Clara Arreguy é jornalista e escritora.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Faço muitas coisas ao mesmo tempo, não por opção, mas porque minha vida conduziu nesse sentido. Antigamente, quando eu era jornalista full time, tinha que encaixar a criação dos meus livros no pouco tempo livre que eu tinha. Por exemplo, começava a escrever um romance nas férias, dava uma boa adiantada nele, de modo que, quando voltasse à rotina da redação, o trabalho já havia superado aquela dificuldade inicial e eu já estava embalada.
Depois que me aposentei e criei a editora (Outubro Edições), tenho que alternar os trabalhos de editora, revisora, escritora, tenho que visitar escolas, preparar palestras, participar de eventos, fazer feirinhas pra vender meus livros… Então, voltando à primeira pergunta, organizo a semana de acordo com esses compromissos que têm prazo, dia e hora marcados, e vou encaixando os demais nos espaços que sobram. Não é fácil!
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sou aquela escritora que não acha difícil escrever, nem a primeira nem a última frase, mas em geral a primeira surge cristalina, quase como a ponta de um fio que começo a puxar e traz tudo consigo. Por exemplo, quando escrevi Siga as Setas Amarelas, a frase de abertura já estava em minha cabeça chamando o livro pra nascer: “O que subjaz a toda a essa coragem que Miriam ostenta do alto de sua bicicleta a quarenta quilômetros por hora na descida do morro em plena Espanha é medo”. O nome do arquivo word que criei era “O que subjaz”.
Sobre planejar, não sou de estipular muito todos os passos, não. Algum planejamento eu tenho, os principais personagens, as principais situações. Mas nem o final eu tenho definido de antemão. Já matei ou salvei personagens da morte numa decisão tomada ali, nas últimas linhas (rsrsrs). Tem coisas que surgem no meio do caminho sem aviso. Escrevo muito ao sabor dos dedos no teclado. Não tenho completo domínio. Às vezes os personagens decidem por conta própria e eu só obedeço. Fazem ou falam coisas que eu nem imaginava que fariam ou falariam.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Fui formada em redação de jornal, nos anos 80, portanto, acostumada a escrever em máquinas barulhentas, cercada por telefones tocando, colegas conversando ou entrevistando ao lado, TVs e rádios ligados. Tive esse ambiente durante quase 30 anos de profissional. Muitas vezes escrevi livros em casa com crianças brincando ao redor, música, som de televisão. Hoje, trabalhando em home office desde 2012, descobri as delícias do sossego e evito até música. A não ser quando ela é inspiração direta para o projeto, como foi o caso do Rádio Beatles, que escrevi ao som dos Beatles no original ou adaptados em versão sinfônica, reggae, chorinho, samba, etc. Ou do meu outro livro “musical”, o Estrelas de Pés no Chão, que tem a estrutura de uma ciranda na qual cada personagem conta a história de sua avó a partir de um objeto ou de uma música. Eu pesquisava as canções que tinham a ver com uma daquelas histórias, ouvia-as, e aí a música não me perturbava. O melhor ambiente pra escrever é o meu escritório, onde tenho o equipamento ideal, a cadeira confortável e na altura certa, os dicionários à mão, os recursos todos de que preciso com o máximo conforto. Continuo capaz de escrever no notebook, hospedada em hotel ou na casa dos outros, em meio a gente e barulho. Mas é sensivelmente mais difícil.
Outra coisa da rotina é estabelecer certa obrigatoriedade de escrever. Se começo um livro, posso não escrever muito todo dia, mas um pouco pelo menos tenho que cumprir. Pra não deixar arrefecer a energia inicial, pra não deixar a preguiça, inimiga maior do escritor, vencer. Pode ser de manhã cedo, a primeira tarefa do dia, pode ser até à noite, antes de dormir. Mas é obrigação diária.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travada?
Raramente me travo pelo que chamam “falta de inspiração”. Em geral esse não é um problema. Mas a procrastinação, que chamo de preguiça, mesmo, é inimiga feroz, e nos distrai com todo tipo de tentação: série de TV, joguinhos, a leitura de um bom livro (tem gente que evita ler quando está escrevendo, mas não é o meu caso). Definir metas, tarefas obrigatórias, ajuda a combater a procrastinação. Costumo disciplinar os joguinhos, por exemplo, me concedendo jogar apenas após cumprida determinada tarefa. Funciona.
Já quanto ao travamento de ideias, embora não seja meu maior problema, ele também me acomete de vez em quando. Tenho uma história parada há mais de 10 anos porque fiquei sem saber pra onde ela devia caminhar. De vez em quando eu a pego, releio, acho que vai indo bem. Mas quando chego no ponto em que parei, continuo sem vislumbrar a solução. E ela volta pra gaveta. Recentemente aconteceu de novo, mas como foi durante a pandemia, creio que ainda possa encontrar a saída pra essa história. Depois que interrompi sua escrita, ainda não voltei a ela. Em breve faço a primeira tentativa de salvá-la da gaveta.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Em geral eles todos me orgulham muito, principalmente porque consegui começar e terminar cada um deles, o que é o maior desafio. Quando olho pra trás e me vejo com 26 livros publicados, dá até uma incredulidade. E eu que me achava preguiçosa! Mas livro é filho, e amamos todos eles, embora alguns deem mais trabalho que outros. Os que precisavam de mais pesquisa, claro, exigiram mais de mim, em termos de tempo, de investigação. Pra escrever Rádio Beatles, além de ouvir as músicas, li as biografias que pude deles, vi filmes, mergulhei ao máximo naquele universo, ainda mais que o protagonista é um beatlemaníaco e eu, apesar de gostar muito deles, não me encaixo no perfil.
