Carolina Costa Ferreira é advogada, doutora em direito pela Universidade de Brasília.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia relativamente tarde, entre 8h30 e 9h. Minha rotina matinal é dividida entre trabalhos domésticos – cuidados com o meu filho e com a casa – ou com aulas na universidade, duas vezes por semana.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Desde a graduação, percebi que gosto mais de trabalhar nos períodos do final da tarde, noite e madrugada. Tanto o é que tento concentrar todas as minhas atividades acadêmicas mais importantes para estes períodos. Não é raro que eu mande e-mails ou mensagens para orientandas e parceiras de pesquisa “fora do horário comercial”, mas, obviamente, não espero respostas imediatas em horários não muito convencionais.
Para cada fase acadêmica eu defini alguns “rituais”: à época da escrita da dissertação, costumava começar os estudos (leituras de textos ou dados, especialmente) às 19 horas, ainda no escritório de advocacia em que trabalhava; fechava a porta da minha sala como se tivesse encerrado o expediente, e lá ficava até às 22 ou 23 horas. Voltava para casa, comia algo leve, tomava um café passado na hora e iniciava a escrita da dissertação. Para mim, foi muito produtivo separar os momentos de leitura teórica e de análise empírica; dar um intervalo entre os dois momentos rendia bons insights à escrita.
Na tese, meus intervalos foram diferentes: não estava mais advogando, e me dediquei apenas à docência no ensino superior e ao doutorado nestes quatro anos. Assim, conseguia ter alguns períodos curtos da tarde ou da noite – especialmente antes ou depois das aulas -, em que conseguia ler um artigo ou um capítulo de livro. As leituras mais densas eram reservadas para as madrugadas, pois não seria interrompida. Essa rotina mudou no final do meu primeiro ano de doutorado, quando fiquei grávida do Pedro: meu sono ficou mais intenso durante as noites e madrugadas, razão pela qual tive que mudar meus horários de estudo para a tarde. Concentrei minha análise teórica da tese para este momento, o que levei para a qualificação, que realizei com 36 semanas de gestação. Depois do nascimento do Pedro, retomei a escrita da tese quando ele completou 8 meses. Já acostumada à privação de sono típica do primeiro ano de maternagem, adaptei-a às necessidades da tese: chegava em casa depois das aulas da universidade às 23h, amamentava o Pedro, comia alguma coisa e me dedicava à tese, até às 2h, horário em que ele acordava novamente para mamar. Depois disso, conseguia dormir até às 8h.
Passada a fase do doutorado, meus estudos agora se concentram, novamente, nos períodos da tarde e da madrugada, mas de forma mais leve: faço fichamentos, leio livros e artigos para a preparação das aulas, e só intensifico os estudos das madrugadas quando tenho algum prazo de artigo em vista, o que está cada vez mais frequente.
Em todas as fases, a música me acompanhou e segue me acompanhando. Leio e escrevo, em qualquer situação, ouvindo música. As “playlists” dependem do meu humor, mas transitam entre música clássica, jazz, MPB e rock.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Durante a escrita da dissertação e da tese, tinha metas semanais de escrita – terminar a análise de uma variável, fechar uma questão teórica, terminar um item de um capítulo – escritas em cartazes espalhados pelo escritório da minha casa. Nas duas experiências, percebi que consigo escrever melhor em períodos concentrados – em finais de semana, por exemplo – do que em pequenos períodos diários. Prefiro as grandes “imersões”, de dias a fio, do que uma escrita diária regular.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Geralmente, inicio o processo de escrita lendo as autoras e os autores que entendi, pela definição do mapa de referências (que aprendi com Débora Diniz, após a leitura de “Carta de uma orientadora”), as/os mais relevantes para o assunto sobre o qual estou escrevendo. É claro que uma leitura puxa a outra, e as referências das/os autoras/es relevantes também são consultadas. Geralmente vou até às “referências das referências”, ou quando eu mesma percebo que cheguei a um limite – quase físico, com sintomas de ansiedade – em que é necessário escrever sobre aquilo.
