Carolina Quintella é escritora, professora, pesquisadora e artista visual, autora de “sussurro: cantos de chuva” e “Filhes de Sycorax“.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Na encarnação passada, aquela que antecede a esta vida no mundo pandêmico, eu costumava acordar às 5h e me deslocar do Maracanã ao país Fundão, para estar às 7h na UFRJ, onde eu iniciava os meus dias. Hoje, quarentenada, um dia normal começa numa outra freqüência, mas ainda sigo uma rotina matinal: acordo cedo, tomo um café mais tranquilo, faço exercícios físicos e inicio às 10h, em casa, os afazeres que a academia e os demais trabalhos ainda me exigem.
Sinto que meu processo de escrita por si só já é caótico e antilinear, então, estar inserida numa rotina é intencional esforço de pender um pouco para o outro lado, buscando conviver com o melhor dos dois mundos.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sinto que trabalho melhor à noite, a partir das 20h, apesar de produzir ao longo do dia e já começar cedo. Para os que crêem em astrologia, fica o registro de que meu horário de nascimento é às 20h e uns quebrados.
E se há algum ritual obrigatório de preparação para minha escrita literária é apenas o de estar confortável, muitas vezes recostada na cama. Así de simple. O resto varia com o humor e com a necessidade de cada escrita.
Houve apenas uma vez em que escrevi um poema inteiro num breve deslocamento de ônibus, um 455, e isso diz muito sobre a firmeza das minhas mãos naquela época.
Gosto de escrever ouvindo músicas que me remetem ao tema, ao tom, ou à sonoridade da escrita. (O inverso também já me ocorreu: escrever um poema baseado na musicalidade, no ritmo de uma canção ou de uma composição instrumental). Mas também sou fã da proximidade com o silêncio, principalmente para desenvolver textos acadêmico-científicos, ou teórico-analíticos. Tive a fase de tomar café e chocolate quente (em dias frios, porque, valha-me, vivo no Rio) para acompanhar a escrita. Hoje, evito um e outro e vou descobrindo que retirar esses “detalhes ritualísticos” não me atrapalha em nada. Volto, então, ao início: se há algum ritual obrigatório de preparação para minha escrita literária é apenas o de estar confortável, mesmo que a escrita se esgoele em estado oposto.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É inevitável que eu escreva todos os dias, por minhas profissão e pesquisa, mas essa escrita diária não é, necessariamente, uma escrita essencialmente literária. De dois mil e vinte para cá, tenho me dedicado mais à escrita de livros teóricos (Teoria Literária) e ensaios. Como este tipo de produção costuma envolver prazos, neste caso tenho metas diárias, sim. Quanto à escrita literária, para ambas as questões a resposta seria um redondo, mas simpático “não”: não sou chegada aos métodos fordista e kinguiano (nem li Stephen King); não movimento a escrita literária diariamente e não me imponho ou mesmo me importo com metas diárias, se não há cobranças externas; não forjo uma rotina para a minha escrita, na tentativa de organizar a minha vida, tento o contrário: rotina na vida, para equilibrar o caos da escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Queria dizer apenas que escrevo da esquerda para a direita, mas o Eco já fez essa piada, então me resta desenvolver o que agora digo: depende do gênero em que transito.
A coisa toda pode parecer menos ou mais intuitiva ao início, mas sempre rola muito trabalho depois, trabalho de revisão, trabalho de crítica etc.
Quando escrevo poemas costumo partir quase sempre de uma imagem, de uma sensação, ou de uma frase, então compilo uma quantidade considerável de anotações, frases soltas no bloco de notas do celular, em cadernos (que uso apenas para isso) – e que depois se tornam a escrita “última” – para sair da nebulosa. Iniciar o poema não é difícil, o que me custa é pensá-lo e trabalhá-lo em seu acontecer: construir o diálogo com as minhas referências, ver se deu pé, se a coisa ficou firme e revisar algumas vezes. Ainda assim, a escrita de poemas funciona com mais rapidez e me exige menos esforço do que a de contos.
sussurro: cantos de chuva, publicado pela Editora Urutau, em 2019, livro de poemas, foi gerado por mim e pela Eduarda Vaz em dez dias apenas. E digo isso com certa felicidade, porque, é claro, ele é resultado de um processo desafiador que envolveu alguma disciplina (neste contexto, sim, estabeleci metas diárias. Uma exceção), muita sintonia e correspondência, além do apoio de amigos disponíveis para ler criticamente e revisar prontamente.
