Davi Kinski é poeta, autor de “Corpo Partido” (Patuá, 2013).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia primeiramente lembrando quem eu sou e onde estou (risos). É engraçado mas, quando acordo fico uns minutos “entendendo meu mundo”, tipo recapitulando uma história. É rápido, isso demora no máximo uns dois minutinhos. Corro pro banheiro, me ajeito pro dia. Às vezes tomo banho logo cedo, às vezes à noite, às vezes cedo e a noite, se está calor. Nessa hora do banheiro vou já mentalmente me organizando nas prioridades do que tenho para fazer. Geralmente tenho o dia cheio, com projetos, trabalho, família, enfim ocupação não falta. Mas sempre tenho um certo frio na barriga quando começo o dia. Sou uma pessoa ansiosa, então fico questionando o dia como um oráculo, o que será que essa esfinge me prepara? Será que vai ser tranquilo? Será vai dar algum problema? Todas essas pequenas ebulições de sentimentos somem assim que coloco o café preto e sem açúcar na boca. O café me desperta e me deixa mais objetivo, não pode faltar para mim basicamente café preto sem açúcar ao acordar. É como se fosse um portal o café, a xícara, esse ritual. Ferve a água, coa o café, serve na xícara, é coreografado quase. Tenho lua em virgem, deve ser isso essa viagem toda…. (risos)
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor com relação à escrita na parte da noite. Principalmente de madrugada, com silêncio e sem a ansiedade do dia. Acho que a noite me traz concentração por conta de ter menos ruído, menos barulho externo. Mas acho também que isso pode ter a ver com a energia, já cheguei a me questionar isso. Escrevo mais poesia e roteiros para audiovisual. Então para criar acho que essa sensação de ócio e silêncio que a madrugada tem é perfeita para me “transportar” para uma outra realidade, uma atmosfera distinta da realidade do dia a dia, desse gosto prosaico que a rotina tem. A noite também tem uma ligação direta com Orfeu, com o onírico. Muitas vezes escrevo um poema, ou uma cena e vou dormir com aquilo, quando acordo geralmente já tenho uma outra visão daquilo que criei a noite, daí vem a tal da edição. É como se o sono fosse um programa de edição e maturação para aquele jorro de ideias e imagens que criei na noite anterior. Então, basicamente crio a noite, edito de dia, depois de uma boa xícara de café preto, sem dúvidas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tudo depende do projeto. Quando é poesia não tem muita regra, um verso, uma ideia, podem vir a qualquer momento do dia ou noite. Quando é um roteiro para audiovisual ou um livro em prosa, como é o caso do meu ensaio biográfico “Pasolini, do Neorrealismo ao Cinema Poesia” daí sim tenho uma disciplina e costumo a me colocar metas no calendário para que o livro ou roteiro ande e fique pronto. Eu sou mais de períodos férteis para a escrita, mas se tenho que escrever também consigo ter foco para isso, mesmo que não esteja em um desses períodos de grande criatividade para criar. Acho que ler muita teoria literária me ajudou a caminhar nessas duas estradas sem problemas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando estou escrevendo um livro de poemas e para mim isso demora anos, vou colhendo o material aos poucos e deixando tudo fermentando em estrofes pouco cuidadas, sem muita elaboração ou edição. Então, aos poucos aquele corpo de versos rabiscados vai ganhando forma e se transformando em poesia. A minha poesia é de verso livre, mas tenho uma preocupação de que aquilo venha alguma imagem, sentimento ou sensação ao leitor. Lógico que nem sempre tocamos a todos, e acho que isso é quase impossível, mesmo para grandes autores consagrados. Costumo falar que o poema encontra o leitor. Mas tem que ter valor literário para que isso aconteça. E por isso demoro muito para concluir um livro de poemas. A minha preocupação é sempre deixar ao leitor o meu melhor, é um processo longo e muitas vezes frustra por conta do tempo que leva. São anos para concluir um livro de poemas e mais tantos outros para você publicar visto que o mercado editorial para poesia é restrito. Já um livro em prosa sou mais objetivo, faço uma grande e intensa pesquisa, como no caso do livro do Pasolini. A pesquisa durou um ano e meio mais ou menos, até chegar no formato de livro de bolso que decidi adotar. Tem bastante coisa escrita sobre Pasolini, mas por ser um vasto autor geralmente as obras são imensas, e por falar de um grande intelectual nem sempre é fácil ao grande público interessado principalmente em sua obra cinematográfica. Assim quis fazer um livro que fosse uma introdução ao universo Pasoliniano e que caso a pessoa quisesse se aprofundar mais em certos momentos e obras do cineasta italiano tem então as bibliografias citadas no fim do livro. Ele é um intelectual que falou em sua época para milhões de espectadores e leitores, mesmo tendo uma linguagem mais hermética. Portanto, para esse livro o grande desafio foi após um ano e meio de estudo editar, lapidar e enxugar ao máximo os textos para que ficassem objetivos e menos acadêmicos. Pasolini era um poeta em sua essência e queria nos provocar, nos tirar do eixo, questionar, mas acima de tudo emocionar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esse para mim é o maior desafio, pois tanto no cinema quanto na literatura os projetos atravessam anos e é muito complicado segurar essa barra que é a ansiedade. Eu ainda aprendo muito com os processos de criação e acho que no fundo é isso que nos faz crescer quanto artistas e pessoas. Ultimamente entendo que o tempo é extremamente relativo quando falamos de criação artística. E