Outra estratégia que me ajuda a escrever é ter fichamentos à minha disposição. Desde e leitura de “Como se faz uma tese”, de Umberto Eco, passei a fazer fichamentos e os tenho no computador (no PC e em nuvem). Considero que os fichamentos ajudam muito no movimento da pesquisa/leitura para a escrita autoral, pois tal “incômodo” (que pode ser resultado de concordâncias, discordâncias ou questionamentos ao texto lido) se coloca em palavras, de forma mais fácil, enquanto escrevo os fichamentos. Além disso, os fichamentos são importantes para a organização de textos futuros ou para consultas rápidas.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Os três exemplos de “travas da escrita”, na minha opinião, têm formas diferentes de enfrentamento. A procrastinação me atingiu em momentos cruciais na escrita da tese. Procrastinar quando o prazo se aproxima e se tem trabalho e um filho pequeno não é uma opção, então tive que ter calma e coragem para enfrentar essa dificuldade. Quando percebi que mais perdia tempo do que o aproveitava, considerando-se que o meu tempo de dedicação à tese não era tão grande assim, resolvi fugir: tirei uma semana de “férias”. Pareceu uma loucura, mas foi a melhor solução: voltei renovada para a última fase de escrita.
O medo de não corresponder às expectativas é algo, infelizmente, frequente na academia. Algumas pesquisadoras estão se debruçando sobre isso, especialmente porque tal medo afeta a saúde mental de docentes e discentes. Senti esse medo durante todo o doutorado, pois a importância que se dá a uma tese é muito grande na carreira acadêmica: este trabalho deve demonstrar o seu caminho de pesquisa traçado até ali, há o ineditismo e a estruturação do trabalho como características a se alcançar para a aprovação na banca, mas, principalmente, um trabalho de doutorado deve indicar para onde se quer seguir, quais serão as próximas etapas de pesquisa. Esse “peso”, especialmente para quem quer seguir a carreira acadêmica, talvez seja o maior obstáculo para a escrita de uma boa tese. O conselho-esperança que posso dar é que a tese é um trabalho importante, mas não resume a vida de ninguém, ainda mais quando os caminhos são repletos de trilhas (família, filhos, docência, amizades, viagens, lazer…). Reduzir as expectativas é poderoso nesse sentido.
Quanto aos projetos longos, a ansiedade maior se dá em razão das mudanças inevitáveis da vida. Um exemplo que posso dar é uma pesquisa de que participei, em parceria com outros dois grupos de pesquisa de diferentes universidades, que reuniu mais de cinquenta pesquisadores no primeiro ano de análise de dados e terminou com menos de dez. É difícil manter um grande grupo reunido e motivado em uma só pesquisa, ainda que coletiva, por tanto tempo. Em um trabalho acadêmico solitário como é a escrita de uma tese, por exemplo, o tempo tem um valor de conforto no começo do processo e atemorizador ao final. Sempre digo que os prazos existem justamente para que possamos não dar um ponto final, mas um “ponto e vírgula” a um determinado trabalho, já que um mesmo objeto de pesquisa pode gerar diferentes reflexões em diferentes momentos da vida acadêmica. Revisar os próprios textos, de tempos em tempos, deveria ser um bom exercício de autoavaliação da trajetória percorrida, mas, em razão de todas essas “travas”, se torna um momento difícil. Penso que, quanto mais falarmos sobre “a dor e a delícia” de se seguir carreira acadêmica num campo ainda tão pouco receptivo a essa opção como o é o direito, mais avançaremos para que as pessoas interessadas em pesquisa não sofram tanto com o processo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Tudo depende do tempo disponível para as revisões. Quando escrevo artigos, geralmente faço três revisões – uma teórica, uma de Português e outra formal, para conferir as regras de submissão do periódico. Na dissertação e na tese, contei com a ajuda de amigas e amigos queridos que fizeram revisões afetuosas e motivacionais dos trabalhos. Quando ambos os trabalhos foram publicados em formato de livro, fiz as revisões finais que julguei necessárias, para enxugar o texto, e as editoras ainda fizeram uma última revisão.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Geralmente escrevo a estrutura de textos em três cadernetas que tenho sempre à disposição – uma na bolsa, outra em casa e a última no trabalho – e o desenvolvimento do trabalho diretamente no computador. Minha relação com a tecnologia é a mesma de qualquer pessoa que passou sua adolescência nos anos 1990: sei como é a vida sem computadores, passei a me adaptar a eles, mas não os superestimo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm das pesquisas de que já participei, da extensão e da sala de aula: minha trajetória acadêmica é construída por um caminho que começou com a compreensão dos pensamentos criminológicos, passou pela crítica ao sistema de justiça, voltou-se à política criminal para retomar a criminologia. Desde a dissertação, percebi que a pesquisa empírica tem muito impacto para o desenvolvimento das minhas ideias no campo acadêmico, então sempre leio pesquisas empíricas para pensar em novos objetos ou repensar marcos teóricos.
