Cleber Pacheco é romancista, contista, poeta, dramaturgo e crítico literário.
Como você começa o seu dia?
Usualmente faço uma breve meditação.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Isso é variável. Não há um momento específico. Muitas vezes acordo com um ou mais poemas na cabeça. Trato de anotá-los logo, pois o momento passa e eles se perdem. Este é o instante em que a poesia flui naturalmente. Às vezes pode ser um microconto. Acontece também de acordar à noite e correr para anotar um poema. Não raro os sonhos rendem textos mais longos também. Já publiquei ao menos dois livros inspirados em sonhos. Então esse período de repouso é importante para mim.
Normalmente os textos mais longos escrevo à noite ou, se possível, à tarde, durante algum intervalo por causa do trabalho terapêutico que exerço diariamente. Então aproveito o tempo livre para dar seguimento a algum projeto em desenvolvimento. Na verdade, sempre tenho várias ideias ao mesmo tempo. E vou escrevendo na medida do possível. Não consigo desenvolver tudo o que gostaria. Tenho muita facilidade para elaborar livros, vejo inúmeras possibilidades, mas nem sempre há disponibilidade para escrever. Sempre tenho vários livros começados para não perder a história ou o projeto que me ocorreu. Volto-me àquele cujo chamado estiver mais intenso naquele determinado momento com o intuito de me dedicar a ele até concluí-lo. Depois passo ao seguinte. De modo que estou sempre produzindo. É um processo ininterrupto e, por assim dizer, inevitável. Não é nada forçado. Simplesmente acontece assim. Tenho uma imaginação fértil mesmo. Sempre foi assim. Desde criança tinha uma certeza: queria ser escritor.
Não tenho nenhum ritual de preparação. Apenas sento e escrevo. Nem tenho um lugar próprio para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Se estou envolvido com um livro específico, escrevo quase todos os dias até deixá-lo pronto. Isso é importante para não perder de vista o andamento do texto, seu ritmo e o envolvimento com o projeto que está se desenvolvendo. Feito isso, no período de “descanso” entre um livro e outro, escrevo poemas ou pequenos contos, mas são coisas mais momentâneas, com intervalos maiores entre um trabalho e outro e tudo ocorre mais livremente, sem a obrigatoriedade de ser um compromisso diário.
No período de adolescência até uma certa altura do curso de Letras, eu costumava escrever uma página por dia. Era a minha meta. Apenas uma página. Para fazer o melhor possível. Para que cada uma dessas páginas, para que cada frase e palavra fossem o melhor que eu poderia fazer. Isso foi uma disciplina muito importante. Sabia ser importante manter essa disciplina. Ser rigoroso comigo mesmo. Sentava-me diante da máquina de escrever todas as tardes e só saía dali quando a página ficava pronta. Isso me influencia até hoje no sentido de ter me tornado muito cuidadoso na elaboração dos livros, tornando-os densos, concentrados, sem palavras desnecessárias, indo direto ao essencial. É o meu estilo ainda agora.
Intuitivamente senti ser importante evitar o mundinho literário. Sempre senti necessidade de encontrar minha própria voz, de encontrar um caminho original, sem me preocupar com tendências ou modismos. E, assim, ocupar o meu próprio espaço.
Atualmente não me limito a apenas uma página. Escrevo o que sinto ser o suficiente por aquele dia e encerro.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Um romance sempre começa com uma imagem que se forma em minha mente. Uma imagem marcante e muito forte que condensa a essência daquele trabalho. Quando isso acontece, sei: um novo livro está nascendo. Por exemplo, no livro O Terceiro Dia a imagem inaugural, digamos, era a de um jovem, filho de mãe virgem. Claro que isso lembra Cristo e outros mitos antigos. Mas a ideia me pareceu irresistível. E o que poderia ser um texto místico ou de realismo mágico resultou, na verdade, numa história trágica, ou melhor, numa tragédia com características muito particulares. Meus trabalhos transitam por diversos gêneros literários, mas acaba por reinventá-los, transcendendo classificações estabelecidas. Já no livro intitulado Intersecções, a imagem inaugural era composta de uma pedra e uma flor e fez uso das fábulas e contos de fadas, para criar algo novo, com uma estrutura muito ousada. Por isso mesmo, rendeu muitas resenhas e ótima repercussão. No caso de Entes, o livro nasceu da imagem de um menino dentro de um poço. Neste caso, utilizei uma linguagem muito própria para narrar os acontecimentos, pois esse menino não fala, apenas emite grunhidos. De modo que a sintaxe do texto é muito particular, original.