Já o Dia de Sol em Tempo de Chuva começou como a tentativa de contar a história do meu avô português. Li cartas da minha avó, mulher dele, o livro da cunhada dele, cadernetinhas do meu tio, a história da cidade dele, em Portugal, entrevistei um monte de gente que poderia me falar dele… Mas ele já havia morrido havia quase 50 anos, então foi difícil montar o quebra-cabeça, de modo que demorei mais e acabei ficcionalizando a maior parte da história.
Em termos de texto, o que mais burilei à procura de um estilo, de uma forma que se aproximasse do que eu almejava como escritora, foi o Tempo Seco. Não quero dizer que tenha me dado mais trabalho nem que me orgulhe mais, mas o sinto como bem acabado, e gosto de constatar isso sempre que o releio.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém uma leitora ideal em mente enquanto escreve?
Não penso num leitor ideal para quem escrever. Como sou leitora voraz e exigente, trago pra minha escrita a mesma exigência. Adoro um texto bem acabado, a palavra exata, a construção da frase mais elegante, mais fluente. Não gosto de degraus, de ruídos. Então busco “caprichar” nessa escrita que encante o leitor. Evito repetições cansativas, a não ser quando quero, de propósito, a rima, o ritmo, o jogo de palavras.
Já quanto aos temas, eles variam dentro de uma gama de assuntos que me interessam. Já constatei que rodo, rodo e não saio de perto da política, do futebol, da memória familiar, da música, da arte. Mas as histórias, em si, surgem de situações inesperadas. Tempo Seco, de uma frase que ouvi dentro do táxi: “Coitado, um cara tão bonito, tão gente boa, e a mulher fez aquilo com aquele. Roubou tudo dele e o deixou na merda”. Rádio Beatles, a ideia me veio durante um show da banda do meu irmão que toca as músicas dos Fab Four. O Quarto Canal, durante um tratamento dentário, claro, e ao ouvir uma frase de uma amiga de outro irmão meu: “Você acredita que o aluno me denunciou e a direção da escola me mandou parar de dar o conteúdo da aula de sociologia? Até o nome da cadeira trocaram!”.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Dois dos meus irmãos, ambos formados em Letras, são revisores profissionais e são os revisores dos meus livros, então leem tudo em primeira mão. Um terceiro irmão, com quem moro, costuma ler antes dos outros. Um ou outro amigo mais próximo também lê, em geral escritores, professores que dão bons palpites. Mas não mostro antes de estar pronto. Talvez tenha sido este o meu erro quanto àquele último texto que interrompi por não saber pra onde devo ir: li um capítulo dele pra dois amigos, aí encalacrei.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Quando eu era pequena, já adorava fazer minhas redações. Minha avó me apresentou a uma amiga como “a futura literata da família”. Nunca esqueci aquilo. Sempre soube que gostava e queria escrever. Escolhi a profissão de jornalista porque avaliava que seria a que mais me permitiria escrever. O primeiro livro, no entanto, só veio depois que comecei a fazer análise. Já tinha quase 40 anos. Não escrevia antes porque me achava imatura, pensava que não dominava assunto nenhum a ponto de escrever um livro inteiro sobre ele. Aí me veio a ideia de contar minha experiência no movimento estudantil, e nasceu o Fafich. Depois tive a ideia de escrever sobre futebol (o Segunda Divisão), porque era o tal assunto que eu dominava a ponto de escrever um livro inteiro sobre ele. Aos poucos fui me permitindo simplesmente contar histórias, e aí ficou mais fácil. A experiência como jornalista me ensinou que, quando não sei muito de um assunto, pesquiso, leio, estudo.
Não me faltou incentivo, não me ocorre algo que poderiam ter me dito quando comecei. Uma coisa me disseram e eu desobedeci: que não fizesse autopublicação nem publicasse livros independentes porque isso me desvalorizaria no mercado. Que eu aguardasse pacientemente ser descoberta por uma boa editora. Não esperei nada. Quando vi que, se dependesse das grandes editoras, eu ficaria engavetando projetos dos quais gostava, parti pra minha própria editora, e aí está a Outubro com seus 66 títulos já lançados, entre os meus e os de outros autores.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Não procuro estilo próprio. Gosto do jeito que escrevo, que procura a simplicidade sem nivelar por baixo, que procura a fluência sem abrir mão da palavra exata, mesmo se ela for considerada mais “difícil”. Gosto da frase curta, às vezes sem sujeito, às vezes sem verbo. Mas adoro também a construção gongórica, as infinitas orações subordinadas, a frase longa sem vírgula, sem muleta. Não tento inventar uma linguagem, mas não recuo se aos meus ouvidos o que escrevi soar bem. Obedeço aos meus ouvidos.
Lia as crônicas de Drummond desde a infância no jornal de todo dia. Acho que sua simplicidade me influenciou. Me apaixonei pelo Philip Roth logo antes de começar a escrever, então sonho em imitar seu estilo, mas não me atrevo, é só sonho, mesmo. Guimarães Rosa é a coisa mais linda que já li. Mas não tento nem me imagino fazendo o que só ele fez. E tem as crônicas do meu pai, José Henriques Maia, que até editei em livro (Dois Dedos de Prosa), que me ensinaram a sempre fechar o texto com a chave de ouro. Seu Maia procurava isso em verso e prosa. Tento seguir essa lição dele, entre tantas outras, mais importantes.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
Nas minhas andanças, mando alunos das escolas que visito lerem, lerem, lerem. Se a pessoa ler o que gosta, é meio caminho andado. Se gosta de autoajuda, leia. Se prefere policiais, leia. Mas leia! Eu mando todo mundo ler Grande Sertão: Veredas, porque é uma espécie de bíblia pra mim. Mas tem gente que acha difícil, então vá a outro do Guimarães Rosa: Sagarana, Miguilim e Manuelzão… O importante é ler.