Christine Gryschek é escritora, artista visual e psicóloga social.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu organizo minhas memórias e a cabeça nas manhãs, começo o dia devagar. Faço um bom café, capricho nos alimentos matinais, espremo limões, acendo incensos, vou me lembrando dos sonhos, relembrando as narrativas e anotando os tópicos mais importantes da noite. Depois eu até escrevo pro externo (não necessariamente todos os dias, mas existe uma frequência semanal). E pode ser a dissertação (estou concluindo meu mestrado em psicologia social e institucional) ou literatura. Tenho me expressado bastante em 2019.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
2019 me trouxe para as manhãs. Sempre fui muito notívaga, foram anos produzindo muito tarde da noite e na madrugada. Hoje estou em outro ritmo e processo. E não chamo de ritual exatamente, mas é preciso que eu avance etapas, que me sinta desperta, então com certeza o ato do café, de traduzir os recados dos sonhos, de defumar a casa, com certeza todos estes pequenos atos que faço independentemente de me sentar ou não para escrever, todos os atos na manhã são cruciais para que eu realmente amanheça.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não escrevo todos os dias. Meu funcionamento é por projetos, então trabalho muito em pouco tempo. E acho que é assim desde criança. Sempre fui das vésperas e me organizo melhor assim. Aprendi a não me assustar com isso, e a curtir a adrenalina em vez de me gastar.
Trago um exemplo: recentemente terminei os poemas do meu segundo livro. Levei mais ou menos um mês, porque eu condicionei os turnos e um número de produção por turno. Mas era um livro que habitava minha cabeça há alguns anos, e eu vinha consumindo muita teoria e pensando bastante no assunto, então não foi “rápido”. Ao contrário: penso que ele veio maduro, porque passei muito tempo refletindo sobre os temas e sentidos presentes nas páginas.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É sempre de acordo com o projeto específico no qual estou concentrada.
Quando se trata de escrita acadêmica, por exemplo, eu fico uns 80% do tempo lendo lendo lendo, tomando notas e fazendo esquemas. Eu faço muito esquemas. Gosto dos mapas conceituais. Daí, montados os esquemas e mapas, eu retorno aos trechos de agrado e transcrevo, já deixo as citações todas nos arquivos e vou “traduzindo” os esquemas com as citações. O meu texto é uma grande colagem, meus ensaios são bastante generosos em citações e eu não vejo problema nisso. Pra mim é importante a marcação disso no texto, toda referência que faço é também uma tentativa de agradecimento.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não tem como eu não citar o processo analítico. Para minha formação como escritora foi estrutural o fato de estar sendo analisada. Certamente teve o antes, e agora tem o durante. Anteriormente eu me sentia ancorada. Tinha medo. Sentia todas as travas, os surtos, uma ansiedade absurda, um enorme medo de me desapontar e desapontar as minhas e os meus. Eu escrevia por obrigação e só mantinha o diário de sonhos. Mas os poemas, os ensaios, os artigos, tudo era muito complicado. Com muito esforço escrevia um que outro trabalho ou poema. E eles eram criados com um espaçamento enorme.
Eu acredito que a literatura é um instrumento social, assim como a prática clínica. Temos problemas sérios de saúde pública no país, mas, idealmente, eu defendo uma possibilidade analítica para todas as pessoas. E existem clínicas e psicólogos sociais dispostos a realizar um trabalho bom e acessível. Foi o que me ocorreu, eu me dispus a fazer um tratamento que eu tanto defendia (e vou sempre defender). E cuidando da minha saúde mental mais de perto, me permiti uma escrita bem mais direta, mais espontânea, quase que cotidiana. A análise me ajuda a me manter concentrada em processos longos e curtos, me concentra em mim, me devolve os pontos que tenho que ir resolvendo. E aqui abro pra uma pontuação necessária do recorte de gênero: percebo muitas escritoras da minha geração que ainda estão caladas, que sofreram extremos processos de silenciamento, e acredito que uma boa terapia é capaz de promover a voz e o texto, a autoconfiança.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito meus textos. Mesmo quando entrego no prazo limite, eu deixo algumas horas para a limpeza, para a decantação e uma possível adequação de escrita. Tenho o privilégio de me relacionar com pessoas maravilhosas que são revisoras. Confio na revisão e na opinião sincera delas. Isso tem me promovido um intenso amadurecimento linguístico. Então, a revisão externa faz parte do meu processo de modo muito grande.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Íntima. Preciso da internet para quase todos os processos criativos. Porque, antes de criar imagens textuais, eu crio imagens visuais, eu penso em imagens e narrativas. E pra isso preciso ter um repertório imagético, uma nuvenzinha de imagens, uma biblioteca mental e virtual. E eu tenho um processo de escrita bem cenográfico, cinematográfico, o que envolve também o acesso a músicas, então eu preciso estar conectada ao Youtube e procurar a melodia que mais faça sentido praquela escrita, preciso estar conectada ao Tumblr e ao Pinterest pra pensar imagens. Assim, os primeiros rascunhos acontecem no computador, às vezes no próprio Tumblr.
Mas também sou analógica, crio imagens manuais (faço colagens e pinturas) e também escrevo muito com canetas em casa, e, quando não estou em casa, quando me vem um novo verso ou ideia, tenho alguns caderninhos pra essas ocasiões.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que as principais ideias vêm convivendo com as pessoas, gosto das narrativas individuais, das histórias de vida.
Meu livro “recomece, agora sem cigarro”, por exemplo, veio de uma série de encontros clínicos e afetivos, e também de algumas memórias pessoais da infância, além de algumas leituras muito pontuais que enfatizaram o mote do poemário.
Em síntese: me relaciono muito, presto muita atenção nas pessoas, leio bastante, e como escrevi antes, vejo muitas imagens, ouço músicas muito distintas em estilo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Estou mais segura, mais concentrada, mais sintética e comunicativa. Isso diz respeito a um amadurecimento linguístico, que, de novo, atribuo às trocas com as pessoas.
Eu diria: “vai nessa!”, porque acredito no processo, acho que foi um processo vagaroso, porém necessário e preciso, que me traz hoje pra cá, que me convence. Eu era uma poetinha que não superava os trocadilhos, mas ok, tudo tem um começo, e que bom que a gente veio da infância.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Quero muito escrever dois livros autoficcionais complementares, tratando da infância e da minha relação com a família e a religiosidade. Já tenho o projeto, o enredo, as teorias sociológicas e algum pouco da estrutura. Mas é algo pra daqui uns anos. Algo menos ingênuo e mais responsável.
Tenho certo que tudo o que gostaria de ler já existe, eu apenas não encontrei. Virá no momento em que eu estiver preparada. Pra mim literatura também é oráculo.