Demétrio Panarotto é escritor, poeta e professor de roteiro na UNISUL.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não crio uma tensão. Penso sempre em uma distensão. Mesmo que as duas situações, tensão e distensão, possam ocorrer, porque não, ao mesmo tempo. No caso do texto, especificamente, a escrita tensa pode ter um enlace amoroso com a escrita relaxada. Parto da ideia de que o óbvio é que as coisas não saíram dentro do combinado (para dizer a verdade, num país como o Brasil ruína e flores sobre os caixões, surpreendo-me quando as coisas acontecem conforme o planejado). Em algum momento aprendi a não sofrer com isso, in média rés, ao invés de cobrar algo, procuro respeitar o lugar do outro nesse processo (que passa por lugares e condições absurdamente diferentes das minhas), afinal, os projetos também dependem de outras cabeças pensantes para a sua execução. No meu caso, notadamente, para além daquilo que é o espaço de escrita que, na maioria das vezes, é solitário, adoro compartilhar ideias e transformá-las em projetos coletivos. Até porque, essa ideia do autor(a), do escritor(a), de um nome à frente de um coletivo, já ruiu junto com a sociedade, mesmo que essa mesma sociedade siga, e o presidente em exercício é o exemplo maior disso tudo, alimentando-se sedentamente dessas falências. Nesse exato momento, para além do Quinta Maldita, um programa/sarau de poemas e vozes e gritos e balbucios e gaguejadas que acontece semanalmente, reunindo em média 15 poetas por semana, e das aulas remotas na universidade (que me tomam um tempo considerável do dia), escrevo um livro em parceria com o meu irmão; com o Roberto ainda, projeto Irmãos Panarotto, preparamos outros dois Eps (talvez três, ou quatro) em parceria com o Flu, Thomas Dreher, Carlinhos Carneiro e outros personagens; tenho dois livros que devem sair esse ano, um deles uma novela com imagens de Victor Zanini e um outro de poemas; e mais dois filmes, curta metragens que foram finalizados e que em breve estarão circulando.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O projeto inicial é se manter vivo. Ou seja, não há um planejamento exaustivo. Há ajustes do tempo no tempo, não mais que isso. Acredito que a escrita, como a vida, seja percurso e as frases emblemáticas, de abertura ou de encerramento, movimentam-se no percurso. Penso nelas como diálogo de tantos outros textos que compõe o lugar da minha própria escrita, bem como, imaginando como diálogo com a escrita dos outros, outras. Assim, percebam, poderia (como fechamento da resposta) ter terminado na frase que se formou antes do último ponto final, do mesmo modo que posso terminar dizendo que protelo o texto pois ainda não encontrei um bom desfecho. Posso, ainda, contraditoriamente a tudo que escrevi como resposta, dizer que trabalho efusivamente na construção das duas, da que abre e da que fecha. Mas percebam que tudo isso é texto. É fluência. E pode ocorrer, acrescentando uma boa dose de ironia: com muito amor para agradar as pessoas que compram o amor; ou com um bom bocado de ódio para agradar as pessoas que compram e vendem o ódio em pastilhas, boletas e boletos, nas igrejas, nas farmácias ou nos bancos mais próximos (ou nas redes sociais).
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Preciso de silêncio do mesmo modo que preciso de barulho. Depois que a ideia se configurou, ou seja, que eu sei do que se trata o projeto e por onde imagino que o texto se movimentará, o local de escrita, alimentado por ruídos e silêncios, compõem diálogos. A exaustão pode vir, de modos diferentes, pelo excesso que os dois provocam. Isso é parte do exercício. Não desconsidero, é claro, que há momentos em que a precisão e os detalhes cobram mais silêncio do que barulho, ao mesmo tempo e de outra maneira, que o ruído desesperador de uma máquina de cortar grama no vizinho, que ruge a partir das sete horas da manhã e só vai parar perto do meio morno dia, pode produzir expressões inomináveis e que cabem muito bem na fala de uma personagem ansiosa e repleta de síndromes dadas de presente a cada momento da vida por conta das rotinas, das expectativas e do tempo como demarcador de resultados (filho do capital).
