar ideias em todos os lugares, basta ficar atento. As vezes é uma frase solta, as vezes é algo que você viu. Escrever acaba envolvendo muito mais do que simplesmente escrever. Boa parte do trabalho é pesquisar e observar, então sinto que as vezes estou sempre trabalhando em alguma ideia. Eu anoto tudo o que me chama atenção em um filme, em um personagem ou na conversa das pessoas do bar. As vezes fico encantado com uma ilustração, ou algum tutorial da internet. As ideias costumam surgir da associação de outras ideias, então é importante você alimentar o caldeirão. Acho importante a gente consumir de fontes diferentes. Se eu escrevo histórias de terror, não adianta ficar lendo apenas histórias de terror. As histórias mais horribilantes que eu li, não estavam em livros de terror, por sinal. Ao mesmo tempo, você não pode simplesmente ignorar o gênero que você escreve só para não ser influenciado, conforme já vi alguns autores defender. A cópia surge da limitação, não da soma. Quanto mais fontes você encontrar, mais ideias terá. Outra coisa é entender que nem todo mundo consome a mesma história da mesma maneira, então mesmo que você tenha lido a série Harry Potter sua fanfic vai ser diferente da fanfic do seu irmão que também leu a mesma série ao mesmo tempo que você. Isso porquê o que te atraiu não necessariamente é o que atraiu o seu irmão e o que você quer aproveitar certamente não vai ser o mesmo que ele quer. Então, eu goto de consumir de tudo, até livros e filmes ruins. As vezes o resultado não agrada, mas ainda tem algo que vale a pena. As vezes basta entender o que não funcionou, para você encontrar uma maneira que faça funcionar. E a sua ideia pode estar ali.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou é que eu fui conseguindo ao longo do tempo terminar mais e mais coisas. Tenho pilhas imensas de trabalhos não finalizados. Centenas de ideias pela metade, projetos que eu finjo que vou tocar um dia. Hoje consigo ser mais assertivo e me cobrar um pouco menos. A máxima “é melhor feito do que perfeito” foi algo muito difícil de aprender, mas também se tornou bastante libertador. O que eu gostaria de ter feito desde cedo é terminado mais histórias. Até as ruins. Talvez principalmente as ruins. Para elas não ficarem me atormentando por tanto tempo como se tivessem salvação. Depois que você começa a terminar os projetos, as coisas vão lentamente se organizando sozinhas. Você aprender o que funciona ou não funciona, o que gosta e o que não gosta, mas o mais importante é que o peso daquela história se acaba e você pode se dedicar a outra ideia, outra história, outro desafio. Acho que, sinceramente, é a única coisa que eu tenho para ensinar a minha versão mais jovem, porquê de resto eu continuo aprendendo. Talvez exista algumas coisas que a minha versão jovem poderia me ensinar também, por exemplo: não pense demais. Escreva com raiva, deixe fluir. Acabei perdendo um pouco da espontaneidade da escrita. Tento recuperá-la, mas é algo difícil de ter de volta uma hora que se vai. Quando a gente é inexperiente a gente se permite errar mais, o que nos traz muitas ideias boas. Quando ficamos mais velhos, aprendemos o caminho das pedras e não nos arriscamos tanto. É o maior erro que se pode cometer.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tenho uma série de contos de ficção científica que se passam durante a ditadura militar, que eu gostaria muito de tirar da gaveta um dia. Também gostaria de fazer uma HQ, talvez só para realizar um antigo desejo. Essa pergunta sobre o livro que eu gostaria de ler eu sempre me faço e me motiva a escrever também. O Gigante da Guerra nasceu mais ou menos dessa pergunta: o que acontece com as pessoas que não participam da grande aventura? Depois que o herói sai de casa para atender “ao chamado”, o que acontece com quem fica para trás esperando? Foi daí que veio a ideia de escrever sobre essa família, em um universo fantástico, que se vê despedaçada e tenta sobreviver. Tem alguns livros que eu gostaria de ler, não existem, mas eu acho que não sou a pessoa certa para escrever. Por exemplo: gostaria que alguém usasse o Monteiro Lobato para escrever uma história de terror, aos moldes do que foi feito com Lovecraft Country, aproveitando para discutir o racismo da obra. Eu poderia fazer isso, mas acho que essa ideia seria melhor aproveitada por quem tem mais a dizer sobre o assunto, então eu espero e cutuco os amigos para ver se alguém se anima. Se alguém se animar em escrever sobre isso, lendo essa entrevista, por favor me avise, vou adorar ler.