Daniel Arelli é pesquisador de pós-doutorado em filosofia na UFMG e autor de “Lição da Matéria” (Prêmio Paraná de Literatura 2018 – Poesia).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina varia conforme a rotina na universidade. Se dou aulas pela manhã, gosto de acordar bastante cedo para preparar meu café, perder alguns minutos com o telefone e reler as minhas notas para ir entrando calmamente na frequência da aula. Quando não tenho de dar aula cedo, gosto de usar as manhãs para responder e-mails, escrever alguma coisa que me dê prazer – dar uma olhada nos poemas em andamento, sobretudo – ou traduzir. À tarde, depois do almoço até à noite, me dedico às leituras e trabalhos acadêmicos. Isso, claro, quando não estou com prazos muito apertados; quando é o caso, já ataco o que é urgente logo pela manhã, e vou alternando entre documentos quando a cabeça começa a falhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho melhor de manhã, sem dúvida, quando a cabeça está fresca; a partir do meio da tarde e no começo da noite também. No princípio da tarde costumo demorar um pouco para decolar, e tarde da noite não tenho funcionado bem.
Acho que não tenho rituais de preparação para a escrita, ou felizmente os perdi; em geral, é questão de me sentar, abrir caixa de e-mails, diferentes documentos e começar a trabalhar. Trabalho tanto com meu computador de mesa quando com notebook, sentado na cama ou em algum café ou biblioteca. Convivo bem com o caos e a desordem ao redor, às vezes até gosto. Quando a escrita rende, costumo precisar fazer interrupções breves de quando em quando para o pensamento e a imaginação fluírem – gosto de andar pela casa, em volta da mesa, entre cômodos, até voltar a me sentar e me pôr a escrever de novo.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo praticamente todos os dias, mesmo que apenas notas de leitura que serão elaboradas posteriormente. Já há algum tempo, desde que os estudos acadêmicos foram ficando mais sérios, procuro cultivar o hábito de ler anotando e parafraseando o que li, levantando questões durante a leitura, comentando, divagando… hoje em dia, se leio sem escrever, sinto que não li direito.
Se é poesia, no entanto, a coisa é mais complicada: tento escrever um pouco todo dia, revisar um poema em andamento, trocar uma coisinha aqui ou ali, copiar um poema travado em outra página e testar outros caminhos etc. – transformar a escrita em exercício, em prática, enfim. Mas aqui não há muito controle, e pode ocorrer que eu fique períodos longos sem escrever nada.
Não tenho meta pra escrita, tenho prazos que procuro cumprir. Tampouco tenho meta com poesia, mas começo a ficar inquieto se passo muito tempo sem escrever nada – até começar a achar que nunca mais vou escrever um verso sequer. Mas até agora a coisa acabou voltando.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando se trata de um artigo ou texto acadêmico, costumo abrir um documento em branco, colocar ali o título (mesmo que provisório; preciso de um título) e ir tomando nota. Pode ocorrer que eu demore semanas, ou mesmo meses, para finalmente escrever aquele texto, mas em geral acabo escrevendo – ou vejo como um projeto em aberto a atacar nas férias, por exemplo.
Faço mais ou menos a mesma coisa com poesia, com a diferença de que só tenho um arquivo grande no qual vou acumulando material. Escrevo um verso, algumas palavras, às vezes transcrevo um poema com o qual quero dialogar etc. Daí, o mais comum é que certo dia, depois de acumular bastante, eu me sente e escreva aquele poema – às vezes até o fim, às vezes pela metade, e o processo continua. Gosto de pensar que, assim, os textos vão como que se escrevendo a si mesmos, vivendo sua própria vida. É bastante raro que eu escreva qualquer coisa sem antes passar por um processo desse tipo, ainda que breve.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Procrastinação é bastante natural pra mim, e eu não costumo brigar com ela porque, até agora, ela não me impediu de produzir e cumprir meus prazos sem muita dor de cabeça. Acho que, até certo ponto, procastinar faz parte, é a respiração do trabalho. Minha exigência é tentar procrastinar já sempre em ambiente de trabalho (ou com cabeça de trabalho), pois aí fatalmente começarei a trabalhar.
Trava na escrita é diferente, e aí é preciso conhecê-la, compreendê-la. Quando se trata de texto acadêmico, minhas travas costumam ser indício de algum problema ou obscuridade conceitual, que, no entanto, só se revelam efetivamente durante a escrita. Há aí uma dinâmica circular entre escrever e parar de escrever, escrever e ler que é preciso dominar. Quando isso ocorre, é muito comum, e arriscado, que a gente queira ler sempre, indefinidamente, e jamais volte a escrever. Para evitar isso, o que comecei a fazer desde que tive minhas primeiras travas é o que mencionei acima: ler anotando, comentando, questionando, mas nunca deixar de escrever.
No caso de travas com escrita literária, em primeiro lugar, creio que é preciso fazer um certo trabalho de desmistificar ao máximo a escrita e o “talento” literário, abandonar narrativas obscuras de inspiração ou qualquer forma de visitação extraordinária das Musas, e ver a escrita como trabalho, como prática – algo próximo à prática diária de um instrumento musical, por exemplo. Depois, acho que há uma espécie de disposição para a escrita que precisa ser cultivada – uma espécie de torneira, digamos, que é preciso cuidar para manter aberta. Querer escrever, não temer a escrita, não temer a má escrita tampouco, e ver tudo como um trabalho em processo – até que a escrita se torne uma necessidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito, o tempo inteiro, e costumo me arrepender de detalhes logo depois que envio os textos. A rigor, tenho a sensação de que os textos poderiam ser reescritos continuamente; mas aí é obsessão mesmo, e é preciso dar o texto por encerrado. E gosto de mostrar para algumas poucas pessoas antes de publicar, em geral as mesmas, que já me leem há algum tempo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Uso bem mais aparelhos eletrônicos do que papel, mas há coisas que prefiro escrever no papel. Listas, por exemplo; notas pontuais de aula, depois que o material já está todo elaborado; esquemas. Fora isso, minha produção propriamente é quase toda carbono livre. Tenho usado muito o telefone também para anotar ideias breves que me ocorrem durante o dia, que depois passo para os documentos com rascunhos no computador.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Assim como a disposição para a escrita, acho que é preciso criar uma disposição para a criação e a imaginação – aprender a abrir a torneira das ideias e deixar que elas fluam. Para isso, creio que ajuda ter um misto de indisciplina e disciplina: indisciplina para entrar em contato com o máximo de coisas, deixar se atravessar pelo máximo de estímulos, deixar a curiosidade te levar para onde ela quiser ir… e disciplina para perseguir as ideias que vêm, aprofundar metodicamente a relação com o que desperta interesse, seguir a lógica de uma obra com todo rigor e concentração exigidos etc. Tentar cultivar uma certa coragem de pensar, uma coragem de imaginar e criar; pensar que o grande objetivo de tudo é a criação, que tudo deve estar um pouco a serviço da criação.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que eu fui basicamente aprendendo como eu funciono e me apaziguando um pouco comigo mesmo. Aprender a ver a escrita como processo aberto foi absolutamente essencial.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de continuar produzindo, seguindo a lógica interna do meu trabalho; via de regra, isso é um privilégio. Não sei aonde ele vai me levar, e acho isso bom. As obras que eu gostaria de ler e que ainda não existem são aquelas dos autores que eu admiro e acompanho e sei que estão em processo; acho que não tenho uma obra “em abstrato” que gostaria de ler.