Daniela Aragão é doutora em literatura, pesquisadora de música e cantora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
A manhã é o momento mais precioso de meu dia. Acordo, costumo ir direto para o chuveiro tomar um bom banho. Faço carinho nas minhas duas felinas, Mila e Clementina. Gatos são uma oportunidade de convivência com a poesia viva e sou acordada diariamente pela poesia delas. São minha companhia e inspiração permanente. Nunca me canso de contemplá-las e aprender um pouco sobre serenidade, cautela e autonomia. Em seguida preparo o meu café e começo a trabalhar. Leio os e-mails, respondo e escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A manhã é o meu melhor horário para a escrita de qualquer modalidade textual. Sejam textos de caráter mais científico, ou literários. Pela manhã minha mente está clara, ampla em decorrência do descanso da noite anterior. Quando tenho trabalhos sob encomenda, a exemplo de textos para revisar, procuro prosseguir com o limite do tempo que possuo. Confesso que trabalhar sob encomenda costuma muitas vezes ser mais fácil, pois não posso fugir de mim. Quando planejo escrever uma crônica baseada na audição de algum disco por exemplo, muitas vezes protelo indefinidamente. Nunca acho que estou preparada, faltou outra audição, atenção a algum detalhe. Não tenho ritual, sei que a manhã é a hora de escrever sempre.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Gostaria imensamente de ser mais disciplinada com minha própria criação. Há períodos consideravelmente mais criativos, parece que jorram percepções, ideias diversas e de maneira incessante. Muitas vezes não são concentradas num só tema. Por exemplo, posso estar me dedicando a escrita de um livro, como a biografia da cantora e compositora Joyce Moreno, e ao mesmo tempo estar incontrolavelmente atenta ao que me circunda. Surgiu nesse percurso a ideia de escrever o livro sobre o Bairro São Mateus, uma espécie de locus-microcélula de minha vida. Vivi desde os meus quatro anos de idade nesse pequeno bairro, que conjuga residência e comércio, situado na cidade da Zona da Mata, Juiz de Fora. Ali meu pai manteve um pequeno comércio de material de construção, junto com meu tio durante quase quarenta anos. A loja foi um lugar em que cresci e ouvi muitas histórias. Meu pai chegou até a ser o vice-presidente do bairro. Acho que meu imaginário foi muito estimulado por tudo o que vi e ouvi. De repente, voltando de uma estada de quase dois anos de trabalho em Teresina, percebo que estou sem lugar. Meu pai morreu, meu tio, a loja não pertence mais a nossa família. Foi meio como um de meus amados filmes “E o vento levou”. Muitos personagens do bairro também já partiram. Me sentia numa sensação de orfandade e meio que tentando me reconhecer, num lugar que trazia um passado difuso, que precisava ser reelaborado para que eu conseguisse até me situar nesse emaranhado todo. Daí, numa tarde tomei um café numa sorveteria em frente a uma galeria na Rua Padre café e comecei a escrever uma crônica sobre minha história com aquela galeria. A partir daí foram surgindo crônicas, que resgatavam minhas memórias do bairro, como a saudosa benzedeira dona Tatinha, o pequeno armazém da Dona Elvira, a casa Santa Mônica, que abrigava mulheres grávidas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho relações distintas com a palavra escrita. Só gosto de ler em papel, confesso-me pouco afeita a tecnologia. Utilizo a internet para ler os trabalhos acadêmicos que me chegam para revisão. As notas que costumo tomar ao acaso ficam nos meus cadernos, nem sempre recorro a eles. Faz algum tempo que passei a escrever diários, como uma atividade catártica, meio reproduzindo a tal estética surrealista de colocar para fora o pensamento sem freio. Poupa um pouco a necessidade de um permanente analista (risos). Esses cadernos talvez sejam uma espécie de auto-análise e de necessidade de me manter sempre em contato com a escrita, mesmo que me sinta meio conscientemente travada no ofício criativo. Por exemplo, posso estar escrevendo com frequência em meu diário, mas quando me coloco diante da tela em branco do computador, não consigo ultrapassar o bloqueio do deserto criativo.
Considero meu ofício de entrevistar criadores da música ao longo de mais uma década também um ofício criativo. Eu que escolho o artista, faço as perguntas, transcrevo, corrijo, monto o texto. Esse por exemplo é um trabalho bem direto em que as anotações costumam ser quase aproveitadas em sua totalidade.
