Débora Mitrano é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Atualmente estou desempregada, pois estou me tratando de um transtorno mental, então os meus dias consistem em dormir, escrever e ler. Não se pode escrever durante vinte quatro horas, então eu sento com o tédio e fico olhando para ele, é a única coisa que pode ser feita: essa observação passiva. E a temática do vazio é muito presente na minha escrita devido a vida ociosa, meus escritos tem cheiro de quarto trancado e remédio controlado.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu trabalho bem em qualquer hora do dia, sou flexível, sabe?. Já até escrevi um poema mentalmente enquanto dormia e tive que interromper o sono para passá-lo para o papel. Meu pensamento não pára nem quando estou dormindo, portanto eu aproveito esses breves momentos de epifania.
Sobre rituais: não sigo nenhum, sou bem eclética,. Eu escrevo sozinha, no ônibus, na fila do banco, onde eu estiver e surgir a vontade de escrever, sem preparação alguma.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Sou de fases. Tem momentos em que escrevo durante dias seguidos e outros em que escrevo só quando estiver prestes a explodir.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é bem intuitivo. Eu sento de frente pro papel e vejo no que vai dar. Algo bem automático, sem busca de coerência textual: o que sair, saiu. Por isso, eu flerto bastante com a poesia experimental.
Geralmente o poema começa com uma palavra, uma palavra que vem na minha mente, nisso eu pego essa palavra e vou dando forma a poesia. Tudo vai fluindo naturalmente, sem pretensões de ter um encadeamento poético.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação não me incomoda, como eu disse eu considero importante essa relação de aceitação do tédio, essa observação passiva dele, em vez de entrar em guerra com ele, o que trás mais angústia.
Quanto ao medo de não corresponder ás expectativas: não tenho esse medo, na verdade eu sei lidar com a rejeição e penso que todo o escritor deveria estar preparado para isso. Afinal de contas, nem todo mundo vai curtir o que você escreve e está tudo bem. É até saudável isso.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso poucas vezes e não gosto de ficar trabalhando em cima do poema, porque me remete a masturbação poética e não sou chegada nisso. Raramente eu pego um poema para melhorá-lo, apenas corrigo os erros ortográficos e mostro para as outras pessoas.
Por isso que eu digo que, há poemas que nascem prontos e outros que simplesmente não nascem, pois são ruins. Esses a gente ignora e bola pra frente.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo meus primeiros rascunhos á mão e depois desenvolvo o resto no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas idéias vem fundalmente do cotidiano, das minhas experiências e tudo o mais. Como eu sempre digo, meus poemas são bastante intimistas, carregados de verdade. Não conseguiria que fosse de outra forma.
O que me mantém criativa é o sofrimento, a impotência e o sentimento de inadequação. Me ajudam bastante a escrever.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Maturidade. Isso que veio durante esses anos todos de escrita. Eu acabei desenvolvendo uma identidade e considero isso bom. Meus poemas antigos eram infantis e sem um conteúdo consistente. Eu não sabia nem o que estava fazendo, era como tatear o escuro. Agora, a meu ver, me parece que o interruptor da luz está ligado e eu consigo ver as coisas com clareza.
O que eu diria a mim mesma?!. Se jogue fundo nas experiências, experiencie situações-limite e esteja beirando a loucura, porque as pessoas vão se interessar. E isso é verdade, pois a loucura é um bom produto. As pessoas não querem se ver loucas, mas gostam de ler sobre isso.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto que eu gostaria de fazer é meu livro de poemas, nele contém um forte apanhado de temas como o mito romântico e sobre como é literalmente emlouquecer.
Não há nenhum livro que eu gostaria de ler que não exista, acredito que há boas obras que me impactaram o suficiente.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Meu mal é a procrastinação, sou zero por cento sistemática.. Meu livro de poemas, por exemplo, tá indo assim, nessa pegada de deixar fluir.
O mais difícil é escrever a última frase, sempre tive dificuldade em terminar poemas. Alguns já nascem prontos e outros são bem complicadinhos, tem suas próprias especificidades e precisam ser tratados com paciência.
Com o decorrer do tempo, eu aprendi a ter calma e paciência ao escrever. Antigamente, eu era muito afobada e queria terminar logo, agora eu entendo que para alguns é necessário uma maturação, um processo para o poema crescer e andar com as próprias pernas e ser do mundo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como o meu mal é a procrastinação, eu prefiro ter apenas um projeto em mente.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
É a capacidade de chocar e trazer incomodo. Isso certamente é a mola propulsora da minha escrita, conectar o leitor com sensações de assombro.
O que busco é a quebra de linearidade, é para isso que a minha poesia se propõe: eliminar alguma constante nos limites do pensamento.
Nomear o inominável e criar um universo único, onde tudo é cru e inacabado. Como Cecília Pavón disse em seu poema: ‘’ meus poemas eram como biscoitinhos de canela mal-assados’’. É assim que vejo o que eu escrevo, um biscoitinho de canela que uma mulher faz durante a tarde, num dia de folga, e que muitas das vezes o resultado do trabalho é algo mal-assados e eu como por pura fome.
