Cristina Bresser de Campos é escritora, autora de Quase tudo é risível e Hand Luggage.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia de maneira relaxada, sem pressa, uma vez que não marco compromissos logo cedo. Acordo em torno das 7h e solto a minha cachorra, Pietra, uma vira-latas linda que resgatei na praia, para que ela possa se aliviar na grama, uma vez que dorme no meu quarto.
Minha rotina é cuidar da Pietra antes de tudo, dar ração a ela depois que volta do jardim, preparar meu café da manhã e depois de comer, ler os e-mails e mensagens que chegaram durante a noite. Durmo normalmente às 22h, então, quando acordo, tem sempre mensagens não lidas do dia anterior. Se estou envolvida no projeto de um novo romance, é nessa hora que retomo a narrativa. Faço as revisões dos capítulos que por acaso tenha escrito na noite anterior e sigo com a história. Frequento academia de ginástica todos os dias, das 10h ao meio-dia, por uma questão de qualidade de vida. Busco envelhecer com saúde e energia.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Trabalho muito melhor pela manhã, logo após o café. Aprecio o silêncio dessa hora. Não possuo propriamente um ritual, é mais uma forma de me sentir pronta para começar. Ligo meu notebook sobre a escrivaninha do escritório, que pertenceu ao meu avô materno, coloco em volta todas as minhas anotações escritas a mão, os livros específicos, caso precise fazer pesquisa e, depois da segunda xícara de café preto, desligo o celular e começo a trabalhar, concentrada. Meu trabalho flui nessa hora.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Normalmente, prefiro escrever em períodos concentrados. Meu segundo romance, “Hand Luggage” que foi lançado em inglês no Canadá há apenas um mês, foi umtrabalho de escrita diária durante o processo de elaboração. Na fase de revisão final, já com contrato assinado com a editora canadense Ricky’s Back Yard/Czykmate Productions, cheguei a trabalhar de oito a dez horas diárias durante uma semana, até aprovar o copydesk e dar ok para a produção. Tenho uma meta de escrever pelo menos duas horas por dia, mas confesso que sou indulgente comigo mesma. Tem dias que simplesmente não escrevo. Prefiro aproveitar os períodos em que a narrativa flui com facilidade e aí, escrever durante horas em seguida. Quando a escrita sai com dificuldade, dou um tempo, uso as horas a ela destinadas para ler. Muito antes de me imaginar escritora, já era uma leitora assídua. Leio muito, diariamente, literatura nacional de preferência.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Eu gosto muito da arquitetura da escrita. Antes de começar um novo romance, já tenho a estrutura dele toda planejada. Desenho gráficos, enumero os temas, conflitos, projeto o corpo do livro, a divisão dos capítulos. Faço a ficha biográfica dos meus personagens, com detalhes (e nunca uso todos estes detalhes na descrição dos personagens, tem muitas características que ficam implícitas, ou que são mencionadas en passant). Na maioria das vezes, o projeto original sofre mudanças, claro, mas prefiro planejar e à medida que se torna necessário, vou adaptando a estrutura para dar mais dinamismo ao enredo.
Depois que tenho clara a forma do livro, o fio narrativo, e munida de muitas anotações (feitas à mão ou no Word), fica fácil começar. Estou energizada, ansiosa mesmo pra cobrir o papel com caracteres, encher páginas, concluir capítulos. Aí eu quero ver o livro ganhar vida, tomar corpo.
A pesquisa é uma parte importante da narrativa. No meu primeiro romance, “Quase tudo é risível”, fiz muita pesquisa sobre AIDS, sobre câncer de mama e sobre adoção de crianças no Brasil. Entrevistei mulheres que já tinham se curado de tumores malignos nas mamas, conversei com soropositivos e fiz uma pesquisa intensa sobre o sistema de destituição do pátrio poder e do posterior processo de adoção de crianças. Visitei algumas instituições de acolhimento de menores, chamadas “Casa Lar” aqui em Curitiba. Conversei algumas vezes com funcionárias dessas casas, desde diretoras, até pedagogas e lactaristas.