Estou na empreitada de escrever a biografia de uma mulher a qual muito admiro, uma espécie de referência para mim em todos os aspectos. Mulher, criadora, instrumentista, cantora. Quando juntam todos esses atributos e apreços, nem sempre é uma tarefa fácil. Escrever sobre o outro demanda uma espécie de entrega, uma simbiose de encantamento e ao mesmo tempo olhar distanciado, observador. Este considero meu maior desafio hoje aos 44 anos. Quando Joyce topou a parada, confesso que fiquei meio como uma menina serelepe. Peguei meu celular com as músicas dela e coloquei para ouvir e fui caminhar mais de uma hora para a euforia baixar. No momento coletei depoimentos de amigos da Joyce e encontro-me nesse processo de transcrever as entrevistas. Considero o livro sobre a Joyce Moreno o trabalho mais importante de minha vida até aqui, uma espécie de congratulação após uma dedicação intensa, visceral e apaixonada ao universo da canção e de seus criadores. Tarefa que trilhei em duas vertentes, no âmbito acadêmico, desde o mestrado até o pós-doutorado sobre Clementina de Jesus e na travessia livre com as entrevistas, disco gravado, crônicas. Minha escrita é um emaranhado disso tudo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não sei se palavra combate palavra. Nos últimos anos é que fui dando conta do quanto a escrita é algo visceral. Minha primeira relação com a arte foi por meio dança, entrei no ballet aos seis anos de idade e saí aos quatorze. O ballet clássico me trouxe a consciência do esforço, do que subjaz a beleza do resultado. Meus pés esfolados na sapatilha de ponta. Não sei que loucura me bateu aos quinze anos de idade, quando descobri que eu tinha voz para cantar. No entanto, antes dessa revelação eu cantava sem parar, em todos os lugares. Com dois anos de idade as pessoas íam em minha casa para me ver cantar “Romaria”. Coisa que ainda faço hoje sempre é cantar, independente de estar feliz, apaixonada, ou alguma motivação extraordinária. Adoro a sonoridade não só do tradicional banheiro, mas de alguns corredores de prédios. Daí fui avassaladoramente para o violão e a voz. Nesse momento, entrava também de maneira indomável a leitura em minha vida. Eu era uma adolescente completamente inadequada a minha idade. Acho que só agora que essas coisas sedimentaram de maneira mais leve. Escolhi o curso de letras e tive todo um percurso acadêmico, que por um bom tempo deixou minha escrita autoral stand by. Hoje releio meus trabalhos acadêmicos e tenho vontade de reescrever todos numa linguagem menos travada e ascéptica.
Te respondo então que lido com a procrastinação e o medo tentando diluir minha ansiedade, a energia represada que vem muitas vezes da impossibilidade de manter em atividade minhas duas artes mais fortes, que são o canto e a escrita. Eu já passei alguns anos em academia de ginástica, acho que ninguém imaginava que eu puxava peso enquanto ouvia Francis Hime, Alaíde Costa, Moacyr Santos. Hoje faço natação três vezes na semana, uma atividade libertadora lidar com a água e o azul infinito. Isso apazigua minha ansiedade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
As crônicas que escrevo ao longo de quinze anos, eu costumo escrever numa levada só. O assunto já me invade há dias, semanas, até que finalmente sai. Ah, é um alívio quando o texto sai. Um momento de paz. Meus textos sobre música são derivados quase sempre de audições. Sou meio chata, obsessiva com essas audições. Quando sinto que esgotei o disco é então a hora de escrever e me libertar, por meio da escrita sobre as impressões que extraio daquele som. Escrever uma crônica dedicada ao último disco do Gilberto Gil foi uma sensação libertária.
Tive alguns homens muito importantes no meu processo de escrita e leitura. Um professor de literatura e intelectual admirável, Gilvan Procópio. Ele me jogava livros e mais livros e dizia que nada meu estava bom. Acho que ele cobrava até a exasperação, para que eu chegasse cada vez mais longe. Tive também meu saudoso e querido jornalista, poeta e letrista João Medeiros. João auxiliou-me muito na captura do som e da palavra precisa. Um mestre.