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Faço exercícios. Leio.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Os textos que mais gosto são aqueles que eu ganho de presente. São vários, mas desdobro um deles que será publicado em breve e que é baseado em uma história do cotidiano. Recentemente, no interlúdio de uma anedota privada, o síndico do prédio, que jura que não é fascista, propôs — e entendo o motivo, pois a saída do cano de descarga, no subsolo do prédio, entupia direto por conta de papel higiênico, absorvente, camisinha não e outras cositas mais — propôs (em uma reunião, acho que foi numa reunião), veja, vou repetir, propôs distribuir rolos de papel higiênico de cores diferentes para tentar descobrir de que lado vinha mais merda do que o combinado. Desse modo, os moradores dos quatro configurados lados dos apartamentos receberiam: finais 01, rolo azul; finais 02, rolo verde; finais 03, rolo laranja e finais 04, rolo vermelho. Perceberam a musicalidade do acontecido? Como é que vai se brigar com um síndico desses? Passei quatro dias rindo e a espera das manifestações das demais personagens, no caso, das antagonistas, na sala de cinema do grupo de whats app do prédio. Até que uma boa alma emergiu do silêncio, toda constrangida, e disse, com as palavras medidas para não constranger ninguém, que corria o risco das pessoas precisarem, por conta da pandemia e de não poderem sair de casa, de papel higiênico emprestado e por conta disso trocarem os rolos e, no entremeio, a proposta sincera do bom samaritano corria o risco de não dar certo. No final, seguem buscando uma alternativa. o que me assusta é que em meio aos solilóquios, há gente que ainda precisa de entorpecentes. Jesus!
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Num país de não leitores (no máximo leitores de autoajuda, de livros que contam a história de alguém e de whatsapp), as pessoas se acharem autores e responderem como se fossem um ou uma, acho o ó do borogodó. Ao mesmo tempo, as pessoas podem achar o mesmo da frase que versejo na sequência: o único leitor ideal que mantenho, com o paredão da arrogância, sou eu mesmo. Para além disso, quando encontro um (alguém que leu um texto meu) caio numa felicidade tão grande, mas tão grande mesmo, que o processo de escrita já está mais do que justificado. Gosto da ideia, para arrematar a resposta, que Peter Sloterdijk monta a partir de Jean Paul e que recupero com certa frequência, de que os textos são cartas de amor. Acho que é esse o ponto, endereço cartas de amor à leitores e leitoras imaginários(as) – algumas delas românticas ao meu modo. Quem sabe essas cartas encontrem alguém. Se naufragarem, num deserto hipócrita e demagogo, não deixaram de cumprir o seu propósito.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Preciso confessar que sou um explorador de leitores indefesos, de todos os tipos. Mas gosto mesmo de opiniões que surjam dos lugares mais improváveis. Não suporto muito os chatos de carteirinha que compõem o mundo do, ah, nossa, você precisa cuidar disso, daquilo, está faltando algo, e, ou, você não escreve sobre os temas da atualidade nem sobre os assuntos que as pessoas supostamente, a partir de alguma pesquisa, não sei, sei lá, querem ler. Gosto dos leitores improváveis, que em algum momento falam aquelas coisas que fogem ao bê-á-bá, do tó tó tó tó tó tó tó tó tó, do tik tok literário. Ao mesmo tempo, e faço uma pausa e reverência, sou grato a todos eles e a todas elas que de alguma maneira, seja nos rascunhos ou mesmo nos textos lançados, criaram relações, possibilidades e que apontaram detalhes que não percebia.