No meu segundo romance, “Hand Luggage” (Bagagem de mão, em português) a partir de primeiro terço da história, a protagonista começa a buscar seu terceiro marido em sites de relacionamento online. Passei seis meses fazendo laboratório em diversos sites do gênero, foi muito instrutivo (e divertido, confesso).
No meu terceiro romance, “Raizama”, ainda inédito, que se passa na Chapada dos Veadeiros, apesar de conhecer bem a região, pesquisei sobre atrações turísticas alternativas, sobre personagens famosos do local, sobre seitas lá instaladas. Fiz muita pesquisa também sobre homossexualismo e sobre a época da Ditadura no Brasil, já que são os temas deste terceiro romance.
Busco a verossimilhança nas minhas histórias. Escrevo sobre pessoas plausíveis, que poderiam ser nossos parentes, colegas de colégio, vizinhos, amigos ou ex-amantes. A pesquisa é imprescindível para que estes personagens consigam estabelecer um pacto com o leitor, para que façam com que ele sinta que os conheça, se identifique com eles e mergulhe nas suas histórias. O leitor tem que comprar a história como realidade.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando me sinto travada, vou almoçar com amigas, assisto filmes e leio dois ou três livros ao mesmo tempo. Tudo isso me serve de combustível e de assunto para novas narrativas. Almoço ou café com amigas, principalmente, é uma maneira deliciosa de destravar. Semana passada, depois de um almoço divertido com três amigas muito criativas, sentei e escrevi uma crônica escrachada em dez minutos. Como foi algo espontâneo e despretensioso, publiquei em seguida no Facebook. O resultado foram muitas risadas e feedbacks elogiosos. Aliviei o dia de muita gente, arranquei gargalhadas, atingi a minha meta de dividir a energia boa que amizades verdadeiras sempre nos deixam depois de mais um encontro.
Sou Coach Executiva por profissão e, por obrigação, crio o hábito da disciplina e combato a procrastinação nos meus clientes. Acredito em liderar pelo exemplo. Desta forma, apesar de ser indulgente comigo quando minha agenda é flexível, quando tenho um prazo a cumprir, nunca decepciono. Aliás, na maioria das vezes, entrego o material antes do estipulado. Detesto deixar para última hora, prefiro ter espaço pra manobra, caso haja necessidade de corrigir algo.
Com relação ao medo de não corresponder às expectativas, acredito que meu autoconhecimento e consequentemente, meu amadurecimento, contribuam para dirimir isso. As expectativas são só minhas, e se acho que um texto não ficou bom, tenho sempre a alternativa de jogá-lo fora (raramente desisto de um texto, ou de uma ideia recorrente), de tentar corrigi-lo na hora (não aconselho, a não ser que o prazo esteja batendo na sua porta) ou, na maioria das vezes, deixo-o descansar até me sentir reenergizada para encarar o desafio. Meu primeiro romance ficou quase dois anos descansando, até eu desenjoar dele. Após quase dois anos na gaveta, eu o revisei de forma a transformar as 303 páginas do original, em 160 páginas dinâmicas, de leitura vertiginosa. Meus leitores comentam que começam a ler “Quase tudo é risível” e não conseguem largar até chegarem ao último capítulo, dois ou três dias depois. Era essa a minha intenção.
