Dheyne de Souza é escritora.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
quanto à rotina matinal, na verdade varia muito, para mim, conforme as estações da vida, parece que cada vez mais aceleradas. atualmente, tenho acordado bem cedo, umas 4h (a essa altura, já deixei pra lá o muxoxo com a insônia, eu apenas levanto quando consigo distinguir aquele limiar represado entre o sonho e a realidade – mas isso de pesadelos políticos e patriarcais é papo pra outra hora), faço o café sem açúcar, fumo o cigarro e aí, na melhor das hipóteses, ligo o computador e começo a trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
o horário que mais gosto de trabalhar é de manhã. gosto muito da solidão, do silêncio da madrugada. costumo levantar e ficar no escuro, olhando a mobília desvendar-se, tentando ouvir as vozes da cidade, catando sinal de pássaros, domando mal os pensamentos, lendo. quem sabe seja isso uma espécie de ritual? não sei. ultimamente, deixar algum arquivo do word aberto ou um caderno e lápis à mão já funciona como tentativa de preparação para a escrita, uma maneira, meio que trivial, de vencer os obstáculos que a gente e as situações nos colocam, né? não tem sido fácil escrever nas condições atuais sanitárias, sociais, políticas, enfim. sobreviver e ter fôlego e força de atirar palavra. preparar a palavra. pensar. por isso que eu acho que escrever é também resistir – e que resistir não é um estar passivo, nem ileso.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
de meta, gosto de metalinguagem. não funciono bem com pressões quantitativas. até porque varia muito para cada projeto. cada poema, cada narrativa tem uma construção própria. por exemplo, estou em um projeto de romance que vem desde a véspera das eleições de 2018. no início, tinha dia que escrevia bastante, em termos de páginas, já outro dia trabalhava mais tempo nas releituras e reescritas. gosto muito de ficar parada em frente às palavras, tentando vasculhar outras formas de dizer ou de ocultar no seio ali da letra, do som, da ambiguidade, sabe? tanto na poesia quanto na prosa. hoje em dia, há muito mais vãos tanto ao escrever no “papel” quanto ao escrever no pensamento. mas acho normal esse tipo de declive no processo. eu já comecei esse livro tendo em conta que seria um caminho bem longo. nunca consegui escrever um romance. já tive umas tentativas que “falharam”, digamos assim, dando em outra coisa, o que às vezes também é legal. há tipos de textos que demandam mais, não é? quando fico algum tempo sem retomar esse romance em processo, sinto que a personagem se distancia um pouco – e às vezes se arisca. aí preciso escutar mais, tatear os fios, voltar à primeira linha como se fosse a primeira vez. eu gosto disso, para falar a verdade. afastar um pouco para ver de outros modos. incorporar isso ao trabalho.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
também varia muito para cada projeto. às vezes é muito difícil começar a escrita, às vezes é difícil não começar. tem poemas que não ficam prontos já há anos, deixo guardado, outros explodem. acho que cada trabalho tem a sua forma de indignação diferente, para mim. tenho um poema, o “80 tiros”, que foi assim uma experiência extremamente forte escrevê-lo. veio toda a revolta, a dor, a angústia com a notícia. li muitas reportagens, fiz associações com outros eventos similares, com declarações governamentais, com referências, com outros gritos. pesquisei tantos nomes que a gente tem pra prescrever a justiça no papel. isso gerou um grande acúmulo de indignação na garganta. foi difícil não começar a escrever esse poema. não houve uma linha que saiu seca. é um poema em que eu quis escrever a palavra “oitenta” oitenta vezes, pensando que a situação é muito mais dolorosa que dizer isso, ouvir o eco. até hoje é muito difícil para mim relê-lo. há poemas que, faz pouco tempo percebi, que evito até mesmo ler, como o “in memoriam”. às vezes nem é o começo que é o mais difícil.