Fui casada com o Ronaldo Werneck, escritor. Ele quem disse que eu poderia escrever sobre música e deu o primeiro pontapé. E meu pai, um interlocutor permanente o qual mesmo em outra atmosfera me comunico. Sempre quando faço algo que julgo bacana, penso como seria a recepção de meu pai.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no computador. Só escrevo à mão os meus diários e a transcrição dos depoimentos que me são concedidos pelos meus entrevistados. Tenho uma maleabilidade bem maior com a caneta. Sou muito lenta e cato milho no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Difícil explicar, sou pisciana de sensibilidade aguda e com ascendente em gêmeos. Dois peixes, mais os gêmeos. Eu seria quádrupla? Certa vez, uma astróloga, mulher muito experiente fez meu mapa astral e disse que minha configuração era quase inteiramente ar e água, ou seja, emoção e pensamento. Eu na época tinha vinte e seis anos de idade e não havia descido ainda muitas ladeiras. Amo aquela canção de Sueli Costa e Abel Silva “Canção Brasileira”: “Os corredores da vida eu já sei de cor”. Sempre me arrepio inteira quando ouço isso. Acho que é meio por aí, um pouco da minha ingenuidade foi se perdendo e sendo substituída pelo aguçamento da sensibilidade. A escrita foi a maneira de eu encontrar algum sentido, quando tudo parecia desmoronar. Meu pai sempre me incentivou a ler muito, disse que seria minha arma de guerra. Sinceramente é difícil responder essa pergunta. Minha cabeça é essencialmente sonora, eu comecei a escrever sobre música, pois percebi que por meio da escrita eu conseguiria dizer melhor o que eu não era capaz de tocar ou cantar. É a tal “rádio cabeça”, como diz a Joyce Moreno numa composição em parceria com Francis Hime. A música me move acima da palavra. Só posso dizer que muitas vezes gostaria de sentir menos tudo ao meu redor. A música e a palavra me mantém viva.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Não sei se tenho mais medo do som ou da palavra. Em minha primeira aula de literatura no curso de letras a professora Nancy, que parecia a Brigitte Bardot envelhecida, deu uma aula sobre estruturalismo, seguida de Jorge Luiz Borges. Eu simplesmente paralisei ali, achei que tudo o que eu tinha escrito era absolutamente piegas, ridículo e inútil. Vergonha profunda de meus escritos. A escrita de caráter mais autoral foi florescendo mesmo, por meio das crônicas musicais. Me recordo de um email do dramaturgo Alcione Araújo, que me revelou que eu tinha texto com marca de escrita autoral. Anos mais tarde, uma longa e profunda conversa com o poeta e amigo Salgado Maranhão sobre a mesma questão da “minha escrita”. Fui tomando noção de que poderia ser de fato mais sério que eu supunha. No entanto, a sobrevivência nos encaminha para estradas inesperadas. Assegurei minha subsistência até os dois últimos anos passados lecionando língua portuguesa e muito eventualmente literatura. Trabalhei em escola pública, faculdades, colégios, até em situação de presidiários em regime semi-aberto. Um corre-corre permanente, ainda associado à escrita da tese de doutorado e artigos.
Acho que quase a totalidade dos escritores no Brasil não vivem de sua escrita. Drummond era funcionário público, Vinícius de Moraes diplomata, Manoel de Barros, proprietário de terras… O que mais vemos hoje são os poetas na academia, conseguem assegurar a sobrevivência no ofício de professores nas universidades e paralelamente tentam alavancar a própria produção. Cacaso largou a academia e acreditava na época que viver de sua produção como letrista e poeta lhe assegurariam. Complicado. Eu ainda estou na batalha voraz, não publiquei nenhum livro e toda a minha escrita criativa é investimento custeado por meu esforço e persistência. São muitos elogios aos meus textos, mas ainda nenhuma confirmação de editora.
Meus primeiros textos talvez sejam aproveitados por algum furor da idade inocente e pura que perdi ou esqueci por lá. Quanto à composição estética textual, merece uma fogueira mesmo (risos). Como dizia um outro visionário, amigo e criador Big Charles “Tem que sangrar véia”. Os textos eram muito adocicados. Se guardar algum será como catarse de tempos idos.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu preciso conseguir publicar meu livro de crônicas musicais, que já está pronto com prefácio de Geraldo Carneiro, orelha do Júlio Diniz, contracapa de Joyce Moreno e Cristovão Bastos. Ainda só na promessa de editoras. Pretendo publicar também os depoimentos que colhi ao longo dos anos, com grandes criadores da música popular brasileira. Ainda tem o livro sobre o Bairro São Mateus, que estou trabalhando em parceria com a amiga e fotógrafa Eliane Gomes. Ela fez fotos belíssimas do Bairro. Este projeto, espero que consiga algum financiamento público. Trabalhar com cultura e educação nesse país é cada vez mais uma resistência altruísta. Utilizo-me da internet como um veículo de partilha e propagação de minha produção, no entanto é tudo muito perene. Precisamos saber fazer o trabalho de garimpo nesse mundo tecnológico, para que não nos percamos num emaranhado de inutilidades. Há muita produção literária e musical de altíssima qualidade na periferia da mídia dominante.
