Carolina Zuppo Abed é escritora, professora e pesquisadora sobre processos criativos em literatura na Universidade de São Paulo.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo meu dia devagar e com sono. Sempre fui uma pessoa noturna. Minha meta para o começo da manhã é simplesmente despertar pra vida. Não faço nada intelectual – e isso é essencial para o meu processo, porque trabalho até tarde da noite. Então, a parte da manhã serve de recuperação da noite anterior de trabalho. Assisto TV largada no sofá, depois, aos poucos vou despertando, faço comida, trabalhos manuais, respondo e-mails e mensagens do whatsapp, brinco com meus gatos… Quando dava aulas no ensino básico, precisava acordar às 5h30 da manhã e isso me quebrava. Só consegui terminar meu primeiro livro quando concentrei minhas aulas em três dias da semana para ter dois dias em que pudesse acordar tarde – e, consequentemente, escrever bastante nas noites anteriores.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para mim, o período de escrita começa quando a casa, o prédio e a cidade estão em silêncio e as obrigações do dia já foram todas cumpridas. Começo a escrever lá para as 22h e sigo até me sentir satisfeita – normalmente isso significa de 3 a 4 horas de escrita. Não tenho exatamente um ritual, mas prefiro escrever no quarto, em cima da minha cama, sentada com as costas na parede, deitada ou debruçada com a barriga para baixo, bem torta mesmo. Não entendo bem o motivo, mas já percebi que escrevo melhor quando estou fisicamente desconfortável. Isso para a escrita de literatura. Para a escrita acadêmica, funciono melhor sentada na mesa, na frente do computador. E consigo começar mais cedo, umas 16h já começo a “esquentar”.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não sou uma pessoa muito metódica e sistemática para nada na vida. Não adiantaria querer que com a escrita fosse diferente. Tenho períodos quase obsessivos, em que escrevo todas as noites, e períodos em que não produzo uma linha. Depois de finalizar um projeto, fico meio de ressaca e preciso parar um pouco a produção. O que acontece é que, como escrevo tanto literatura quanto textos acadêmicos, acabo descansando de uma coisa fazendo a outra. Escrevo um livro de contos, paro com a literatura e mergulho na academia; finalizo um artigo, descanso a teoria e vou escrever poemas. Dificilmente consigo conciliar as duas frentes, a sensação que tenho é a de preciso mergulhar em uma linguagem e esquecer a outra.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo é bem pouco organizado. Não divido os momentos de pesquisar e escrever, pois o motor da escrita normalmente emerge daquilo que estou pesquisando, lendo, observando – e, também, quanto mais escrevo mais tenho consciência daquilo que ainda preciso pesquisar. Então, vou pesquisando e escrevendo, escrevendo e pesquisando, parando uma coisa para fazer a outra, depois volto. Para mim, funciona muito bem: eu sempre me encontro nessas idas e vindas. Sou dessas pessoas que se entediam com facilidade, por isso, me concentrar só em uma tarefa por um período longo me cansa e desmotiva. Acho importante a gente se conhecer e não ignorar nossa personalidade, tentando copiar modelos “de sucesso”. Entender que o processo da escrita vai seguir mais ou menos a mesma lógica de outros campos da nossa vida ajuda a acolher e atender nossas necessidades, o que torna o percurso muito menos doloroso, muito mais agradável e produtivo. Por isso, sou bastante apaziguada com essa confusão que é o meu processo criativo, não tento ser algo que sei que não sou.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Bom, pra começar, faço terapia há mais de dez anos. Isso ajuda muito a lidar com toda a ansiedade e os medos ligados a diversas áreas da vida, incluindo a escrita enquanto ofício. Acho que o fato de trabalhar sempre em mais de uma coisa por vez me ajuda a não ficar ansiosa em projetos mais longos. Concentrar todas as energias em uma coisa só, para mim, seria muito sofrido, não sei como eu lidaria com isso. E, para não ter medo em relação às expectativas… Bem, é só não criar muitas expectativas… Querer ser sucesso de crítica e venda pode acabar com a pulsão do escritor. Não pretender escrever o próximo Nobel da literatura, apenas um texto verdadeiro, ajuda muito. Talvez um dos grandes aprendizados da vida seja esse: não se dar tanta importância. Penso que essa clareza tenha a ver com a motivação também. Se o que me move a escrever vem de fora para dentro, se busco aprovação e glória, provavelmente isso se tornará uma trava paralisante. Mas, se escrevo por uma necessidade que vem de dentro, se o que me move é um impulso íntimo meu e eu consigo encontrar o prazer no próprio escrever, o fantasma da crítica se afasta um pouco. Se escrevo para que pelo menos uma pessoa seja tocada por aquilo que digo e entendo que cada texto tem seus leitores, a recepção não me afeta tanto. Também ajuda não pensar em publicar enquanto estiver escrevendo – esse é um problema para depois.