Como hábitos para a criatividade, gosto muito de ler livros de literatura. Tenho dado prioridade a autoras negras. Tenho muitas ideias enquanto estou cumprindo outras atividades – em sala de aula, nas minhas digressões já características, ou nas orientações de monografia -, e as anoto nas minhas cadernetas inseparáveis para desenvolvê-las com calma, depois.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de sua tese?
Desde o início da graduação (2000) até o final do doutorado (2016), o processo de escrita se adaptou às mudanças em minha vida: sinto um amadurecimento maior dos textos; tento usar cada vez mais frases curtas e em ordem direta; preocupo-me em apresentar os pensamentos de autoras e autores da forma mais didática e honesta possíveis. Senti essa mudança na reta final do doutorado e em meus últimos artigos escritos. Acho que este é um reflexo da vida: a ordem direta das coisas é bem melhor.
Sinto, também, uma mudança na escolha das minhas referências: procuro citar mais mulheres em meus textos. Nas ciências criminais, há uma excelente geração de mulheres que se dedicam ao estudo da criminologia, do direito penal e do processo penal, mas há poucas citações a muitas delas, pois os “grandes autores”, quase cânones, são os antigos homens do direito. Não me sinto confortável com isso e tento demonstrar tal escolha com a forma academicamente aceita: com as citações, que, em tempos de anseios por produtividade e pontuações, permite a divulgação de seus trabalhos. A academia é um universo cuja dimensão política não pode ser desconsiderada, e só consigo pensar na escrita como uma poderosa ferramenta de promoção de visibilidade, de produção e de manutenção de afetos, de propagação de mensagens e de inspirações.
Escrevi minha tese há relativamente pouco tempo – terminei-a em abril de 2016. Até o fim daquele ano, senti uma “depressão pós-tese” (aquele sentimento de perda/luto, misturado com uma ojeriza de quem nunca mais quer retomar aquele trabalho ou, mais sinceramente, toda a pressão que ele significou), rapidamente substituída por um envolvimento meu em uma pesquisa sobre um novo tema, que me ocupou diretamente por mais de um ano. Nesse período, recebi o convite de uma editora para publicar a tese em formato de livro e retomei a sua leitura. Fiquei surpresa ao gostar do texto, ao me ver nele tão clara, ao me orgulhar dele. E a sensação foi de aceitação e de prazer. Então, o que diria a mim mesma se voltasse à escrita da tese seria algo do tipo: “deixe fluir a escrita. Deixe o texto mostrar quem você é. Permita-se sentir prazer nesse processo e se orgulhe dele, porque o caminho é árduo, mas bonito e merece ser bem vivido”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho muitos projetos em mente; aproveitando que escrevo estas respostas no início de um novo ano, a lista é ainda maior, mas destaco o meu desejo de fazer um curso de “escrita criativa”, para que possa melhorar a fluidez dos meus textos, e voltar a praticar violão. A música é minha parceira fiel em muitos momentos da vida. No campo jurídico, pretendo me envolver mais na extensão, na execução penal, e escrever sobre o processo.
Não sei dizer se gostaria de ler “um livro que não existe”, pois ainda quero ler muitos livros que já existem.