Sobre Livros? Tantos que gostaria de ler. Acho que já escreveram sobre tudo.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Quando se fala na palavra projeto entendo algo maior, o projeto talvez de um livro, um disco. No entanto, todo grande projeto sempre parte de pequenas ideias que vão surgindo. Momentos de mente mais criativa possibilitam uma profusão de ideias que geralmente surgem emboladas, desordenadas e sem controle. Às vezes é preciso virar expectadora das sugestões que despontam na minha própria mente, como num processo meditativo. Até que vá chegando o momento de mais calmaria, serenidade. Quando se inicia então o trabalho de ourivesaria, tirar da peneira o suposto mínimo substrato. Extrair o que de fato tem alguma possibilidade de realização, o que se finca mais na realidade, na viabilidade.
Quando vou escrever uma crônica sobre música, costumo ouvir o disco até meus ouvidos exaurirem e eu me sentir uma espécie de “ouvinte proprietária” daquela obra. Em minha própria cabeça vou deixando fluir minhas reflexões sobre o material escutado. A arquitetura de todo escritor tem seu modus próprio, sua assinatura. No entanto, quando me sento diante da tela em branco, por mais que eu tenha refletido por muito tempo, me deparo com o poder das palavras sobre mim. A escrita é algo indomável.
Penso que iniciar a primeira frase costuma ser o mais difícil. Quantas e tantas vezes já protelei o momento de me sentar em frente à tela do computador para escrever algo que já está implorando para sair de minha cabeça, me libertar e transformar em palavra, texto? A primeira frase parece ser sempre a mais desafiadora, a proximidade com a obviedade, a auto-repetição, talvez o flerte com o medo do ridículo. A primeira frase é aquela que tem que abrir a sala e chamar os convidados. A vantagem do computador é que a gente pode apertar facilmente a tecla delete e não ficar amassando bolos de papéis. Já me aconselharam deixar fluir o tal fluxo do pensamento, sem censura. Acho que quanto mais procuro a primeira frase, mais ela se afasta de mim.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como boa pisciana com ascendente em gêmeos, acho que minha própria inclinação astrológica já traz um pressuposto de que é muito difícil fazer uma coisa só. Confesso que a cada dia venho me esforçando mais, para não abrir muitas frentes, para que eu seja mais concentrada na unicidade de cada trabalho. É um exercício de centramento, que venho travando comigo. Alguns textos merecem um chá de gaveta por exemplo, para que tempos depois eu os leia com o distanciamento que me desvincula da cegueira, que pode vir na hora do furor criativo. O centramento eu situo na questão da elaboração, desenvolvimento e conclusão de projetos maiores, a exemplo de livros. O ideal é não deixar trabalhos abandonados, interrompidos por longo tempo. Obviamente, trabalhos que garantem o ganha pão, como revisões de texto, são ordenados de forma correta, para que eu não fira os prazos de entrega. Em geral os acadêmicos me procuram sempre em cima da hora. Daí me desdobro, conforme a necessidade, e me transformo em “milagreira”. Quando estou dando aula tenho os projetos, os planos, os horários. Não dá para ser desordenada. Por mais que seja às vezes um pouco monótono corrigir exercícios, costumo não protelar. Leio com atenção a redação dos estudantes. O desafio é lidar com a criatividade, uma ideia que chama outra, um livro que convida para o seguinte.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Muito difícil precisar isso. Mais difícil ainda é me denominar escritora. Fui antes de tudo uma leitora e ouvinte ávida e insaciável. Descobri a palavra, primeiro aliada ao som nas letras de música. Eu cantava e mesmo que ainda não tivesse a janela da alfabetização, já prestava muita atenção nos versos. Recordo-me da primeira vez que ouvi “Trevo de quatro folhas”, na voz de João Gilberto e fiquei absolutamente chapada com a música, o canto de João e as palavras. Cheguei para o meu pai completamente efusiva e falei que tinha descoberto a “Bolsa Nova”.
