Cezar Tridapalli é escritor, autor de Pequena biografia de desejos (7Letras, 2011) e O beijo de Schiller (Arte&Letra, 2014).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Fui trabalhador assalariado até 2015, o que demandava ter uma cabeça ainda mais dividida entre as coisas da literatura, da vida prática, do trabalho que tinha pouco a ver com criação (apesar de eu coordenar um setor criativo, para mim ficavam as broncas burocráticas). Esse meu trabalho era sempre pela manhã. Então meus dois livros publicados foram escritos sobretudo no período da tarde, embora eu renda mais no início do dia (foi-se o tempo em que eu escrevia à noite, até a madrugada). Vivi a escrita de mais dois romances, ainda inéditos, depois de 2015, quando pedi demissão e entrei em outra rotina. Mesmo assim, minhas manhãs são muito dedicadas a estar com os filhos (uma menina de 7 e um menino de 3 anos), o que, a propósito, tem suas semelhanças com o processo literário: é cansativo, algumas vezes desanimador, mas rende um prazer consistente. Os filhos ainda dão um prazer extra, o das boas risadas. À tarde, com os pequenos na escola, eu me dedico à escrita, me espremo nas três ou quatro horas que tenho para ficar sozinho. Algumas noites ainda dou oficinas de criação literária, o que também demanda tempo de preparação, seleção de materiais e tal. Quando não estou empenhado na escrita de um romance, não sou um escritor que escreve todos os dias. No entanto, quando estou, aí sim, escrevo sempre, e de tarde. É muito ruim, nesse período, pular dias. Já tive a experiência de parar por longo tempo em meio à escrita de um romance. Recolocar a narrativa nos trilhos é muito difícil, chato. O ideal é reler boa parte do que escrevi, a fim de retomar a tal da dicção do texto, imprescindível para que não vire um Frankenstein e dê ainda mais trabalho nas revisões, que já serão muitas. De tempos em tempos, me refugio, saio da cidade para escrever de modo mais intenso.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Como disse, trabalho melhor pela manhã, mas só escrevo à tarde. Tenho alguns rituais bobos no momento de planejar uma obra. Planejo-a com cuidado, reúno anotações esparsas, sem ligação necessária entre elas, usando o Google Keep, um aplicativo do Google que nada mais é do que um bloco de notas que fica na nuvem. Assim, qualquer anotação feita no celular, por exemplo, já estará em meu computador quando precisar usá-las. Quando começo a planejar um romance, reservo essas anotações e faço uma planta baixa, com lápis, borracha e uma cartolina (o ritual bobo é sempre comprar esse material novinho). Nessa planta baixa, conto para mim mesmo a história do livro que ainda não existe. É um resumo do livro antes de o livro existir. Aí pego as anotações esparsas e as distribuo ao longo desse resumo, avaliando onde podem ser encaixadas. É um processo minucioso de arquitetura da subjetividade. Por mais que eu fale em planta baixa e arquitetura, o planejamento ainda assim tem toda a liberdade de, no processo da escrita propriamente dito, sofrer alterações. Às vezes um personagem previsto no projeto não rende tanto; ou, ao contrário, outro personagem cresce. É um grande jogo entre planejamento e improvisação, entre uma estrutura a priori e a novidade que surge quando os dedos estão martelando o teclado.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Posso dizer que as duas coisas: escrevo todos os dias em períodos concentrados, ou melhor, quando estou em processo de escrita, escrevo todos os dias. Gosto de tentar duas a três laudas por período de trabalho, mas não me sinto mal se não atinjo isso, assim como não fico eufórico quando consigo ir além. Aliás, é sempre bom desconfiar quando a escrita sai fácil demais, pode ter havido aí um empréstimo inconsciente de frases-feitas, sem marca de autoria.