Apesar de ser o meu lugar de conforto, a escrita de contos parte mais de um tema. Supera aquela mimesis zero da nebulosa, já me vêem mais robusto todo um fio condutor, uma ideia axial. Talvez por isso este processo me exija menos notas, mas mais esboços (tentativas), e ainda mais referências e revisões. É mais trabalhoso começar, desenvolver e “terminar”. Há contos que escrevo há cinco anos e ainda não considero prontos para publicar ou compaginar em obra maior.
A pesquisa, que faz parte da minha vida enquanto acadêmica, enquanto professora e enquanto crítica literária, naturalmente se estende à minha escrita literária da mesma forma que, em proporção aceitável, algo dessa escrita também se incrusta na minha produção acadêmica. Ensaios e pesquisas, por exemplo, andam sempre de mãos dadas, quase são uma e a mesma coisa. Com a escrita de poemas e contos o processo de pesquisa também dá as caras: quando não é a própria pesquisa acadêmica (em Literatura Brasileira) que me dá o ar da sua graça, esparramando-se pela minha escrita literária de alguma forma – quer seja “técnica”, teórica ou temática – o processo rola de outras formas. Eu, que adoro remover a seiva da palavra, estudo e resgato etimologias, as raízes e os troncos, os caules e as folhas dos termos; às vezes recorro à “pesquisa de campo”, para a criação de um universo literário; converso com outros textos, estou sempre buscando algo nas (re)leituras e em outros autores (vivos ou não). Isto também é pesquisa pura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Não é freqüente, mas quando rola entrave vou acolhendo tudo com um pouco de autocompassividade (zero intenção de que esta resposta soe como autoajuda). Costumo me planejar e organizar as coisas em notas, em listas, ou num planner, e ter uma noção visual do tempo de que disponho e do tempo de que preciso para me dedicar a vários afazeres e à escrita. Vou ajustando prazos, criando e me dando tempos, como for possível, vendo filmes, conversando com amigos, ouvindo músicas… A própria transição de um gênero literário para outro, entre “ambientes da escrita” (acadêmico, literário, docente) pode servir como forma de desintoxicação, de escape. Não gosto de bater cabeça e forçar batalhas contra o que não está rolando. Isto, a meu ver, se não enuncia batalha perdida, é clara inclinação ao fracasso.
Falando de escrita literária, acho que lido só com as minhas expectativas, por enquanto, e, cedo ou tarde, comigo mesma eu me entendo. Lido com elas entrando em negociação comigo, abrindo mão de ideias, lançando-me noutras, (des)ajustando-me, mas não há medos. Às vezes algumas dessas renúncias me põem em brando estado de luto, mas negociar faz parte do meu processo de escrita e anseio muito mais por ele, com correspondências ou com desvios às expectativas, do que por conclusões. Sem dúvida, os tratos comigo mesma se dão muito mais na minha relação com os escritos acadêmicos, que são os projetos longos em que trabalho, já que não escrevo romances ou roteiros. Trabalhar com eles é trabalhar com mais prazos, mais pressa e ainda mais expectativas, mas não me incomoda serem longos, não os temo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes. Estou certa de que nada que escrevo, mesmo o que já se publicou, está pronto. E que me venha a inconformidade com a impossibilidade de reedição imediata do livro já editado e publicado (chorrisos). Toda leitura que faço dos meus textos, exceto a primeira, em que não me posso censurar, é uma revisão.
Como contista, principalmente, costumo deixar meus textos descansando por um tempo, tomando ar (na verdade sou eu quem toma o ar), até que eu possa relê-los/revisá-los outra e outra vez mais.
Nossa, eu adoro receber retornos e acho muito importante e recomendável compartilhar os escritos com alguém cuja leitura traz confiança, alguém com uma leitura atenta, crítica e imparcial com relação a quem escreve. Confesso que fazer parte do meio acadêmico, de uma universidade pública, facilita neste sentido: modéstia à parte, eu tenho ótimos leitores e críticos. Mas gosto muito de receber as impressões de quem não é do meio também. Minha irmã é quase sempre a primeira pessoa a tomar contato com a minha escrita e já até leu esta entrevista antes que você, que agora me lê, pudesse me ler. Isso tudo me interessa muito. Para mim, que curto me mover entre a escrita compartilhada, em coautoria, e aquela mais solitária, trocar correspondências, textos e figurinhas, ler e ser lida são formas indispensáveis de me estender, de me alongar e de sair da bolha tomando emprestados mais pares de olhos e de mãos que me façam enxergar ou tocar mais coisas do que eu consigo quando escrevo só. Estou sempre disponível para isso.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Não sou o ser humano mais versado em tecnologia, mas acho que é satisfatória. Fora o gosto que desenvolvi recentemente pelo estudo de programação e pelos algoritmos, como artista visual faço bastantes coisas utilizando a tecnologia, brincando com ela; até as colagens que faço são digitais. Como professora e aluna também adoro usar algumas coisinhas, adoro preparar slides, deposito todo o meu empenho naquilo ali.
