David F. L. Gomes é professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMG.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Em geral, tenho, sim, uma rotina. Acordo, tomo um banho e tomo café da manhã com a Stéfane. Como minhas atividades na universidade concentram-se quase sempre à tarde e à noite, ela sai para o trabalho e eu permaneço em casa. Passo algum tempo – cerca de meia hora – colocando as coisas em ordem: arrumando a cama, colocando livros no lugar, recolhendo papéis soltos e outras bagunças. Para mim, esse é um tempo fundamental, como que uma continuação do processo de despertar. É só depois que inicio as tarefas de leitura e escrita.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho bem nos períodos de sol menos forte. Ou seja, na parte da manhã, até mais ou menos 11:00, e na parte da noite, a partir de mais ou menos 18:00. Não tenho exatamente um ritual de preparação para escrever. A única coisa que, talvez, eu pudesse citar é a necessidade de ter ao alcance das mãos todo o material de que preciso para o texto que estiver sendo elaborado: livros, cadernos de anotações, caneta ou lápis para continuar fazendo marcações e anotações esparsas nos livros ou nos cadernos durante o processo da escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não me coloco metas diárias ou algo parecido. Minha relação com a escrita é assim: passo a maior parte do meu tempo lendo. Dessas leituras, vão surgindo temas e ideias de textos. Anoto esses temas e essas ideias em um documento no computador. Dentre eles, aos poucos alguns se vão consolidando como convites mais fortes à escrita naquele momento específico: seja em razão da relevância por si mesma do tema, seja em razão do contexto histórico, do acumulo de material lido, de algum objetivo pessoal de publicação, enfim. Quando fica claro para mim que tal ou qual tema levará efetivamente, naquele momento, à elaboração de um texto, começo um processo mais intenso de leituras e anotações voltadas a esse texto. Durante esse processo, não escrevo mais do que tópicos e frases soltas. Quando o próprio processo de leitura e anotações impõe-se como relativamente completo – isto é, quando sinto que já é possível escrever algo bem fundamentado –, o passo seguinte é rascunhar um sumário, apto a clarear para mim o todo do texto. É somente com a ideia desse todo na cabeça – ainda que, por suposto, mudanças sempre aconteçam durante a escrita e sempre haja diferenças entre esse todo esboçado e a versão textual final – que começo a escrever. Logo, quando sento para escrever tendo a escrever “de um fôlego só”, apenas dividido pela sucessão dos dias. Ou seja, de posse de um esboço mental do texto, sento e trabalho nele as horas que cada dia me permite – por causa de cansaço, por causa de outras atividades que interrompem o ato de escrever – até que aquele rascunho sumarizado ganhe vida.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A maior parte da resposta a essa questão encontra-se na resposta anterior. Eu acrescentaria apenas uma coisa: entre o sumário rascunhado e o início propriamente dito da escrita de um texto o gatilho fundamental para mim costuma ser achar a primeira frase do texto. Para mim, é como se essa primeira frase – as palavras escolhidas, a ordem delas, o tamanho dos períodos, os tempos verbais utilizados – tivesse o poder de conferir todo o tom do texto. Logo, é imprescindível achar uma boa primeira frase, adequada ao tom que se pretende conferir ao texto. Às vezes, tenho tudo o mais para elaborar um trabalho do início ao fim, mas passo alguns dias sem fazê-lo na busca por essa primeira frase.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Para além da busca – talvez sem muito sentido – da primeira frase, não costumo ter travas no processo de escrita, assim como não costumo procrastinar. Como disse, tendo a escrever “de um fôlego só”, o que não abre muito espaço para procrastinações. Pelo contrário, quando começo um texto, o que às vezes me aflige é a angústia por terminá-lo. Em períodos, por exemplo, de intensa atividade burocrática na universidade – reuniões, comissões, pareceres técnicos, etc. –, é possível que eu me sinta ansioso ao ter o esboço total de um texto na cabeça e algumas páginas dele já escritas, mas não conseguir tempo para sentar