Christi Rochetô, autor de “Sombra Fria” (Patuá, 2020).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não há uma rotina, sim alguns hábitos. Normalmente levo algum tempo para acordar, preparo o café enquanto me arrumo para ir trabalhar; tomo café com minha esposa, esse momento é importante, conversamos sobre os sonhos, tenho comigo a crendice de que os sonhos são sinais do porvir e já trago desde outras gerações as “chaves” para interpretá-los, como também os uso como elementos do “ver o mundo” do eu lírico. Há muito dos meus sonhos no que eu escrevo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não escolho um momento certo para escrever, escrevo nos momentos que posso ou quando algo me arrebata. Seja no trabalho, no ônibus — muito pouco em casa. Não tomo o ato de escrever como um trabalho, para mim é algo que está entre uma necessidade e um robe. Mas, quando tenho todo o material pronto e eu preciso sentar para escrever em definitivo — digo, colocar em ordem, podar as arestas, fazer as devidas correções e unir tudo num mesmo arquivo — escolho momentos de silêncio: de manhã cedo, à tarde durante a cesta ou no fim da noite; e tomo muito café enquanto o faço. Gosto muito de ler, mas sempre que estou num processo criativo, tendo a ler muito mais, e sempre os mesmos livros ou autores. Outra coisa que faz parte desse “ritual” é o que eu ouço durante o período em que estou trabalhando um texto, sempre cancioneiros sul-americanos ou especificamente nordestinos, essas músicas oriundas do popular têm a força de ligar a poesia que eu tanto preciso para escrever.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo (entenda escrever como colocar no papel) de forma concentrada, sem medir, minha preocupação é o texto em si, não o tempo ou a quantidade. Posso levar minutos ou anos para finalizar um conto, por exemplo. Isso não quer dizer que eu não esteja o tempo todo compondo o que eu irei escrever, seja enquanto cozinho, na condução que me leva e me traz do trabalho… Em cada intervalo de tempo estou “escrevendo”, e nem sempre tudo que “escrevo” vai para o papel.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Posso dizer que passo a maior parte do tempo pensando a escrita, pesquisando, para jogar, de uma vez só, no papel. Depois disso, posso passar mais tempo lapidando, através de incontáveis revisões, até sentir que o texto me agrada como está (nunca está pronto!). Esse período de composição envolve sempre o trabalho mental, embora eu esteja sempre investigando a minha linguagem, anotando expressões e nomes que colho em conversas e lendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu não me preocupo com travas, quando elas vêm, eu tomo esse tempo para mim, continuo lendo, pesquisando e, no mais, levando a vida. A escrita é mais algo que me lava pela mão do que um ser que eu tente dominar, por assim dizer. Nisso, pouco importa se um texto é mais longo ou mais curto, e não é incomum eu trabalhar em mais de um ao mesmo tempo. Agora, há sempre a preocupação com o que os outros vão ver desse ou daquele trabalho. Acho que foi Gabriel Garcia Márquez que disse uma vez que a gente escreve para que os outros nos queiram bem, acho que isso resume a coisa toda. Mas me policio constantemente que esta preocupação não se intrometa na minha escrita. Enquanto escrevo, aquilo é de propriedade só minha, depois, publico rezando que os outros gostem.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Não sei dizer quantas vezes eu revisito e reviso um texto. Como já foi dito, um texto pode levar meses ou minutos para eu me sentir satisfeito. Nesse meio tempo, resisto como posso à tentação de sair mostrando para outras pessoas que senão minha esposa, mas nem sempre consigo. Mas, mesmo assim, sou muito “mal’ouvido”, como dizemos aqui de quem dá pouca atenção ao que nos falam. O que eu escrevo, tomo como propriedade minha enquanto estou trabalhando no texto, as opiniões de fora, mesmo de amigos, não costumo tomar muito em conta. Penso que porque, nesse preambulo, só eu consiga vislumbrar onde quero chegar. Minha esposa, no entanto, sempre lê, e a opinião tela eu tenho muito em conta. Inclusive, converso muito com ela sobre cada passagem de um capítulo ou conto antes de escrever, na minha busca pela linguagem de meu lugar, é sempre nela que eu texto se consegui me fazer compreender.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto! Acho o computador e o celular ferramentas facilitadoras para o trabalho de pesquisa e escrita. É de uma tal comodidade corrigir uma frase sem pôr a folha inteira a perder, que praticamente escrevo tudo por essas tecnologias. Escrevo algumas coisas à mão sim, gosto do exercício de escrever no papel, mas só consigo chegar ao processo definitivo com o conforto do computador. O celular, por sua vez, é meu caderno de notas. Já pensou, por exemplo, escrever à mão no sacolejo do ônibus e ter que decifrar o que escreveu depois?
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Minhas ideias são a condensação de muitas coisas: o jeito que meus conterrâneos falam no dia a dia, seu jeito também de contar histórias, sobretudo dentro das casas onde cresci. Há uma herança na minha família de contar histórias, vindas talvez de minhas tataravós, e isso é algo intrínseco dentro de mim. Muitas coisas vêm dos sonhos também, de coisas que leio ou presencio no dia a dia; e sobretudo de um olhar, de um jeito de ver as coisas que eu tinha quando criança e que meu eu lírico se apropria para escrever. Há também, de maneira muito contundente, o espaço da memória, minhas estórias são como esqueletos cujas carnes que os revestem são memórias que tiro de contexto e preencho essa ossada para dar vida ao objeto-texto, as memórias não compõe as tais estórias, mas sem elas eu não conseguiria dar via à narrativa. Mas, como já fora dito, a criatividade não é algo que eu tente domar, é mais uma força que me toma pela meubraço e me leva, ou que me usa como instrumento.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Houve uma descoberta de mim e de meu mundo, por assim dizer. Quando eu lia Mia Couto, Gabriel Garcia Márquez, Ruan Rulfo, eu lia em seus mundos, algo de meu mundo. Queria eu escrever também meu mundo — minha aldeia, como dizia meu professor de pintura Erasmo Andrade —, e que quando alguém me lesse, visse também algo de seu próprio mundo na leitura. Vejo que tenho caminhado para conseguir isso, e tal feito me deixa muito satisfeito enquanto artista. Se eu pudesse ir lá atrás e dizer isso para mim mesmo, eu não o faria, o fluxo das coisas foi muito importante para esse momento de realização. Lá atrás eu só diria para mim mesmo, “continue a nadar”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O próximo, sempre o próximo. Posso não gostar depois, mas sempre gosto muito do que eu estou escrevendo no momento. Mas quero ver um dia, cada vez mais e mais trabalhos que mostre um Nordeste fora dos estereótipos que descrevem o Nordeste inteiro como fosse uma massa de uma coisa só. Sonho ver trabalhos que mostrem nossa humanidade, nossas dicotomias, não um Nordeste amarelo e rústico, vestido de couro e pisando o chão rachado salpicado de cactos. O Nordeste que inspirou esse já não existe há muito tempo. Então o que existe? Essa é uma de minhas buscas.