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meus dois primeiros romances tratavam de questões individuais, seus personagens eram sujeitos urbanos e seus conflitos giravam em um raio mais curto, de âmbito familiar, e em uma cidade que eu conheço bem, a minha cidade, Curitiba. São poucas incursões fora desse espaço (um pouco de Itália em Pequena biografia de desejos e um pouco de França e Alemanha em O beijo de Schiller, mas todos lugares que eu já conhecia e aparecem de forma apenas tangencial nas obras). Isso gerou um pouco menos de pesquisa, ou pelo menos uma pesquisa mais simples. Já meu terceiro romance, o ainda inédito Vertigem do chão, me deu um trabalho de pesquisa muito maior, embora também muito prazeroso (o prazer que vem do esforço é mais formativo do que aquele que vem fácil, como no entretenimento, por exemplo). Mesmo que eu parta sempre de questões individuais, afinal a literatura não é um discurso ensaístico sobre um tema, eu quis investigar como questões geopolíticas podiam afetar meus dois protagonistas. Para isso, viajei até a Holanda, mais especificamente para a cidade de Utrecht, onde se passa metade do romance. Eu já havia estado lá, foi lá que tive a ideia, mas precisei voltar, uma vez no verão, outra no inverno, para fazer pesquisas, caminhar, tomar notas e escrever. E precisei ler muito sobre temas como fronteiras, migração, desterritorialização, corpo. Também sobre a vinda de haitianos ao Brasil, islamismo, fundamentalismo e intolerâncias de diversos tipos. Ao todo, juntei mais de seiscentas notas, que foram acrescentadas depois ao longo do romance, de forma, espero, sempre literária, nunca como mero discurso informativo ou reflexivo por si só (o que eu chamo de “sermão de narrador”). Então, voltando à pergunta, depois destas notas todas e o planejamento feito, mesmo sem a obrigação de segui-lo à risca, não é tão difícil começar. Nenhum romancista acorda um dia, liga o computador e começa a digitar uma história sem um mínimo de planejamento anterior, nem que seja apenas mental, uma ruminação que já vem se desenvolvendo há algum tempo. Desse modo, o pavor diante tela branca diminui, pois o escritor já tem material pensado e/ou escrito. Ainda assim, a primeira frase é sempre enigmática. Muitas vezes ela contém o germe de todo o romance e então pode ter uma certa aura mistificadora. Nada demais.
Sobre o medo da página em branco, conta-se que o pintor italiano Emilio Vedova (1919 – 2006), também professor de pintura, costumava passear entre seus alunos com um balde de tintas e um pincelzão. Quando via que o aluno estava travado diante da tela em branco, mergulhava o pincel no balde e golpeava a tela do aluno, fazendo um formato qualquer para que o aluno começasse a partir dali. Porque, conforme diz o psicanalista italiano Massimo Recalcati (ultimamente procrastino traduzindo suas palestras de psicanálise lacaniana no YouTube), não temos medo da tela em branco, mas medo porque essa tela está preenchida com toda a imensa tradição de gênios da literatura e da pintura. É o peso deles que nos intimida, eles já fizeram obras-primas, quem sou eu para tentar escrever algo? Esquecendo por um momento a tradição, aí podemos contar nossas histórias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Sim, isso acontece. De repente aparecem mil coisas que você, cedendo aos mecanismos da procrastinação, começa a julgar mais importantes. Uma compra no supermercado, um texto cuja leitura parece fundamental para a continuação da escrita, uns memes no Facebook, informações e análises sobre o país, um jogo da Champions League (sempre à tarde aqui no Brasil). Conhecendo esses mecanismos, fica um pouco mais fácil desviar deles. Sofro mais antes de começar do que durante a escrita propriamente dita. Mas a cada dia há um sofrimento da mesma natureza, com a mesma raiz. Prazer e preguiça, mais do que coincidirem pelo encontro consonantal, também se encontram durante o processo de escrita. Escrever exige esforço; assistir a uma partida de futebol é apenas prazer, não exige trabalho. No entanto, preciso me convencer com o melhor dos argumentos: o prazer depois de um bom dia de trabalho é maior, mais consistente e duradouro do que o prazer residual que fica depois de um jogo de futebol, ou, pior, depois da culpa por ter sucumbido à timeline de um Facebook da vida.