e chegar até o fim. Também por isso, não tenho muitos problemas com projetos mais longos: para mim, não importa muito o tamanho do projeto, a redação do texto seguirá sempre a lógica do “um fôlego só”, ainda que essa lógica, digamos, possa difratar-se em unidades menores dentro de um texto maior. Escrevi minha dissertação em cerca de dois meses e, na redação da tese, trabalhei por capítulos entendidos por mim como unidades fechadas, redigindo um capítulo assim compreendido por mês, cada capítulo sendo escrito “de um fôlego só”. Quanto à questão de não corresponder às expectativas, acho essa pergunta extremamente importante: ela me parece tocar na raiz de muitos dos processos de sofrimento psicológico e mesmo psiquiátrico que têm crescido assustadoramente no meio acadêmico. Precisamos conversar mais sobre isso. Não há respostas fáceis. O que eu poderia fazer aqui é, no máximo, levantar algumas pistas e dizer um pouco de como lido com os problemas envolvidos. Por um lado, há, sem dúvida, o elemento de insegurança: a academia é um meio hostil, e costuma passar a sensação de que tem sempre alguém à espera para apontar o dedo e erguer uma crítica com ares de crueldade. Aliás, precisamos também, e com igual urgência, conversar sobre essa nossa patológica hostilidade recíproca e contínua. Todavia, nessas horas ajuda lembrar que não há nenhum grande autor ou grande autora que não tenha, assumidamente ou não, corrigido a si mesmo ao longo do tempo e produzido alterações em seus textos anteriores a partir de críticas recebidas. Se esses grandes nomes precisaram reconhecer seus equívocos e revisar o que antes lhes parecia tão certo, por que todos nós não podemos também errar? Mais do que isso: não são raros os casos de autoras e autores que se tornam conhecidos e respeitados por seus equívocos e pela contribuição desses equívocos para o avançar das discussões em seus respectivos campos. Não seria exagero dizer – assim como não seria, no fundo, novidade alguma depois de Hegel: o processo do Esclarecimento – no qual, para falar com Habermas, encontram-se presentes apenas participantes, não observadores – não seria de modo algum possível sem esses equívocos. Por outro lado, para além da insegurança, e em uma relação complexa com ela, há também uma dose forte de narcisismo em tudo isso: o medo de ver-se num espelho – o texto escrito – que não revela uma imagem tão bela quanto a que se tinha de si mesmo. Também disso a academia está repleta. Trata-se de algo paradoxal, uma ironia que, por si mesma, daria um belo conto literário: nós intelectuais costumamos ter a nós mesmos em tão alta conta que nos tornamos incapazes de sair do lugar, pois sair do nosso lugar de conforto, objetivar-nos em um texto é, no limite, revelar fragilidades que sabemos que temos – todo mundo tem. –, mas que, o tempo todo, fazemos um esforço hercúleo para esconder. Não quero, de modo algum, dizer que todas as pessoas que têm dificuldade para escrever padecem de algum problema narcísico. Nem acho, sendo bem sincero, que todo mundo precisa escrever tanto: o efeito dessa pressão assustadora por produção acadêmica, por artigos e mais artigos científicos, revela-se hoje em um conjunto imenso de textos disponíveis que não oferecem nenhuma contribuição significativa para campo algum, perdendo-se em nada mais do que num equivalente funcional de processos inflacionários. Mas acho que valeria a pena, ao pensarmos sobre as dificuldades com a escrita na academia, perguntarmo-nos a nós mesmos sobre os dilemas de Narciso. Da minha parte, por suposto, não escapo nem da insegurança, nem do narcisismo. Como venho lidando com isso ao longo dos anos? Em primeiro lugar, procurando dar menos importância a mim mesmo – frequentar espaços não acadêmicos e ver que seus títulos universitários todos não valem nada demais em determinadas rodas descontraídas de conversa e ação sempre ajuda. Em segundo lugar, assumindo a graça do erro: tenho cada vez mais para mim que prefiro ficar conhecido como alguém que errou muito tentando entender o mundo do que como alguém que, por ter tanto medo de errar, no fim acabou não entendendo nada. Essa última frase, a propósito, é uma ótima epígrafe para alguém que queira, um dia desses, escrever um texto criticando-me. (risos)