isso tem segurado uma boa onda de autossabotagem. Pois é completamente humano você no meio de um processo achar que aquilo não vai dar em nada, que aquilo que está fazendo não vai ter sucesso ou não vai encontrar um destino para sua criação. Porém uma vez vendo o grande Antônio Abujanra em seu programa “Provocações” da TV Cultura me deparei com uma citação que me libertou. Ele dizia assim “Para um artista, tanto o sucesso quanto o fracasso são dois impostores”. Isso não é maravilhoso e libertador? O artista tem que estar acima disso, tem que trabalhar muito o ego, a ansiedade para que isso não se sobreponha ao resultado da criação final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, principalmente as ideias, se estão bem trabalhadas, se estão comunicando aquilo que eu pretendo. Antigamente eu mostrava mais o que escrevia, hoje em dia prefiro realmente publicar para depois mostrar e ouvir o que os leitores têm a dizer. Acho que é uma maneira de não se perder, sabe? Muitas vezes as pessoas tomam para si um outro caminho de leitura, principalmente em poesia. Portanto para não se perder no propósito estou hoje em dia mais reservado ao que tenho de material inédito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu nasci em 1988, ano do Dragão. Sou bem tecnológico, adoro escrever no computador, a mão só se for uns pequenos rascunhos para não esquecer de algo. Mesmo assim hoje em dia mando e-mail para mim mesmo e evito o velho e bom papel e caneta. Acho que a tecnologia nos pegou de jeito, ao menos da minha geração para cá. Tenho certa rejeição também à minha letra de mão. Acho ela muito feia, monstruosa. As professoras no colégio direto me colocavam aqueles cadernos de caligrafia para melhorar meu garrancho. Isso eu acho que me traumatizou, quando vejo minha letra escrita no papel me dá aquela angústia de abrir os cadernos de caligrafia da época da escola. Fiquei um tempo sem notebook e quem disse que escrevi? Nem uma linha. Sou um poeta refém da tecnologia, eu admito.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Olha, é bem subjetivo. Uma vez vi uma entrevista com o Gullar na PUC e ele dizia que escrevia a partir do espanto. Ele se espantava e escrevia para entender um pouco sobre aquilo que o estava instigando. Eu me vejo nesse sentido da mesma maneira. Algo precisa me incomodar, me instigar para que eu escreva sobre aquilo. Hoje em dia estamos vivendo uma era de brutalização, a pandemia nos trouxe uma realidade próxima a um cenário de guerra no sentido de que as pessoas estão morrendo e singularmente pouco podemos fazer para impedir isso, isso nos traz uma melancolia, um sentimento de impotência sobre a realidade. Junta-se a isso no caso do Brasil um governo desastroso e vergonhoso que todos os dias dá um jeito de jogar na nossa cara algo pior, as vezes parece até piada, quando achamos que não dá para piorar vem uma nova manchete para nos deixar mais abismados e incomodados com o que se vê. E isso tem me afetado no sentido de não me espantar com as coisas como antes da pandemia. Tenho a sensação de que fiquei menos sensível exatamente como dispositivo de proteção a essa realidade inóspita pela qual estamos passando. E isso afeta diretamente o meu estado de criatividade. Tenho escutado muita música e relido meus autores preferidos para tentar driblar esse deserto de desencantamento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que ao longo dos anos tenho lidado melhor com meu processo criativo no sentido de ser menos ansioso por resultados e mais atento à qualidade daquilo que estou desenvolvendo. Me vejo mais atento também a realidade que nos cerca, mais sensível às pautas que estão cada vez mais urgentes devido a esse retrocesso imenso que estamos lidando. Eu diria para mim mesmo nos primeiros escritos? Para acreditar naquilo, eu desconfiava muito do que escrevia, cheguei a perder quase um livro todo pois deletei o arquivo em um excesso de raiva que tive do nada, achando que nem uma página daquilo se salvava. Isso acho que é normal em quem está começando a escrever, pois é tudo muito intenso no início. Depois você vai entendendo que não precisa agir assim, que tudo com o tempo se elabora e cresce no sentido de ganhar uma forma e sentido. Mas isso só vem com os anos e as experiências nas publicações.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Olha, projetos eu tenho vários na cabeça, tanto em literatura quanto em audiovisual. Eu tenho um desejo de escrever um livro de contos que ando pensando, assim como desenvolver um roteiro de ficção para cinema paralelamente a esses contos. Mas ainda não comecei a mexer nisso. Atualmente estou com um documentário para finalizar e um livro de poemas inédito para lançar, fora traduzir meus livros já publicados. Então estou mais focado nisso. É maravilhoso criar, mas acho necessário também realizar. Deixar um livro ou um filme pronto dá uma sensação maravilhosa de dever cumprido, esse é um retorno singular, totalmente pessoal que eu acho fantástico e me estimula muito. Amo ver meus livros na estante, rever os filmes que fiz ou que também participei como ator e mais recentemente em um documentário depondo como escritor, é quando você vê e pensa “valeu tanto trabalho e superação”.
Gostaria de ler um livro de ficção, de contos ou romance que represente bem esse cenário surreal pelo qual estamos passando. Algo que seja catalisador como as obras da Clarice Lispector, que no final do livro você dá aquele sorriso de “Eureka” e várias fichas caem como em um cassino, mas você fica rico é de sabedoria, de catarse, desses alimentos essenciais que o dinheiro não compra.