quanto a projetos de narrativa (digo isso mesmo que reconheça que não tenho capacidade nenhuma de definir diferença entre prosapoesiapoemaversoetcetera, falo assim mas nem sei do que se trata, acho muito perigoso, aliás, esse negócio de entrevista, então reticências, rs), já fiquei muito tempo pensando personagens, deixando às vezes a vida movimentar esses descobrimentos. vou escrevendo no pensamento, deixando a coisa tomar formas, depois é que vou arriscando grafar. tenho aprendido a não me afobar mais com isso. os textos demandam, não é? tenho tentado conviver melhor com as fraquezas e as coragens. tempos de congestionamentos. procurar não asfixiar demais a linguagem faz parte também do labor, eu acho. ou asfixiar-se. são os riscos. variáveis.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
hoje em dia, acho que encontrei maneiras de lidar, no sentido de assumir que acontece isso mesmo. acontece de travar. pode ser uma espécie de anestesia, uma espécie de medo, uma espécie de falta nas necessidades básicas. depende. tenho achado que é também uma espécie de coragem resistir à angústia dos buracos. sempre tive esses vãos entre escritas. já me desesperei muito, porque nem sempre o vão está vazio ou o caos quieto. às vezes a gente não consegue mesmo, falta tempo, falta ar, falta palavra. esses dias estava pensando que, na situação atual tanto de pandemia quanto de estupidezcrueldadecrime governamental, falta mesmo formação de sílabas pra descrever as experiências, as emoções. sobreviver. a cada instante. em cada lugar. difícil dizer disso. comigo, percebo que, quanto mais alimento a convivência com leituras ou outras produções artísticas, mais consigo expressar alguma coisa de alguma forma. nesse ano que acabou de acabar ou não, 2021, também tive contato com escritores, especialmente escritoras, seja em oficinas, seja em linhas ou redes, que dão uma espécie de fôlego, de coragem, de sentimento de estar junto, de compartilhar experiências sobre a vida, sobre a tal da poesia. pra mim, foi uma grande ajuda pra destravar a indignação. precisamos gritar, por que não? e ouvir os gritos. eu acredito nisso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
releio, reviso, reescrevo várias vezes. gosto de fazer isso, acho a parte mais prazerosa do trabalho. e também gosto de mostrar para as pessoas. envio para amigos, publico no blog, nas redes. eu estou agora com uma narrativa (que se tornou uma espécie de gesto falhado de uma tentativa de romance, de que comentei antes) quase pronta. tem alguma coisa ali que eu ainda não sei o que é que não está me dando essa sensação de é isso. nesses momentos, que são recorrentes pra mim, gosto de mostrar para alguém. não sei exatamente se para ouvir, se para partilhar, se para conversar. gosto. então, eu quero reler mais um pouco essa narrativa que estou escrevendo e depois tentar mostrar para mais alguém. um amigo leu, trouxe considerações valiosas. agora encasquetei comigo que quero mostrar para uma amiga, e ver como isso chega na mulher. gosto de ouvir versões, trocar ideias, comentar processos. sou muito curiosa de ouvir o que a outra pessoa pensa do texto, como ele chega, o que evoca, o que bate, o que vivencia nela, sabe? quando alguém tem uma interpretação que eu nem imaginava, nossa, fico entusiasmada. não sei também se é uma forma de acreditar que o texto funcionou de algum modo. será? então, essa narrativa está um tanto conturbada. comecei em 2015, a todo vapor até 2016, com a ilusão de ser romance. então naufragou. retomei em 2019, atolou em 2020 e hoje está assim em releitura e dúvida do fim. com essas metáforas, eu me lembrei destes versos do henri michaux que às vezes me atracam: “um dia. um dia breve talvez. um dia eu arrancarei a âncora que mantém meu navio longe dos mares”. e agora da hilda hilst: “me deixa, me deixa, me deixa escrever com dignidade”.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