Aproveitando que o futebol entrou na conversa, há um clichê entre jogadores e técnicos que, apesar de clichê, serve para a escrita sobretudo de romances. Você escreveu três páginas, mas sente um desânimo vasto quando imagina que faltam mais duzentas, trezentas. O que diz o clichê futebolístico às vésperas de começar um campeonato longo? “Precisamos pensar jogo a jogo, uma partida de cada vez”. Isso funciona bem durante a escrita de um romance. Não dá para chegar na trecentésima página sem passar pela primeira, pela décima sétima, quadragésima segunda, octogésima quinta, ducentésima quinquagésima nona…
É comum que eu tenda a momentos bipolares durante um dia de trabalho. Eu, calmo e equilibrado, nessas horas tenho instantes de entusiasmo diante de algo que achei realmente bom. Em dias difíceis, a vontade é de bater a cabeça na parede. Já aprendi que nenhuma das sensações deve ser levada a sério. O negócio é negar o ócio. É trabalhar, e trabalhar muitas vezes como se estivesse em um escritório de contabilidade preenchendo planilhas. É saber que a história precisa ir para a frente, que ainda há todo o trabalho de revisão minuciosa, de cortes e acréscimos (mais cortes que acréscimos), de pensar a estrutura macro, de perder minutos decidindo se a frase deve correr ou seria melhor freá-la com vírgulas e pontos. De tirar palavras repetidas sem propósito, vícios pessoais. Do texto sujo vai nascendo um romance limpo. O campeonato se faz jogo a jogo. Já sei que vou escrever o livro que consigo escrever, não necessariamente o livro que quero escrever. Depois das revisões, quando não aguento mais, peço para dois ou três amigos lerem. Vertigem do chão tem mais de 300 páginas e foram necessárias nove revisões. Lembro-me dos alunos que tive: a maioria, ao produzir um texto, já começava a arrancar a página enquanto ainda colocava o ponto final: “acabei, psor”. Mas acabar a primeira versão de um livro é só uma etapa desse processo.
Mais um ponto importante da rotina: acho que era o Hemingway quem falava: depois de um dia de trabalho, não esgote o que você tinha a dizer, deixe isso para o dia seguinte, para não sofrer o bloqueio do recomeço. Não lembro de já ter feito isso, mas pode ser uma boa ideia.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A cada romance, reviso mais. Acho que o Pequena biografia de desejos teve cerca de quatro revisões; O beijo de Schiller passou por seis e o Vertigem do chão por nove. Tenho um quarto livro, cujo título, ainda provisório, é A fundação do fim do mundo, mas desse eu terminei apenas a primeira escrita. Vamos ver quantas revisões serão necessárias para que, aí sim, eu tenha coragem de mostrá-lo. Conheço autores que conseguem ir escrevendo e mostrando. Eu não consigo. Até agora, o jornalista e tradutor Christian Schwartz e o escritor Paulo Venturelli são amigos que sempre leram meus originais. Gosto de dar a pessoas cuja literatura seja seu principal meio de vida, assim como, eventualmente, também dou a pessoas que têm outras atividades, que são leitores competentes, mas não fazem disso sua profissão. Olhares técnicos e olhares de fruição são importantes na avaliação de um livro. Contudo, devem ser pessoas que, se não gostarem, precisam ter abertura para falar. Não pode haver constrangimento. Ocorrem casos curiosos, às vezes, como o de um trecho ser criticado por um leitor e elogiado por outro. A decisão final é sempre do escritor.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
