Deisiane Barbosa é artista-etc, editora na andarilha, mestra em artes visuais e autora de “cartas a Tereza”.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não cumpro rigidamente uma rotina única, mas todo dia adapto os costumes de acordo com meu fluxo de demandas na andarilha edições. No geral, busco acordar cedo para aproveitar ao máximo a manhã, meu momento de maior frescor criativo. Faço um breve desjejum, ligo o rádio ou escuto um podcast, faço uma caminhada ou uma sequência de exercícios no quintal. Depois de um banho, de um café caprichado, então vou escrever e estudar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Por volta das 8h da manhã, me ajeito no quartinho que pertenceu à minha tia-bisavó materna, abro a janela, trago para perto uma garrafa de água e às vezes folheio livros e cadernos. Aqueço lendo poesia ou revisitando trechos de textos que gosto, anoto no diário de criação, reviso ideias… ou às vezes já sento e escrevo – depende muito de como estou movida pela pulsação criativa em determinado dia. No geral, preciso criar algum aconchego para a coisa fluir e preciso também de silêncio, entremeado só mesmo pela música dos passarinhos que moram aos montes por aqui. As manhãs são preciosas para mim, quando melhor enxergo as possibilidades e estou mais cheia de energia. Porém, também escrevo em outros horários, caso sinta a necessidade e tenha oportunidade – nesse caso, a noite é outra opção favorável, pois é um bom momento de quietude na casa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Procuro estar sempre em exercício, desse modo, é uma meta escrever, pelo menos um pouco, todos os dias. Quando não tenho outras atividades urgentes a dar conta, dedico toda a manhã para trabalhar em projetos literários que estão em fluxo. E isso implica em escrever, de fato, ou também revisar, editar, organizar anotações, afunilar pesquisas. Mas se o tempo é mais restrito, me disponho a reservar cerca de 1h dedicada a esse fazer. E se nem isso for possível sempre, tudo bem também.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Assim como não sigo uma rotina rígida no dia a dia, o modo como o processo criativo vai se dando é mais experimental. Gosto de traçar roteiros com a finalidade de desobedecê-los; esboçá-los me dá a ilusão de que não me perderei de todo, mas é apenas uma linha que vai se redesenhando de acordo com a deriva. Portanto, tenho escrito misturando etapas, é uma ação de corpo atento em que tudo é pesquisa: a leitura de uma referência, a escuta de uma conversa, a fruição de uma obra artística, o experimento da linguagem no caderno, a anotação de um sonho, o registro de uma ideia, o estudo de uma personagem, a escrita de trechos no computador… indissociavelmente, o texto vai acontecendo, ganhando formas e maturando no decorrer de tudo isso.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
No geral, procrastinação, medo, ansiedade já são velhos conhecidos em outros setores da vida, o que não significa que alcancei técnicas infalíveis para driblá-los sempre. Mas quando me ocorre alguma espécie de trava, procuro não forçar a barra da escrita; e isso não implica em me distanciar do projeto, mas experienciar outras maneiras de seguir em atividade criativa: vou ler outras coisas, dialogar com pessoas que também escrevem (essa troca é maravilhosa e sempre me reativa), vou escrever diário, revisar percursos, movimentar o corpo, trabalhar com outra linguagem artística, etc. Em suma, procuro oxigenar e às vezes investigar o porquê daquela dificuldade. E enquanto vario nessas ocupações, sigo conectada ao projeto, maturando pontos, em constante pesquisa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso continuamente, enquanto sentir que algo precisa ser lapidado. Inclusive, faço isso enquanto escrevo uma primeira versão – não espero ficar tudo “pronto” e então volto revisando. Muitas vezes, a transpiração de editar/revisar nos intervalos da escrita mais livre é que vai me apontando melhor alguns caminhos para seguir no texto. E costumo compartilhar os escritos em várias etapas: mesmo quando tenho apenas esboços, mostro para pessoas com quem tenho maior intimidade e confiança, que já acompanham meus processos de perto. Já quando tenho algo melhor elaborado, gosto de ouvir a opinião de outros leitores, pessoas amigas e/ou parcerias que também trabalham em literatura. É muito enriquecedor saber como esse material chega a elas e poder ouvir críticas que me ajudam a firmar e/ou rever aspectos do meu trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Sou muito analógica nesse quesito. Tenho uma vida baseada em alimentar e multiplicar caderninhos, que eu mesma costuro – diga-se! Para mim o processo criativo já desponta dessa necessidade de costurar papel, quando intenciono reunir neles registros de minhas andarilhagens. Gosto do quão orgânico é rascunhar, colher notas, registrar fluxos de ideias, ir aos lugares e poder abrir as páginas para alguma anotação inusitada. Mas tudo isso também associo com o uso de tecnologias digitais, seja o bloco de notas do celular, ou aquele grupo solitário no whatsapp, sobretudo, o registro fotográfico/videográfico de coisas relacionadas à minha pesquisa. Como também sou artista visual, minha relação com as imagens nutre substancialmente minha poética. E, finalmente, quando parto para a tela do computador é para, periodicamente, alinhavar e dar maior vazão ao que vou reunindo nos cadernos e na galeria do smartphone. Mas estou sempre com eles à mão, de modo que às vezes pontuo de volta no caderno, coisas que organizei no computador, por exemplo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não sei exatamente de onde vêm, mas sei que as encontro no que já me referi ao movimento de deriva: caminhar, estar atenta ao mundo, às narrativas, experienciar estado de poesia em tarefas do cotidiano, cruzar com outres artistas, e, claro, ler literatura, pesquisar, estudar. Em suma, estar atenta e movimentar o corpo. Experimentar, desafiar o “erro”, estar em exercício de palavrimagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Diria para a eu-do-passado que ela precisaria mesmo ter caminhado tudo isso / assim como outra de lá, de alguma espécie de presente-futuro, vem me alertar que é isso mesmo: seguir caminhando e escrevendo, escrevendo, repetir-repetir-até ser diferente, como me orienta Manoel de Barros, uma das minhas maiores referências. Acho que o que muda mesmo é a maior consciência disso para o que não há modelos ou receitas – o processo criativo; aprendizados que têm surgido pela insistência do exercício, da pesquisa, também das trocas – por exemplo, adoro participar de oficinas de escrita. Outra coisa que também tenho aprendido com maior precisão é a necessidade de ter paciência, escrever requer constância e pode ser algo muito lento; em contraponto, a afobação tantas vezes sabota a realização de trabalhos de qualidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Isso é segredo – coisa que tenho aprendido, a muito custo, a reservar (risos). Mas só não digo mesmo, porque estou ainda agora tão imersa em realizar um livro que para mim já existe, todavia, que preciso consumar sua realização, torná-lo partilhável, legível. Logo, tão concentrada sigo nisso, que finjo, por ora, não sonhar com outros projetos – é muita coisa para dar conta. E um dos aspectos que me encanta na literatura é a liberdade, empolgante e quase enlouquecedora, de inventar uma pluralidade de mundos – que isso nunca nos abandone.