No que diz respeito a ansiedade de trabalhar em projetos longos, isso, para mim, ainda é um problema. Quando começo a escrever um novo romance, a história já está toda delineada na minha mente. Claro que, na medida que vou colocando o enredo no papel, ele vai me surpreendendo, tomando rumos inesperados, conforme a trama evolui. Mas a frustação de ter tudo anotado, compilado, pesquisado, fichas biográficas prontas, todo o mapa do roteiro já traçado, e as páginas em branco não se transformarem em capítulos concluídos na velocidade que minha imaginação cria, é frustrante. Nunca vou digitar tão rápido quanto o meu pensamento. Mas para lidar melhor com esta limitação, tenho treinado yoga e meditação. Ainda tenho um longo caminho, mas já me livrei daquele punho que insistia em estrangular o meu duodeno no começo de cada nova história. Pratico muay thai também, pra vencer a ansiedade pelo cansaço. No meu caso, é o que funciona melhor. Chego do treino exausta, tomo um banho bem quente, relaxo, como e vou dormir. No dia seguinte, produzo muito, com qualidade.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não existe medida exata para a revisão. Em textos curtos, reviso duas ou três vezes. Depois disso, se continuar, acabo alterando o texto original. Meus romances, reviso cinco ou seis vezes, antes de enviar para o meu revisor/editor, que é o Daniel Zanella, editor do jornal RelevO. O Daniel, além da revisão, faz a leitura crítica dos meus contos e romances. Eu valorizo muito a opinião dele, o expertise que adquiriu até se tornar um Coach literário. Quase sempre acato as suas sugestões (só não negocio as mudanças de título) e minha prosa cresce muito com esta consultoria. Depois que o Daniel Zanella revisa, sugere, eu modifico, corto, aprofundo algumas narrativas, aí envio para duas ou três leitoras beta. Normalmente são mulheres, pessoas que conhecem e gostam de literatura e principalmente, pessoas que me conhecem bem. Prefiro enviar para mulheres leitoras, porque meu lugar de fala é normalmente de uma mulher, caucasiana, com nível de instrução superior, e em processo de autoconhecimento e amadurecimento. Respeito e acato o feedback que recebo das minhas leitoras beta. Depois desse processo, começo a submeter meus manuscritos para editoras e enviá-los para concursos nacionais como o da Biblioteca Pública do Paraná, o de Minas Gerais, o da CEPE (de Pernambuco).
No caso dos meus dois romances já publicados, depois de enviado para as editoras, eles são novamente revisados pelo revisor contratado pela editora, as revisões me são submetidas para aprovação (eu geralmente aprovo 95%, pois na verdade, já foram revisadas antes por um profissional contratado por mim, o Daniel Zanella). As alterações que eu não aprovo, discuto e justifico para o editor. No final, ainda tem o copydesk pra eu revisar se não ocorreram erros de diagramação, separação de sílabas (e por incrível que pareça, sempre tem alguma coisinha pra corrigir). Aí vai pra impressão. Meu publisher canadense, depois de todo este processo, pediu para a editora uma cópia impressa, pronta para ser comercializada, para ele revisar antes de aprovar a impressão final dos volumes. Fiquei encantada com o cuidado.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha geração é a intermediária entre os escritores que escreviam à mão e datilografavam seus originais em máquinas de escrever e o pessoal que digita no celular e já tem um aplicativo que salva aquele texto em Word numa nuvem, para que mais tarde possa ser acessado do tablet ou do notebook e aí corrigido, editado.
Eu me dou muito bem com a tecnologia. Quando fui contatada pelo Jo Czykmate, meu publisher canadense, estava de férias fora do país e ele queria que eu enviasse o manuscrito do “Hand Luggage” imediatamente. Não poderia perder a chance. Consegui baixar o documento de um e-mail que tinha mandado anteriormente para outro editor (não poderia dar um forward, né?) no Pages do meu Iphone e de lá, anexei num novo e-mail para a editora. Fiquei orgulhosa de mim mesma.