Não costumo compilar notas. Depois da imagem inaugural, deixo o tempo passar para que aquilo fique transitando em minha cabeça até sentir: é hora de escrever.
Os livros que me exigiram pesquisa são diferenciados do restante do meu trabalho. Trata-se de uma literatura dedicada a um público mais amplo, com uma linguagem mais leve e como abordava temas complexos narrados de modo acessível, aproveitei meus estudos feitos e busquei esclarecer dúvidas quanto a alguns detalhes específicos. Foi o caso da trilogia O Mestre de Ellora, que abarcava textos de culturas diversas como a Bíblia, o Budismo, o Hinduísmo, Teosofia, Alquimia, etc., tudo misturado com uma boa dose de inventividade. E também foi o caso de Os Anciãos, que segue a mesma linha. Nestes casos, a pesquisa me auxiliou a desenvolver a trama, a mais longa já feita por mim. Confesso, desejava ter a experiência de narrar uma história mais longa. Isso exige cuidados, uma elaboração cuidadosa para não se perder. Era um desafio. E os diversos conhecimentos utilizados foram benéficos. Embora pareça se tratar de um emaranhado de religiões e culturas distintas, tudo ficou coerente e bem amarrado. Assim a história se manteve sempre em movimento, com a incessante sucessão de acontecimentos e todos eles importantes para o desenlace no terceiro volume, para onde tudo converge e surgem as respostas necessárias para o entendimento completo da trama.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Hoje em dia não tenho problemas com travas e bloqueios. Uma vez que me dedico a deixar o livro pronto, sigo em frente até concluí-lo. É porque só começo a escrever quando sinto que a ideia está realmente madura. Então em pouco tempo consigo deixar o texto praticamente pronto.
Quando publico um livro, não tenho muitas expectativas. Elas só atrapalham.
O projeto mais longo foi o da trilogia. Mas não me causou ansiedade. Não tinha prazos a cumprir.
O mais complexo, na verdade, foi uma experiência bem recente. Trata-se da primeira tradução longa que realizei. A editora Penalux fez a proposta e aceitei. Por se tratar de um autor cult, a responsabilidade aumentou. E era a primeira vez que fazia um trabalho extenso assim. As outras traduções haviam sido apenas poemas postados no meu blog. É um trabalho completamente diferente. Você está lidando com o texto de um outro autor. Isso causa receio. Mas como gosto de experimentar tudo o que a escrita pode oferecer, era um risco que eu queria correr. É um trabalho exaustivo. Seis meses de dedicação diária. Neste caso, há uma certa expectativa. O livro ainda não foi lançado. Já fui contatado para uma nova tradução a ser feita no próximo ano.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Escrevo uma vez. Depois reescrevo. E aí vem a revisão, modificando uma ou outra palavra.
Nos últimos anos, por questão de amizade e afinidade, quem tem lido meus textos em primeira mão é o escritor Cláudio B. Carlos.
Comentamos rapidamente a respeito do trabalho realizado. Ele conhece muito bem meu estilo e minha obra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Antes eu datilografava. Aos dezessete anos ganhei uma máquina de escrever e a usei muito. Há uns oito anos escrevo em cadernos. Depois digito os textos e aí faço as mudanças necessárias. Sinto necessidade do manuscrito, do contato com o papel. Há uma energia fluindo diferente quando se utiliza caneta e papel.
Algo mais visceral. Isso faz a diferença. Mas o computador é essencial, pois facilita o processo de reescrever, de repensar o texto. E agiliza a revisão, o envio para a editora.
Muitas vezes quando escrevo para o meu blog literário, o translittera, faço os poemas diretamente no computador. Isso me ajudou a criar uma outra dinâmica de escrita, novas possibilidades. Também é interessante. Mas os trabalhos longos são todos feitos, primeiramente, nos cadernos. Aliás, quando comecei a escrever poesia, aos quatorze anos, já os utilizava. Tenho pilhas de cadernos com romances, poemas, contos, ou livros iniciados e ainda não concluídos.