Quanto à procrastinação, é um pouco mais complicado. Ela vem sempre acompanhada de um sentimento de cobrança, decepção, punição; depois, aceitação, recolha – e aí a coisa vai. O que percebo é que esse caminho todo está se tornando mais curto à medida que eu compreendo melhor essa dinâmica e aceito como parte do processo. Quanto menos tento lutar contra a procrastinação, mais rápido ela vai embora. Mas, além da importância de entender que tudo isso é normal, tenho algumas ferramentas para parar de procrastinar. Normalmente, começo a fazer coisas relacionadas ao texto, mas que não são a escrita propriamente. Reler notas, mexer na pontuação de um trecho já escrito, trocar uma palavra, reler o início, mudar um parágrafo de lugar, voltá-lo para o lugar original, revisar, fazer anotações para mim mesma, organizar o índice… Isso vai me aproximando aos poucos da materialidade do texto, me fazendo perder o medo de colocar a mão na massa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende. Tem textos que precisam só de uma revisão, tem textos que precisam ser reescritos oito, nove vezes em sua essência e remexidos mais umas tantas vezes. Eu sinto que eles estão prontos quando o tom e o efeito estão alinhados (para lembrar a premissa de Poe) – e sempre conto com um círculo de primeiros leitores de confiança para me ajudar a perceber se esse momento chegou ou não. Considero essa leitura atenta e profissional essencial para a finalização de uma obra. Um olhar externo pode enxergar coisas que a gente não enxerga – sejam problemas ou mesmo possibilidades para as quais não havíamos atentado. Outra coisa imprescindível é o tempo de gaveta: nunca dou um texto por encerrado antes de deixá-lo parado uns bons meses, voltar a lê-lo e sentir que, de fato, ele chegou na sua maturidade. Não é sempre que fico satisfeita. Na maioria das vezes, aliás, não fico. E de novo entra a importância do círculo de primeiros leitores: são eles que vão me ajudar a distinguir um texto publicável de um ainda em processo e aceitar abrir mão do meu perfeccionismo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou a melhor amiga das tecnologias, sou bastante analógica. Minha literatura eu escrevo à mão, de preferência com lápis e sem borracha, em folhas sem pauta, normalmente folhas de rascunho. Passo para o computador apenas quando o ritmo da linguagem e o tom da narrativa já estão mais fluentes na minha cabeça, senão eu os perco. Para textos acadêmicos, não: escrevo direto no computador. A impressão que tenho é a de que escrever teoria é um processo muito diferente de fazer literatura, exige menos de mim, é um pouco mais mecânico. Talvez porque a forma seja meio pré-estabelecida… Daí tantas diferenças de processo entre uma coisa e outra.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm de alguma parte semiconsciente. Confio muito no processo intuitivo, sei que coisas estão acontecendo na minha cabeça quando eu não estou prestando atenção. Para que isso aconteça, preciso nutrir meu cérebro e meu corpo com repertórios variados, mas não dá pra querer ter o controle de tudo. Então eu leio, vou a exposições, vejo filmes, ouço músicas, danço, vou ao parque ou à praia, falo com o maior número de gente possível, e de preferência com pessoas que vivem em mundos diferentes do meu. Penso que sair de mim é essencial para que eu não fique sufocada com as mesmas ideias de sempre. Dou muita importância também ao hábito de anotar. Em um dos muitos caderninhos que tenho espalhados, em folhas avulsas, no celular, nas margens de livros, onde for. Porque anotar me obriga a prestar atenção no mundo e nos meus pensamentos – e me ajuda a não esquecer. Assim, mesmo que eu não esteja escrevendo, algo está acontecendo que, no momento certo, vai emergir. Quando sinto que está na hora de escrever, volto a essas anotações e parto daquilo que encontro. Fotografar também serve ao mesmo propósito: me obriga a ver um detalhe, um ângulo, uma metáfora visual. Não sou fotógrafa, não tenho técnica, e nem pretendo ir por aí, mas o hábito do registro com a câmera também me alimenta.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A principal coisa que mudou foi o entendimento e a aceitação dessa irregularidade que comentei. Antes escrever era mais sofrido; hoje, é menos. De resto, eu continuo funcionando basicamente do mesmo jeito. Comecei a fazer oficinas literárias aos 14 anos, e talvez isso tenha moldado uma forma de trabalhar que me acompanha até hoje.
Agora, em relação ao conselho que eu daria para aquela aspirante a escritora de anos atrás… Eu acho que diria para ela que efeitos de linguagem são legais, experimentar os limites da linguagem é bacana, mas é preciso ter cuidado para o texto não ficar artificioso. Quando leio algumas coisas que escrevi naquela época, acho alguns textos pouco naturais; nota-se muito a mão da autora ali.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Há um projeto pelo qual nutro imenso carinho, mas não sei se algum dia o farei, de fato. Minha avó estava com Alzheimer avançado quando morreu, passou anos numa condição de consciência bastante prejudicada. Ela sempre me contava como conheceu o meu avô, mas, no fim da vida, começou a alterar essa história, misturar eventos, até finalmente não entender mais o que eu estava perguntando. Eu tenho algumas gravações de conversas que tive com ela nessa época, todas partindo da mesma pergunta: “Vó, como você conheceu o meu avô?”. Penso que caso conseguisse trabalhar com elas poderia criar um livro muito significativo – se não para todos os leitores, pelo menos para mim e para a minha família. Mas a tarefa de honrar essa memória tão vívida e sutil e complexa ainda me parece longe das minhas capacidades. Como se fosse algo sublime e eu não tivesse altura para tocar. Eu adoraria ler esse livro. Quem sabe um dia não consigo fazê-lo existir?