As anotações iniciais, esparsas, de ideias surgidas do dia a dia, são escritas geralmente no app Google Keep, do celular, que mantém tudo na nuvem. São anotações sem compromisso com um enredo formado. São frases que julgo bonitas, questionamentos sobre situações cotidianas, filosofices. A partir de um certo ponto, começo a pensar numa estrutura maior, de enredo, personagens, coisas a serem colocadas nessa grande arena de conflitos que é a narrativa de ficção. Quando tenho uma ideia mais ou menos formada da trama, começo a contá-la a mim mesmo, por escrito, em uma cartolina. Gosto de escrever essa etapa à mão, gosto de rever minha letra, lembrar como ela é – há quem diga que é possível sacar a personalidade de uma pessoa pela forma da letra manuscrita. Se isso for verdade, devo ser um sujeito sem personalidade fixa, pois tenho letras muito diferentes umas das outras. A cartolina acaba virando um objeto gráfico interessante para mim. As ideias esparsas que eu havia anotado no Google Keep são todas numeradas e então eu espalho essas numerações ao longo do enredo que eu acabei de mapear. Por exemplo, no início do romance deve acontecer tal e tal coisa. Aí me pergunto: quais dessas anotações esparsas poderiam ser usadas aqui? Ah, a anotação 3, depois a 34, depois a 87, depois a 235 e assim por diante. Desse modo eu tenho uma noção de enredo já com coisas que julgo legais de serem colocadas a partir das minhas anotações iniciais. Pode parecer meio confuso, não sei, mas funciona para mim. Tanto que, ao escrever a primeira versão do meu quarto livro, o inédito e de título provisório A fundação do fim do mundo, quis experimentar algo mais solto, mais “vou escrevendo o que vier, sem roteiro, só a partir das anotações esparsas”, e achei pior, não gostei da experiência.
Depois desse roteiro, dessa arquitetura da subjetividade, na hora de começar a escrever a narrativa propriamente dita, com “linguagem literária”, aí vou direto para o computador. Tenho um desktop em casa, onde trabalho. De tempos em tempos, preciso viajar para escrever, passar um fim de semana na praia, ter um período maior de solidão e concentração. Aí levo um notebook e, como salvo tudo na nuvem, não preciso me preocupar com backup, nem com a confusão entre versões da escrita. Para o terceiro livro, Vertigem do chão, que envolveu bastante pesquisa, além de escrever e revisar boa parte do livro em Utrecht, usei muito pesquisas de internet e alguns livros. Havia momentos em que, além do editor de texto, havia mais de vinte abas abertas no browser, com pesquisa de nomes de personagens, histórias de imigrantes, discussões sobre corpo e desterritorialização, mapa de cidades (comecei a escrever Vertigem do chão tendo estado somente um dia em Utrecht – portanto, muito do início era baseado em mapa de ruas, fotos etc. Depois, com a ida para lá, percorri os lugares que eu havia rascunhado, corrigindo algumas rotas, tirando personagem de determinado lugar porque eu havia escrito que dele se podia ver o rio tal, quando, na verdade, de lá a vista era obstruída por árvores). Então, com exceção dessa cartolina em que vejo a estrutura macro do romance, o restante é todo dependente de tecnologia, do editor de texto (talvez por costume e conhecimento dos atalhos, ainda prefiro o Word ao Pages ou a programas específicos para escrita de ficção, como o Scrivener), do uso da internet em pesquisas. O editor de texto ainda me ajuda a caçar, por exemplo, vícios da minha escrita. Basta um command + F (ou um control + L) para eu ver, por exemplo, quantas vezes usei a palavra “também”, ou os pronomes seu/sua, etc. Isso ajuda a limpar o texto, a torná-lo menos poluído por poeiras inúteis. É podar a árvore para deixar mais vistoso o fruto.