Cecília Lobo é poeta e escritora, autora de “Inflamáveis” (Crivo, 2019).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Gosto de acordar cedo. As manhãs tem um silêncio que torna tudo mais encantado. Desperto, tento me lembrar dos meus sonhos – para analisar como andam as coisas lá no inconsciente, e também para garantir que eu não perca possíveis histórias. Os sonhos tem ótimos materias para a prosa. Então faço yoga, ainda em jejum, e assim que acabo leio ao menos um poema. Sinto que assim garanto que o corpo esteja flexível e a mente esteja disponível para a palavra. Mas, é claro, tenho dias de deusa e dias de besta, sou mãe e nem sempre minha vida está exatamente tranquila, então me permito estar aberta a flutuações nessa rotina. Aprendi que é preciso aceitar as imperfeições com o máximo de graça disponível. Quando falta tempo, tento lembrar de respirar e me levar menos a sério.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A maternidade me ensinou que o melhor momento é aquele que conseguimos ter disponível, de modo que aprendi a trabalhar em qualquer horário, já que é preciso que eu seja meio gatuna do meu tempo. Mas, num geral, trabalho melhor pelas manhãs. Meu ritual de escrita é ouvir música, e tentar fojar um estado quase meditativo de solidão voluntária, ainda que no meio de um dia corrido, ainda que cercada de pessoas. Além disso, sou metódica: costumo começar pelos poemas, que separo pelos temas que mais escrevo (o amor, a cidade, a política…). Abro todas as abas e vou movendo coisas, escrevo um pouco ali, colo ali, trago coisas perdidas e adiciono coisas novas… Só depois me dedico à prosa, e agora mais recentemente também a outros formatos, testando escrever dramaturgia e trabalhando no projeto de um podcast. Faço isso até quando é possível, e tento sempre parar antes de parecer sem sentido.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, nem que seja para lembrar a mim mesma que é esse o trabalho dos escritores. Não acredito em metas numéricas de escrita, minha meta é escrever sempre, com cuidado e honestidade.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Tenho processos diversos para a prosa e a poesia. Acho que cada uma precisa de seu próprio ritmo de trabalho. Com a poesia, reuno fragmentos que escrevo em todos os lugares disponíveis, meus cadernos, bloco de notas de celular, guardanapos, o que for. Pego essas pequenas ondas de inspiração, e trago para o computador, onde vou editando os pedacinhos. Por vezes, vejo que uma coisa que escrevi hoje funciona perfeitamente junto de um versinho escrito meses antes. É um processo de colagem. Depois vou acertando os detalhes. Quando trabalho com prosa geralmente agarro uma ideia vinda de qualquer lugar – sonhos, histórias, vidas que invento para pessoas na rua – e a estruturo perfeitamente antes de sequer começar a escrever. Organizo a voz, os fatos, a sequencia, e só quando compreendo o fim me permito iniciar. Geralmente a pesquisa acontece com maior força nesse primeiro momento, mas a verdade é que nunca paro de pesquisar. Sou uma leitora voraz, adoro estudar, então estou constantemente oscilando entre escrita e pesquisa, como se essa dança me mantivesse arejada.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Aceito que existem, mas tento não permitir que me façam parar. O que me guia é isso, esse impulso de continuar em movimento. Tenho momentos horríveis, em que me perturba enormemente a ansiedade, e momentos de maior calmaria. Sinto que agora peguei um ritmo de me permitir os projetos longos, até então estive muito apressada. Sinto que já tentei não escrever, me dedicar a coisas diferentes, fingir que não sentia tanto assim esse chamado constante. Agora, não tenho mais escapatória. Estudo, me dedico, e tento me convencer a acreditar que em algum ponto cada texto estará maduro para o mundo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Sempre que volto a escrever a um conto, por exemplo, reviso tudo que já escrevi até ali. Os trechos de poemas ficam comigo muito tempo, testo versões, encaixo e desencaixo coisas… Reviso tanto que as vezes preciso descansar do texto, esquece-lo por uns dias, deixa-lo respirar, respirar dele. Talvez devesse revisar menos, mas é como sou. Trabalho pontualmente como revisora e tenho projetos de tradução, então o processo de reler atentamente é muito incorporado em mim, fugir disso talvez fosse fugir de uma parte muito presente em meu processo criativo pessoal.