Anoto onde dá para anotar quando me vêm as primeiras ideias, imagens ou temas: bloco de notas do cel., caderninhos (que comprei e uso só para isso, mas que vira e mexe não sei onde guardei), outros livros… Poucas vezes perdi alguns poemas por não dar tempo de vencer o esquecimento, de alcançar a escrita pouco antes do estourar da ideia. Tenho dado conta de anotar o que acho interessante desenvolver, nem que isso me custe acordar e me levantar para anotar uma ideia às 4h da manhã, interrompendo meu sono/sonho.
Também nutro uma queda pela escrita à mão: gosto das coisas reveladas na cor e na carne expostas da palavra; gosto de ler as pessoas em suas caligrafias. Não sou do time que carimba ou só autografa, ainda capricho em dedicatórias bonitinhas. Mas desenvolver a escrita só rola mesmo no computador, e gosto de compartilhá-la (para além da publicação dos livros físicos) também via redes e revistas digitais.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Da matéria do mundo da vida, e, como diria Rosa, dos antigos textos que são verdadeiros “acumuladores ou baterias, quanto aos temas eternos”.
Acho mesmo que tudo o que eu posso alcançar tem potencial para se tornar uma ideia, para superar a mera impressão e o gosto rumo ao desenvolvimento artístico: pode ser algo que alcanço sensorialmente, pode ser algo que sinto profundamente, emocionalmente, pode muito ser algo que já li, que eu mesma gostaria de ter escrito e que me serve de inspiração e ponto de partida.
A ideia de me manter criativa me soa estranha. Eu me considero criativa e acho que os momentos de entrave na escrita literária não sacam isto de mim, não me alteram de todo. A criatividade está sempre ali, agindo, mesmo que não se registre, não se materialize. Então, não sei se diria que cultivo hábitos que me mantém criativa, mas há coisas que instigam, sim, a vontade de produzir: ouvir histórias interessantes, ver um filme que me deixe aficionada, ler uma frase que eu gostaria de tatuar, conhecer alguém por quem eu me apaixone…
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Bom, tenho 24 anos e publico há pouco tempo, mas já noto algumas mudanças sim. Percebo que tenho mais paciência com o meu processo de escrita literária, menos pressa e, em contrapartida, maior capacidade de síntese, mais facilidade para peneirar a língua e extrair dela o que mais me atrai, o que se adequa melhor ao que escrevo. Hoje, com acesso à História da Língua, a outros idiomas e à lingüística, as fronteiras vão se borrando um pouco, tomando distância, e, com isso, ganho um campo mais vasto para explorar a escrita e me lançar em experimentos. Se sinto que me convém, deixo escapar ao texto palavras do mundo hispânico (e este sentir vem da experiência com o texto, vem da leitura e da escrita), por exemplo.
Posso me enganar, mas acho que sempre estive inclinada a alcançar este ponto da relação que agora eu tenho com a minha escrita, só precisava mesmo da minha jornada, dos atos da vida, do curso que escolhi, das pessoas com quem esbarrei, dos mestres que tive, dos livros que li – bons e ruins – então eu diria ao meu outro eu para que seguisse pacientemente, sem pressa. Há chão para caminhar ainda.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O mal do criativo é sempre ter muitos projetos. Isto, sim, é exercício para a paciência. Mas o que me orienta e conforta é saber que, enquanto eu viver, eles sempre surgirão, de modo que muitos ainda nem comecei e muitos nem devo começar. Gostaria de traduzir obras hispânicas ainda sem tradução para o português; gostaria de escrever um roteiro (cheguei a rabiscar um argumento, mas isso é projeto para a velhice); gostaria de elaborar um livro ilustrado por mim; gostaria de registrar as estórias que ouvi de meu pai, sobre a Rua Bias Fortes, em Bonsucesso, e por aí vai.
Achei essa pergunta sobre a leitura bem interessante, mas já carrego comigo a frustração de ansiar pelo impossível que é ler tudo de bom que já existe, imagine me preocupar com ler o que também não existe. Tenho me revirado, sofrido com o livro existente e sem remessa fora de catálogo, de prateleiras, de estoque e tal. Tentando me aproximar mais do possível, do que sinto, prefiro responder com sinceridade que adoraria ler alguns amigos escritores de mão cheia, vivos, mas que ainda não foram publicados e inexistem para o meio literário.