Encontrei o curso de letras como uma maneira de estudar literatura e supostamente colocar em prática a minha paixão pela música popular brasileira. Analisar as letras dos compositores, suas relações com a grande poesia. Fui então seguindo uma via acadêmica e a princípio achava interessante a linguagem acadêmica. Na vertente crítica me encantei pela escrita tão clara e a sabedoria de Antônio Cândido no “Formação da Literatura Brasileira”, seus ensaios. Ezra Pound com seu ABC da literatura, Silviano Santiago. Esse caminho mais ortodoxo segui até o pós-doutorado. No entanto, jamais abandonei a escrita e a pesquisa sobre música, fosse na vertente acadêmica ou no pensamento livre, que pude desenvolver em minhas crônicas para jornais.
Acredito que o que foi fornecendo cimento, cal e algum sustentáculo para a minha arquitetura textual, foi a persistência na escrita de meus textos livres. As crônicas que comecei a escrever para o Jornal de Cataguases e sucessivamente para outros, como um que circula na Flórida AcheiUSA, um texto para o Suplemento Minas, mais tarde uma coluna no jornal O dia, de Teresina. O site Acessa.com.
Fui descobrindo que minha verdade, minhas impressões sensoriais, sentimentais e estéticas poderiam ser levadas mais a sério, tinham alguma consistência. Minha escrita começou a adquirir verdadeiro sentindo a partir dos leitores, e do prazer que fui tendo em desenvolver meu pensamento livre. Os diálogos com escritores que acabaram se tornando amigos, também foram me fazendo sentir que eu estava entrando nesse mundo da criação literária. Com o tempo vamos aprendendo, como uma frase do escritor Jorge Amado em Dona Flor e seus dois maridos: “Um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar”. Aprendi a transitar entre as duas modalidades, a acadêmica e a minha devocional.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Eu, como tantos outros, sou um emaranhado de experiências. No meu canto as influências talvez sejam mais precisas, pois na adolescência eu ouvia Elis Regina e tentava imitar, reproduzir o irreproduzível. Imagina a pretensão ingênua que eu tinha. Isso era trancada no quarto (risos). Algo deve ter ficado nos recônditos, quando costumam comentar sobre alguma semelhança minha com Elis em alguma gravação.
Como palavra e som são em mim indissociáveis, precisei começar por aí. Fora das solicitações acadêmicas, de toda a vertente crítica, fui lendo sem muito critério. Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Drummond, Cacaso, Dostoievski, Nelson Rodrigues, Euclides da Cunha, Ana Cristina César, Graciliano Ramos, Lúcio Cardoso, Machado de Assis. Esses balançaram bastante minha cabeça. Tive mais preocupação consciente em desenvolver meu estilo próprio na voz, pois assim que fui amadurecendo um pouco, eu não queria mais cantar igual a tal ou tal cantora. A preocupação com o estilo na escrita foi vindo com minha consciência, no próprio processo da escrita desvinculada dos preceitos cerceadores da academia. Era uma escrita que sempre corria em paralelo. Por meio dos comentários dos leitores, sobretudo leitores-escritores é que de fato passei a acreditar que meus textos carregavam uma assinatura própria, como me disse por meio de um longo e-mail o saudoso dramaturgo Alcione Araújo.
Atualmente converso muito com o poeta Salgado Maranhão, mando principalmente meus lampejos, pra sentir se aquilo tem algum valor ou sentido. A escrita é um desafio permanente e inesgotável, até o findar de nosso último suspiro. Poderia aqui elencar uma série de poemas metalinguísticos de gênios como Drummond “Lutar com palavras é a luta mais vâ entanto lutamos mal rompe a manhã”
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Nelson Rodrigues certa vez falou que Dostoievski bastava, para que ele talvez desse conta do chamado “ser humano”. Cito “Crime e Castigo”, desde a primeira leitura jamais saiu de minha mente. Raskolnikov é humano, demasiadamente humano. “A paixão segundo GH”, de Clarice Lispector. Até hoje ainda tento sedimentar minha terceira perna, acho que falta considerável calcificação.” Reunião” de Drummond, ali tem dez livros de poesia e alguns de tanto reler sei de cor como “Consolo na praia”, “Teus ombros suportam o mundo”, “Quadrilha” e “Congresso internacional do medo”.