Por um período, ainda muito jovem, costumava preparar folhas, dobrá-las e montar os meus livros caseiros, desenhando a capa e fazendo ilustrações. Chegava a escrever um pequeno livro todos os finais de semana. Nos outros dias ficava elaborando mentalmente a história, personagens, para, no sábado e domingo, colocar tudo no papel. Isso foi muito importante depois porque fiz as capas dos meus primeiros livros publicados e fiz, de fato, algumas ilustrações para livros no Brasil e no exterior. De modo que todo esse exercício foi essencial para o meu trabalho como escritor. Hoje tenho uma noção muito clara do tamanho do livro, do espaço da página, da estrutura de um livro, do seu desenvolvimento. A densidade obtida, hoje, no trabalho é fruto de uma vida toda de preparo, de exercício artesanal, de estudo, de muita leitura e de dedicação total. Muito cedo compreendi que o talento é essencial, mas não basta. É preciso escrever muito, ler muito, estudar muito. Sem dedicação, nada acontece.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como expliquei antes, em sua maioria os livros nascem de uma imagem inaugural ou fundamental surgida em minha mente. Depois há outras situações inspiradoras: uma fala de alguém, aparentemente simples e banal, me fornece uma ideia. Ou uma foto interessante. O contato com a natureza também é muito importante. Ela está sempre presente, de um modo ou de outro, nos poemas e nos romances. Aliás, quem ler os meus livros perceberá: tudo neles é intensamente vivo: não só a natureza em si ou os personagens. Até mesmo os objetos têm vida.
Não costumo usar cadernetas de anotações. A não ser que eu já saia com o intuito de escrever.
Não faço algo específico para manter a criatividade em dia. Estou sempre lendo, mas isso é um hábito e uma necessidade. Gosto de música clássica, sempre importante para aguçar a sensibilidade. O cinema de qualidade sempre me interessa. Gosto muito de desenho e pintura. Tudo isso nutre a imaginação.
E, é claro, a meditação faz tudo fluir com muito mais facilidade. É como afinar um violino. De preferência um Stradivarius.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A mudança ocorrida em minha escrita foi no sentido de adquirir maturidade por meio da leitura, do estudo e de escrever sempre. Dominar a técnica. Sem perder a sensibilidade. O curso de Letras me ajudou muito nisso, pois foi ali que aprendi a analisar profundamente um texto e me incentivou a escrever crítica literária. Publiquei diversos artigos sobre livros e autores brasileiros. Um desses trabalhos é o livro A Arte Poética de Aricy Curvello. Foi muito bem recebido por críticos literários de renome. Agora, pela primeira vez, preparo um livro de ensaios a respeito de literatura estrangeira.
Com o tempo consegui adquirir domínio sobre o texto e saber exatamente o que quero, sem vacilar. Recentemente, num jornal literário escreveram que tenho um estilo único. Trabalhei exatamente para isso. Era um dos meus objetivos. Foi muito compensador ler a análise feita. Sempre quis ousar, inovar, ter voz própria, criar um mundo literário muito próprio. Sem ignorar a história literária brasileira e universal, evidentemente. Caso contrário, não teria tido êxito.
Se pudesse voltar aos meus primeiros escritos diria: fiz bem em começar a publicar um pouco mais tarde. A trajetória do início até hoje mostra coerência e crescimento. Esperar a hora certa de publicar, vencendo a afobação inicial, deu certo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho projetos para dois romances que ainda não tive tempo de começar. A meu ver, são muito interessantes, quero realmente escrevê-los, mas ainda não foi possível. E há livros já escritos para serem trabalhados e ficarem, de fato, prontos, mas também não houve tempo suficiente para me dedicar a isso. Gostaria também de poder me dedicar mais aos textos para teatro e montar peças. Mas isso, no Brasil de hoje, é cada vez mais difícil. Tarefa hercúlea.
Gostaria ainda de escrever algum roteiro para o cinema. Outra experiência fascinante, a meu ver, mas quase impossível. Tudo é muito difícil nessas áreas. Projetos não me faltam, portanto.
O livro que eu gostaria de ler e ainda não existe seria um texto literário longo, muito bem elaborado e feito como os livros medievais: de modo manual, com magníficas iluminuras, um livro que fosse uma obra de arte, um clássico contemporâneo executado por um monge copista de nossos tempos.
Fantasia de escritor apaixonado por livros, não é mesmo?