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Quando não estou escrevendo um livro, não me preocupo em ter ideias. Ideias nós temos de todo jeito, no que pensamos, no que falamos, no que ouvimos (um romance, por ser polifônico, exige um atento lugar de escuta do escritor). Então as observações do mundo, apropriadas pelo jeito próprio de vê-las, por esse filtro subjetivo, são ideias para a escrita. Às vezes tomo nota, às vezes não. Quando estou escrevendo, esse estado de escrita não se restringe ao momento em que estou no computador, ele se espalha, ele ecoa ainda depois de um dia de trabalho. Aí me parece que a cabeça magnetiza detalhes da vida que sempre parecem ter relação com o livro. A antena não se desliga com facilidade, isso é algo muito bom. Ler livros, evidentemente, é uma forma muito boa para ter ideias. Nada a ver com copiar ideias, mas um livro mostra situações que nos fazem ter aquela suspensão admirativa, quando, a partir do que lemos, começamos a dar corda a outras reflexões, próprias. Nós não apenas retiramos sentidos em um texto, mas também colocamos sentidos nele. Lavar louça, caminhar, ler são atividades que favorecem a introspecção, e daí surgem ideias também.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu primeiro livro, o Pequena biografia de desejos, foi escrito a partir apenas de minhas leituras de literatura. Eu não tinha método, não sabia de nada, foi um processo bastante intuitivo. Com mais de três quartos do livro escrito, meio perdido, precisei reconstruí-lo esquematicamente, fazer um mapa do território percorrido. Já a partir do segundo, O beijo de Schiller, construí o mapa antes do território, método também fundamental para o terceiro, Vertigem do chão. No quarto, tentei me desprender desse planejamento (até hoje não sei se por querer correr outros riscos ou por preguiça mesmo), mas não gostei. Quando vier um eventual quinto livro, pretendo fazer da mesma forma que pensei o segundo e o terceiro. Como disse, terminei a primeira escrita do quarto livro e, como não teve um planejamento muito grande, estou meio travado para começar as reescritas porque sei que há incongruências chatas de serem limadas, há um início que se tornou incoerente com o rumo que a história tomou. Claro, pode ser uma limitação minha, deve haver escritores que vão mantendo a linha numa boa. Mas eu escrevo sem revisar, eu escrevo como quem só vai lavar a louça suja depois do almoço pronto, diferente de quem usa uma panela e já lava, usa um garfo e já lava. Eu preciso fazer a história andar, empurrá-la para frente a soco, pontapé, às vezes até com a barriga. Tudo para ver a forma crescer. Sei que na reescrita eu vou resgatando fragilidades, cuidando delas. É também por isso que não há escritor que não seja leitor. O eu-escritor entra em cena até a primeira versão pronta. Depois é o eu-leitor que conserta as besteiras do eu-escritor. Se eu não for um bom leitor, atento e sensível, como vou saber se o livro está apresentável, se a frase, em vez de uma luz para a humanidade (olha a pretensão), não é apenas uma frase-feita e brega? É um pouco aquela piada: quando você morre, quem fica triste são os outros; é a mesma coisa quando você é idiota. Ninguém é idiota porque quer ser idiota (seria algo muito idiota). Ninguém escreve um livro e quer publicá-lo se sabe que vai passar vergonha. Mas então como saber se o livro presta? Sendo um bom leitor e tendo leitores confiáveis que lerão o original.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu brinco que, se eu tivesse uns três ou quatro anos de contas pagas (atenção, leitores milionários, mecenas das letras), gostaria de reler com vagar a obra de Rabelais, sobretudo Gargantua et Pantagruel, para imaginar como viveria uma hipotética geração desses personagens que chegou aos nossos tempos. Alguns de seus descendentes viriam parar no Brasil e fariam uma bela festa. Seria uma recriação daquele carnaval glutão nos dias de hoje, nos tempos das redes sociais e das fake news, das grandes corporações e do fanatismo religioso, de Trumps e Bolsonaros. Mas como acho muito difícil que eu o escreva, esse passa a ser então o livro que eu gostaria de ler.