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não costumo revisar meus textos. Escrevo com o máximo de atenção, mas, uma vez pronto, não reviso. É simples: minha imersão na escrita é tão intensa – a lógica do “um fôlego só” – que, quando termino um texto, dificilmente eu mesmo conseguiria enxergar algum erro nele. Estou tão dentro do texto que os erros – que sempre existem, nem que seja uma vírgula ou uma grafia equivocadas – tornam-se invisíveis. Em geral, somente leio o que escrevi alguns meses depois, quando, via de regra, já são escritos publicados. Por outro lado, costumo pedir a orientandas e orientandos que façam, se e quando podem, uma leitura crítica para ajudar-me a enxergar erros que não estou conseguindo ver.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma boa relação com o computador – não diria o mesmo com a tecnologia como um todo. (risos) Costumo fazer anotações em cadernos e nas margens de livros. Uso também folhas soltas às vezes. Mas não é algo de que eu dependa necessariamente. Há casos em que, das anotações prévias até o texto final, tudo se passa somente no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Falei sobre isso na resposta à terceira questão. O fundamental, em minha opinião, é a leitura. Ler, ler e ler mais. Depois, descansar lendo alguma outra coisa. Não consigo conceber a ideia de textos que surjam sem um lastro bastante significativo de leituras que os sustentem. Esse é outro fenômeno que hoje me preocupa no meio acadêmico: ao lado do excesso de escrita – a pressão por publicação, por produtividade –, a escassez proporcional de leitura. Parece-me que temos proporcionalmente escrito muito mais do que lido. Essa desproporção é, estruturalmente, autodestrutiva para a ciência e, sobretudo, para aquelas áreas da ciência que dependem da erudição. Por “erudição” não entendo aqui um conjunto de conhecimentos quase-folclóricos e sem muito contato com o contexto de enunciação – a “erudição” da caricatura da figura erudita, aquela que parece ainda não ter saído do século XIX. Entendo por “erudição” uma bagagem imprescindível para o trabalho de fundamentação discursiva adequada de argumentos levantados, bagagem que não se obtém senão com muita leitura. A leitura e, com ela, a erudição parecem-me estar em um momento de declínio. Também sobre isso precisamos refletir urgentemente.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de sua tese?
A principal mudança diz respeito ao estilo: um estilo mais literário e adepto de jogos morfológicos e semânticos antes; um estilo, digamos, mais seco hoje em dia. Isso tem a ver com as influências teóricas: antes, uma forte influência de H. Arendt e W. Benjamin, além de alguma influência de J. Derrida; hoje, o predomínio de K. Marx, principalmente suas obras de crítica da economia política, e J. Habermas. Quanto à minha tese, preciso confessar que gosto dela. Não porque a ache perfeita. Pelo contrário: é como um mosaico, com muitas arestas, fragmentos e incompletudes. E, por isso mesmo, com muitas passagens: ela não fecha muita coisa, mas abre caminhos pelos quais possivelmente continuarei transitando durante ainda alguns anos. Gosto dela. Não mudaria nada. Diria a mim mesmo: “isso que você está querendo fazer irá deixá-lo ao final com mais problemas do que soluções; logo, faça-o”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu tive, por um pequeno tempo, alguma atuação no campo literário de Belo Horizonte, mais especificamente no campo da poesia. Tenho alguns poemas esparsos publicados, e uma quantidade razoável de poemas e contos incompletos espalhados por uma série de cadernos sem muita ordem. Queria retornar a esse material e tentar dar a ele, dentro do que hoje se mostrasse interessante, a forma de livros. Quanto a algum livro que eu gostaria de ler, mas ainda não existe, não consigo responder. Se eu pudesse operar um deslocamento nessa pergunta, eu não indagaria a mim por um livro que eu quisesse ler e cuja escrita, contudo, ainda não se materializou: eu indagaria a mim sobre os livros que já estão escritos, mas que eu temo não conseguir ler ao longo da vida. Esse deslocamento, porém, não ajudaria muito: também a essa forma modificada da pergunta – que me preocupa e angustia muito mais – eu não teria como resposta senão um pensativo silêncio sem pressa.