tento manter uma relação, ainda que instável, com a tecnologia. sou da era dos blogs, tenho um até hoje. tenho um canal de leituras de poemas no youtube, redes sociais. mas ultimamente tenho estado menos on. acho que, com a exigência de trabalho remoto, com grande parte do tempo em frente a telas, a gente se cansa mesmo, né. eu tenho me sentido assim. inclusive, tenho me apegado mais ao papel, tanto para leitura quanto para escrita. meus rascunhos são tanto à mão quanto no computador. depende muito. mas gosto mais do papel. o computador entrou depois da máquina de escrever na minha vida e bem antes dela a folha. desenvolvi um afeto por caderno mesmo. gosto de escrever na margem, fazer setas, arquitetar formatos e cores, inclusive guardar esses arquivos de processos. prefiro escrever no caderno e depois digitar, mas isso também não me impede de já partir diretamente pro computador, onde também me ajeito, sendo maníaca de pastas.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
de onde vêm as ideias? posso ficar horas pensando nisso e mesmo tentando escrever divagações disso. mas não sei exatamente se tenho hábitos. acho que o hábito da leitura é intrínseco ao da escrita. e isso é muito variável nas estações aceleradas da vida, como comentei antes. nesse 2021, tive um hábito predileto: trocas de experiências de vida, de escrita e de construção de textos, principalmente com mulheres. foram partilhas muito valiosas para mim e que me deram fôlego e coragem nesse ano. por isso, agradeço, especialmente, à turma do clipe 2021, da casa das rosas. os encontros, mesmo que virtuais, foram das melhores experiências que já tive, das melhores aprendizagens com pessoas extremamente potentes e com ganas de explodir de dentro, por exemplo, estacas de patriarcado. muitos versos fincaram em mim, como o de pollyana sousa: “todos os caminhos levam à sarjeta”. ou de daniela rezende: “uma mulher um exército”. seria muito difícil aqui explicar como, mas essas presenças, as mulheres, as histórias, e a poesia por trás de tudo isso, não me deixaram cair em muitos momentos. esse vínculo, essa rede, esse forte, sabe? “eu lhe havia falado por lealdade as mulheres precisam se dar as mãos”, simone de beauvoir.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
acho que muita coisa mudou. pensando aqui me vem a atenção com a linguagem. passo cada vez mais tempo em frente a cada palavra. os temas também vão se movimentando dentro e fora de mim, o que mobiliza o processo, o olhar, o pensar. do meu primeiro livro, “pequenos mundos caóticos”, de 2011, para o outro, “lâminas”, de 2020, algumas pessoas comentaram sobre a preocupação crescente com questões sociais. dentro do último livro mesmo, que reúne poemas de vários anos, dá para sentir essa movimentação. gosto de pensar nisso, menos por arrependimento de um poema ou outro e mais pra incorporar esse exercício ao processo de escrita atual, um refletir. gosto de sentir que a escrita se movimenta, porque se movimenta, não é? tropeça, acerta o passo, quebra o verso, muda. hoje vou pensando assim, tentando tatear a estrada, mas já tive muita dificuldade de publicar, mostrar, dar o texto a lápide. o que diria a mim mesma se pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos? coragem. às vezes fico pensando no quanto de insegurança e de medo não vem de um mundo que sempre vem nos impedindo de falar, de atuar, de existir. libertar a coragem, talvez dissesse assim, bancar utopias, ajudar a construir a era feminista que vem aí.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
nossa, são vários projetos. o primeiro que me veio à mente é algo que tenho vontade de fazer há tempos. munir-me de caderno e caneta e atravessar este país, especialmente as cidades menores. quando a ideia surgiu, pensei em sair do coração do centro-oeste, goiânia, indo ao nordeste e norte. de jipe, de carona, de poesia, há várias versões para esse projeto. sem relógio, sem agenda, sem meta. procurar um lugar com um banco vago, sentar e ouvir. ouvir as histórias das pessoas. escutar as culturas, os tons, os segredos. olhar nos olhos. lê-los. interpretar esses riscos. escrever anotações e, então, quem sabe não sai outra expectativa de romance daí?
achei muito divertida essa pergunta de um livro que gostaria de ler que ainda não existe. achei que nunca tinha pensado nisso, mas já. gostaria de ler a versão de diadorim do grande sertão. a grande vereda.