O meu primeiro contato com a escrita foi na infância, na escola. A professora pediu para eu escrever um poema, mas foi algo completamente mecânico, ela não deixou eu desenvolver por conta própria, pois me disse como eu deveria escrever e praticamente ditou os versos que deveriam ser escritos. Com o decorrer do tempo, eu fui escrevendo mais por uma questão de catarse, para colocar para fora os meus sentimentos, era puro desabafo, não tinha um artesanato poético ou qualquer coisa do gênero, mas sim um automatismo pisquíco.
Mas, por volta de 2014 eu comecei a me dedicar de verdade, comecei a ler os poetas Beatnicks e escrever poemas pensados e elaborados. Não era grande coisa, porque se sentia o cheiro de escrita prematura, algo que estava engatinhando, mas isso não me incomodava, eu escrevia por uma necessidade orgânica, assim como beber água e comer.
Em meados de 2019 eu comecei a ler poesia independente e me dedicar com verdadeiro afinco. Como não tenho renda mensal, lia todos os dias poemas de poetas independentes em sites como Escamandro, Poesia Primata, entre outros, porque se você quer de fato evoluir no que faz precisa ler e ler bastante, e é o que tenho feito até então, lendo um pouco de tudo. De Bruna Lombardi a Anne Sexton.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
O que mais me dificultou no desenvolvimento de um estilo próprio foi a ausência de experiências de vida significativas. Isso deixou a minha obra pobre durante bastante tempo.
Após o meu primeiro surto psicótico em 2015 (um momento pesado em minha vida) um lirismo muito expressivo tomou parte de mim.
Observei que a cada situação-limite na qual eu passava, uma voz tímida surgia no seio de cada poema e com o tempo ela foi ganhando uma potência quase que selvagem, nasceu uma Débora escatológica e apaixonada pela poética do sofrimento, uma Débora que respeitava o ritual dos seus surtos. Vivendo ele na sua inteireza, para logo em seguida, em um momento de sobriedade, após o entendimento e profunda compressão dos distúrbios que foram vividos, passar para o papel os sentimentos e sensações adquiridas em cada evento psicótico.
Atualmente, há um lírico que não quer fazer cafuné, quer não quer inspirar o leitor a ser melhor mais feliz ou realizado.
Eu não sou um guru da poesia, se o leitor quer ler coisas tranquilas e amenas é melhor que leia algum mestre espiritual charlatão que fale do quanto a vida é bela.
Não quero ensinar ou apontar caminhos para a realização pessoal, mas mostrar o lado sujo da existência, o aborto das expectativas existenciais.
Posso afirmar que o meu transtorno mental me tornou milionária, porque com ele veio uma vulnerabilidade, uma fragilidade, e com isso, uma sensibilidade.
Quanto a autoras, várias me influenciaram e ainda me influenciam. Enquanto eu escrevi o meu primeiro livro de poemas chamado “Curso técnico para a iluminação” (que ainda não foi publicado) eu li bastante Angélica Freitas, então pode ser que em algum poema meu dialogue com os dela.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
O teste do ácido do refresco elétrico do Tom Wolfe: esse livro é fantástico e delicioso de se ler, justamente porque o Tom Wolfe reuniu uma série de elementos diferentes para compor esse romance, clássico do jornalismo literário. Ele se utilizou de fitas cassete com entrevistas, vídeos, cartas e etc. Isso torna a leitura rica. Nele o Tom Wolfe conta o surgimento e desenvolvimento do Merry Pranksters, grupo de escritores que nos anos 60 viajaram num ônibus escolar bebendo suco de laranja com LSD.
Pergunte ao pó do John Fante: essa obra é a minha bíblia, porque eu comecei a lê-la na em 2014, época decisiva na minha vida, pois foi quando eu decidi que queria ser escritora. O interessante dele é que conta as delícias e tristezas de um homem que quer se tornar escritor, que quer ser grande, que quer ser referência, que quer ser lembrado e imortalizado. Eu gosto justamente disso, porque a gente que produz literatura se identifica com as perdas e vitórias, com as dores e alegrias. Ler esse livro é um parto, você está rindo, depois está chorando, depois num estado de júbilo. É realmente incrível saborear Pergunte ao pó, porque ele te transporta pra um universo não tão único assim, você se identifica.
On The Road do Jack Kerouac: quem me conhece sabe que eu detesto viajar (eu falo disso no poema ‘’A baia de Guanabara é uma boca banguela’’), no entanto, o êxtase e adrenalina impresso nas vivências do Jack Kerouac e seus amigos beatnicks mexeu profundamente comigo e abalou as estruturas mágicas da minha imaginação. Eu li esse livro ao som de Miles Davis, então dá pra entender como foi sensorial pra mim.
* Entrevista publicada originalmente em 14 de fevereiro de 2020, no comoeuescrevo.com (@comoeuescrevo).