Celso Gutfreind é escritor e psicanalista, autor de 35 livros, entre poemas, infanto-juvenis, crônicas e ensaios.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
O começo do meu dia, em geral, pouco tem a ver com a escrita. Tem mais a ver com preparar-me para sair e assumir minha outra atividade, a de psicanalista, que me sustenta e me permite escrever com mais liberdade. Uma que outra vez, ao acordar ou mesmo antes, durante a noite, posso anotar algum sonho ou alguma ideia. Muito raro sonhar um poema como Manuel Bandeira, mas já aconteceu.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não há uma hora específica para eu escrever. O escritor (e psicanalista) Cyro Martins tinha uma expressão que bem me cabe: no rabo das horas. Pode ser em toda e qualquer hora e lugar. Claro que nas horas livres, em viagens, em aeroportos, as chances de escrever aumentam, mas, se é para escrever, posso fazê-lo mesmo nas horas mais impróprias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Raramente passo um dia sem escrever nada. Pode ser uma nota, mas escrevo. Claro que há dias em que a escrita aumenta, seja o primeiro jato, seja a revisão de um trecho ou de um livro, mas sempre preciso anotar alguma coisa. Aqui, a saúde (de escrever) se confunde com o transtorno (a obsessão de escrever como forma de me defender da angústia).
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Acho difícil, senão impossível, descrever o meu processo de escrita. Por vários motivos: escrevo poesia, escrevo prosa, escrevo gêneros diferentes como a poesia, a crônica, o conto, o ensaio e cada um deles é um momento à parte que ainda desconheço e não conseguiria sistematizar. Sei que a poesia vem mais espontaneamente, o ensaio é provocado por leituras, posso sentar para escrever (a poesia só para reescrever), mas costumo tomar notas para todos os gêneros e, em todos eles, a vivência é fundamental.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que lido bem, por ser muito consciente delas e desafiá-las. Não costumo forçar a barra, se não há desejo, se o desejo é de outra coisa como, há pouco, em Cartagena, era ver os bailarinos dançando no parque Centenário. Mas, modéstia à parte, me considero bom em enfrentar o medo de não corresponder às expectativas. Trabalhei e sempre trabalho muito a minha pessoa, com arte e psicanálise, não me torno melhor do que os outros nem grande coisa ou pessoa, mas consigo mandar à merda, pelo menos nessas horas, o meu Superego. E escrevo, sem me preocupar com o resultado. Escrevo, porque preciso. Escrevo, porque não poderia deixar de fazê-lo. Só depois, quando o Superego volta e aí negociamos.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muito os meus textos. E nunca acho que estão prontos. Reviso insistentemente, incansavelmente, até o prazo que me deram (jornal, editora ou meu desejo de publicar). Também me cabe aqui aquela observação do Borges de só largar quando não aguento mais.
Gosto de mostrar meus textos para outras pessoas antes de publicá-los, o que, por diversas razões e infelizmente, venho fazendo cada vez menos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Minha relação com a tecnologia mudou muito, junto com ela. Hoje alterno escritos à mão com o computador e já posso fazer nele, mesmo que ainda ache um pouco estranho, as primeiras versões.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei responder de onde vem minhas ideias. Não sei mesmo, acho que é jardim secreto, labirinto, caixa. Desconfio de que vem de um caldo que inclui o que leio, o que vivo, o que sinto, o que imagino (porque não vivo) e assim por diante. Paulo Hecker Filho tinha o hábito de ir ao cinema e sugeria que se levasse uma vida poética. Tentei segui-lo, mas falhei em parte, porque não consigo mandar que a vida seja poética. Mas caminhar ajuda, ir ao cinema, ler, ouvir música e, sobretudo, enfrentar a neurose e a psicose e viver.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Muita coisa mudou. Fiquei mais crítico, ficou mais difícil gostar de alguma coisa, mas sigo enfrentando essa crítica hoje aumentada e ainda gosto, de vez em quando, pelo menos por um tempo. Reviso mais, muito mais. Se eu pudesse voltar à escrita de meus primeiros textos, eu, talvez, os revisasse um pouco mais.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ainda o desejo de fazer uma narrativa mais longa. Há, pelo menos, duas histórias que gostaria de contar e elas parecem pedir mais fôlego. Mas ainda esbarram no poeta e no ensaísta, fogem da ação, da trama, entram nos conceitos ou encerram sob a forma de poema.
Deve haver um livro que eu gostaria de ler e ainda não existe, mas também ainda não descobri qual é.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Já aconteceu e de vez em quando acontece de eu planejar tudo, especialmente em narrativas mais longas ou livro de ensaios. Mas, com muita mais frequência, não é assim. O livro vai se organizando e se azeitando à medida em que vai se desenvolvendo e buscando e pedindo a sua própria forma.
Não acho mais difícil nem a primeira frase nem a última, mas sim todo o livro a ser construído entre elas.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Tenho vários projetos ao mesmo tempo; agora, por exemplo, alguns livros infantis, dois de poemas, um de ensaios, todos sendo trabalhos. Quanto à organização da minha semana, é um caos, a literatura sempre cavando o seu espaço em meio ao trabalho do psicanalista. Em busca, como dizia o duplamente colega Cyro Martins, do rabo das horas.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Difícil pôr em palavras o que me motiva para ser escritor. Para mim, a palavra principal é necessidade. Necessidade de encontrar palavras, ritmos, forma para o que sinto e não os tem ainda. Se não o faço, o sofrimento é insuportável, e os momentos de alegria não existem.
Acho que o que me motivou a ser escritor foi quando, na adolescência, motivado por leituras recomendadas pelo professor de literatura, comecei a escrever os primeiros poemas sobre o que me assombrava, entristecia, alegria e aquilo me fez muito bem, transmitindo uma sensação que nem as palavras dão conta.
Também coincidiu com um confinamento no hospital devido a uma cirurgia, e escrever funcionou tanto quanto os anestésicos.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não houve propriamente um autor. Há uma multidão deles. A busca do estilo é mesmo uma grande luta, onde, para mim, entrou muita leitura e, sobretudo, esforço diário, constante, para dizer do meu jeito. E isso é interminável.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Nikos Kazantzakis, do Zorba o grego. Um romance perfeito na forma, no conteúdo, no artesanato, na emoção que expressa.
Fernando Fiúza, poeta alagoano contemporâneo, livro Outdó, uma poesia de excelência, como achados na forma e nas emoções transmitidas.
O brincar e a realidade, do clássico psicanalista Donald Winnicott, porque me explicou ali quem é uma criança.