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho uma espécie de ritual com isso. Há mais de dez anos não saio de casa sem um caderno de anotações. Faço a capa de todos eles, com colagens, geralmente imagens retiradas daqueles catálogos de exposição. Amo ir ao museu, e sempre que alguma exposição é muito importante para mim pego vários catálogos. Uso essas imagens porque sinto que elas me trazem para a arte como poucas coisas são capazes. Meu atual caderninho tem Basquiat e Paul Klee. Também escrevo por dentro da capa trechos de poemas, frases importantes, coisas que me lembrem do que quero fazer. Então geralmente meu processo começa sempre a mão: anoto no caderno ideias, frases soltas que me surgem e – muito raramente – poemas quase inteiros. Depois passo pro computador. Mas é claro que, quando por ventura deixo em casa o caderninho e algo me surge, escrevo no que encontrar. Geralmente, o celular. Mas não gosto muito, sinto algo meio mágico em encher de tinta uma página branca.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acredito que é preciso se cercar de encantamento para conseguir acessar um estado de inspiração. Não sei se é possível escrever se movendo de surto de inspiração em surto de inspiração, porque antes de me colocar escrevendo profissionalmente passava meses sem sentir isso. Entendi então que precisava organizar minha vida para que o fogo criativo estivesse constantemente alimentado. Por isso me cerco de arte, escuto muita música, leio muito, sempre lembro de olhar arte, danço e movo meu corpo. Amo, gozo, brinco. Uso tudo que tenho em mãos para não perder essa chama. Busco ideias em todo lugar que tenho disponível, mas acho que pouca coisa me inspira tanto quanto andar na rua deixando a imaginação correr solta. Penso que a primeira fase da criação tem muito a ver com retomar esse lugar da infância que envolve só imaginar coisas, vidas, possibilidades. Depois, claro, é preciso sentar e trabalhar, investida das ferramentas que a escrita constante me traz. Mas trabalho encantada.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Se pudesse voltar, diria a mim mesma para eliminar as distrações no caminho. Tentei por muito tempo agradar meus pais, a sociedade, o que fosse, passei anos tentando me convencer que seria feliz dentro da universidade, ou em sala de aula, fazendo algo que fosse mais “estável” que escrever. Busquei de toda forma me desviar dessa verdade incontornável que sempre foi a escrita. Voltaria e me diria para deixar de ser boba, parar de perder tempo e assumir logo a escrita como profissão. Se tivesse feito isso aos 17, ao invés de aos 27, já teria mais de uma década de aperfeiçoamento, de sucessos e fracassos formativos. Mas, de todo modo, talvez seja melhor assim. Conto histórias porque tenho histórias para contar. O que mudou no meu processo foi justamente essa decisão muito consciente de encarar a escrita como caminho, de me dedicar a estudar, pesquisar, explorar formas e formatos, me aventurar para além do óbvio, para fora da zona de conforto. Sou uma escritora com sede de palavra.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho ensaiado escrever um livro sobre a minha família. Cresci numa casa politizada, sempre atravessada por questões seríssimas. Uma casa de sindicalistas, artistas e professoras. Quero escrever sobre eles e sobre minha avó, que criou onze filhos praticamente sozinha e nos deixou em 2015, cinco meses depois do nascimento da minha filha, sua primeira bisneta. Também sobre meu avô, que nunca conheci. Não sei exatamente o que tem me impedido de ir mais a fundo nesse projeto. Todo impulso de desejo gera um impulso idêntico em força de medo? Talvez seja isso. Talvez eu precise ser uma escritora mais madura, para que o livro faça jus a essa figura imensa, mitológica, que foi e é minha avó com nome de flor e força de leão. Aceito que aconterá no tempo que for, mas não pretendo morrer sem escreve-lo.
Não consigo pensar em um livro que gostaria de ler e ainda não foi escrito. Já vivo atormentada demais pelo medo que não haja tempo hábil de vida para ler os que existem.