Normalmente, misturo anotações feitas à mão durante oficinas, ou aquela ideia fantástica que a gente tem durante uma refeição, na sala de espera da fisioterapeuta, com as notas ditadas no meu celular, que envio por e-mail pra mim mesma e aí o texto já fica digitado, com o roteiro que vou desenvolvendo no meu notebook. Acredito que 80% do que escrevo, é direto no Word. Sempre deixo numa nuvem tipo OneDrive ou Dropbox, e por pura pira, de tempos em tempos envio o original pra mim mesma, num e-mail alternativo. Aprendi isso com o Otto Winck, meu primeiro professor de escrita criativa, e quem me incentivou a desenvolver uma carreira literária.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm sempre de gente real, gente que convive comigo. Histórias que escuto na rua, que me contam durante um jantar, histórias vividas e sofridas por amigos, ou histórias que vivi e que se tornam ficção à medida que as recrio no papel, uma vez que eu não sou mais aquela pessoa que as vivenciou, e que as impressões que ficaram pra mim, como protagonista ou como participante, podem ser contraditórias. Tem um livro do Milan Kundera que adoro, se chama “A Ignorância”. Nele, a mesma história é contada por um homem e por uma mulher que viveram aqueles episódios juntos. Mas o leitor fica com a impressão de que são duas histórias diferentes, até o final do romance.
O hábito que cultivo desde que aprendi a ler, com cinco anos, é ler muito, ler estilos diversos, ler todo dia. Parece prosaico, mas um bom escritor só se forma a partir de um leitor interessado, que encara a leitura sem preconceitos e sem o fardo da obrigação. Ler, pra mim, é uma satisfação incrível. Sinto saudades de alguns livros depois que os termino. Outros, ainda, de tão bons, tento alongar a leitura, esticar ao máximo até chegar no fim. Economizo as páginas e, depois de alguns meses, releio aquele livro. A emoção é renovada e ao mesmo tempo, na segunda leitura, como já conheço o final da história, presto atenção ao estilo da narrativa, ao enredo, à construção da trama. Assim, cada livro que leio me ensina um pouco mais sobre a arte de escrever. A escrita é dinâmica, precisa ser constantemente aprimorada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Hoje em dia, me preocupo mais com a forma estética, com a elegância do texto, com a construção literária. Minhas matérias preferidas na escola sempre foram o Português e o Inglês. Escrever redação era pra mim, a hora do recreio, e ler livro nas férias para fazer resumo ou a ficha de leitura na volta às aulas, era um prazer, ao contrário da maioria dos meus amigos. Nunca tive problemas com ortografia, concordância. Mas escrever de forma literária é diferente de ser boa em português, ou em inglês, requer lapidação. “Escrever é cortar”, mas é também buscar a palavra que se encaixa perfeitamente naquela sentença, é construir a narrativa de forma mais calculista, num segundo momento.
Leio meus primeiros textos e tento limpá-los de aspas, exclamações, diminuo o tamanho das frases, corto advérbios, corto adjetivos, corto, corto, até ficar enxuto. Procuro também deixar mais espaço para o leitor inferir o que está acontecendo, para que a imaginação dele resolva algumas ambiguidades. Sou fã dos finais abertos, das múltiplas possibilidades de conclusão de uma história.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Meu quarto romance é o projeto que quero fazer agora, que há alguns anos me persegue, e que recém comecei. O título é “Dia positivo de família” (ou talvez se torne Rua Altino Arantes, 273). É um romance que se baseia num retrato antigo, narrado pelo fotógrafo profissional que era contratado para registrar as festas da família. A partir deste conto/capítulo, todos os outros contos estão relacionados, mas funcionam como narrativas curtas, também. Cada um deles aborda um membro ou agregado da família. A protagonista do romance é a neta fotógrafa, ainda pequena na foto original, que costura todas as narrativas, traça o fio condutor entre esses contos. O foco do conflito e personagem principal masculino é o avô, patriarca e detentor do poder financeiro da família. O foco secundário de conflito e a pessoa mais importante de toda a família, é a avó da fotógrafa. O romance é baseado nos meus avós maternos, mas todos os outros personagens são ficcionais (minha família não tem cores tão vivas para sustentar uma narrativa longa, dariam no máximo, uma crônica).
O livro que eu gostaria de ler, mas ainda não existe, neste momento, é este, meu quarto romance! Gostaria que já estivesse concluído, editado. Olha aí, que a minha ansiedade às vezes ainda dá as caras por aqui!