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Comecei a me dedicar à escrita no momento que percebi que gostava de observar o mundo que me rodeava. E, para ser meio sincero, acho que ouvi o suficiente. É necessário saber filtrar. Em alguns momentos as cobranças no espaço literário são tão militares quanto os militares que hoje ocupam o governo militar bem mais militar do que na época em que vivíamos sob uma ditadura militar (se é que entendem). Para tudo, e a Literatura não escapa disso, as pessoas estão à procura de um tutorial, de uma fórmula, vendendo uma. Não me esqueço — e parece que vou mudar de assunto mas não— da vez que venderam o Desbravador, uma estátua famosa ao menos na minha cidade, Chapecó-SC, e um dia alguém foi cobrar e dizer que havia comprado (o mau-caratismo de quem compra e de quem vende é mediado em momento como esses). A escrita é um pouco isso, não há como se vender qualquer coisa, nem ao menos cobrar por algo. Não se vende criatividade. O que temos é aquilo nos movimenta quando escrevemos, no caso, nossas leituras, histórias, observações, experiências, e o modo como as alinhavamos de uma maneira mais poética ou mais prosaica. Ah, recupero aqui uma outra história recente e que acho que pode ajudar a ilustrar a resposta, a história do dia em que, no Brasil, começaram a vender pastel de merda (e olha que isso não é de hoje). Ninguém acreditava que pastel de merda pudesse dar certo até o momento em que se percebe que a merda se tornou presidente do Brasil. E mesmo sabendo que em algum momento, mais dia menos dia, ela vai embora, sabemos que ela, travestida de outra mamata cheirosa, vai voltar. E me perdoem pela prepotência, mas para lidar com essa situação (babando ironia) sugiro que ao invés de partir da merda, parta-se das moscas. E quem conhece um corpo em estado de putrefação deve reconhecer rapidamente o que vou dizer: a mosca azul, é a mídia; a azul esverdeada, é o empresariado; a verde azulada, é o STF; e a verde quase metálico, é a corja de políticos; a hora que sobrarem apenas as moscas escuras, pois bem, a ordem é privatizar e fazer de conta que não se sabe do que se trata. E o povo? Alguém sempre pergunta pelo povo, o povo, por falta (e sabemos que isso é proposital) de consciência de classe baba o ovo dos amestradores das moscas.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Rapaz do céu, acho isso uma balela, quem é capaz de dizer que tem um estilo? Até porque hoje, no Brasil, os escritores e escritoras, claro, com exceções, dividem-se naqueles que não leem e nos que fazem curso de escrita criativa. Olha, para além disso, muito pouco no horizonte. E não estou dizendo que escrevem mal, escrevem bem (bem melhor que eu), mas dentro do cercado. Ave Maria, é um tal de arco narrativo pra cá, de três atos, de cinco atos, de isso pode, daquilo não pode, e… parecem um bando de maluco tentando atender ao chamado do mercado. Pois bem, num país em que a merda chegou a ser presidente, não podemos esperar muito mais de seus súditos. No front, para não deixar a resposta incompleta, sou influenciado por todos aqueles autores e autoras que em algum momento me transformaram em marionete de suas elucubrações.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
O André Bazin, e olha que isso já deve estar azedando na história do tempo, falava do modo como o cinema impactou a literatura (e vice-versa), ou, estendendo a prosa, do modo como as artes são influenciadas de muitas maneiras e não apenas pelos seus nichos. Assim, para soltar o verbo, recomendo: Esse Obscuro Objeto do Desejo (1977), de Luis Buñuel; A Montanha Sagrada (1973), de Alejandro Jodorowsky; Satantango (1994), Béla Tarr. Recomendo, ainda, a imagem que vi semana passada [para vê-la, por favor, será necessário — e sei que para isso o aplicado leitor (e seus aplicados aplicativos) poderá precisar demandar de um apelo, digamos que, espiritual —, estar na rua Madre Benvenuta, às 16:32, segunda-feira, 25 de maio de 2022, afinal, tenho certeza que a mesma história de ontem irá se repetir outras vezes] enquanto caminhava pela cidade. A cena: um rapaz gorducho, de bicicleta, tenta passar na lateral do meio-fio, de uma rua estreita e movimentada, entre um caminhão parado na sinaleira — desses pequenos, de entrega —, e o poste, e fica entalado. Pausa. Literatura também é matemática (saber contar). Até o mais ingênuo dos indômitos que estavam na rua naquele momento viram que a personagem não conseguiria passar naquele espaço. Rua de Mão Única, de Walter Benjamin, e Espécies de Espaços, de Georges Perec, movimentam-se. Abraços.