Carol Gaertner é escritora, roteirista e professora de escrita criativa.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o meu dia com uma boa xícara de capuccino. É até engraçado dizer, mas penso que só a cena da xícara ao lado do notebook (e de um caderno na minha escrivaninha com vários insights) já é uma grande inspiração para começar a converter minhas ideias em caracteres. Além da cena, o calor da xícara também me transmite segurança, ainda mais nos dias de frio aqui no Sul! É um calor que aquece a alma e aflora a criatividade.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acredito que a manhã seja o momento em que mais me sinto disposta e com o pensamento “livre, leve & solto” para escrever. Principalmente, quando já acordo com uma certa “população de ideias” martelando minha cabeça, praticamente implorando para saírem de lá. Como dou aulas de Escrita Criativa e tenho também alguns clubes de leitura, costumo deixar vários livros sobre a minha mesa, sou a “louca dos livros” (físicos ainda, por muito tempo torci o nariz para livros digitais, mas agora já estou me curvando a eles). Mesmo sendo maluca por uma boa pilha de livros, na hora de escrever prefiro organizar um pouco as coisas. Retiro o excesso de livros e objetos, retorno-os para minha estante e deixo a mesa o mais clean possível. Aprendi isso com meu pai, que é a pessoa mais organizada que conheço no mundo. Não me considero uma pessoa tão organizada quanto ele, mas quando vou escrever tento ter certa disciplina, para que meu caos interno consiga encontrar um espaço confortável da casa para se acomodar. Enquanto escrevo também gosto de ficar de frente para meus vários livros da estante, gosto de admirá-los por seus autores, capas, formas e cores… isso alegra meu dia e faz minha escrita fluir de um jeito único! Amo minha estante colorida, minha biblioteca particular, com várias lembranças que me remetem a minha trajetória na escrita, entre elas: uma máquina de escrever em miniatura, baralhos de escrita criativa e terapêutica, quadros poéticos que ganhei de amigos queridos e as minhas próprias caixinhas literárias que improvisei para meus cursos de escrita. Um verdadeiro bálsamo para a Alma, meu refúgio é sempre lá!
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, quando faço essa imersão gosto de me dedicar integralmente à escrita e esqueço-me do mundo. É como se eu viajasse para outro Universo! É incrível, também escrevo nas horas mais inesperadas, quando certas situações do cotidiano me lançam certos flashes de ideias bacanas. Simplesmente anoto-as em qualquer tipo de bloco, seja físico ou o bloco de notas do celular mesmo. Vale tudo! Só não vale deixar as ideias escaparem. Nos meus momentos intensos de escrita gosto de escrever tudo que vem a minha mente, não sou muito crítica nesse momento. Depois eu lapido a escrita, várias e várias vezes, quantas forem necessárias, até ficar satisfeita. Mas em um primeiro momento, me dou essa total liberdade! Curto bastante esse exercício de escrita inicial, a qual chamo de escrita in natura.Por isso também não costumo estabelecer uma meta de escrita diária, admiro quem se determina a estipular metas, vários cursos, inclusive, orientam os alunos a escreverem certo número de palavras por dia, mas comigo parece que isso não flui, me incomoda, me sinto limitada de alguma forma. Nesse aspecto, sou bastante anárquica, minha escrita é muito orgânica.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escrita é um tanto singular, amo misturar meus insights a trechos de músicas, minha escrita sempre tem trilha sonora própria! Gosto de me guiar pelas histórias das canções, desde pequena sou atenta às letras de música, a nossa Música Popular Brasileira em especial. Aliás, um dos exercícios que passo a meus alunos e escrever a partir de uma frase de música e a partir da escuta dela também. Os resultados sempre são incríveis. A gente acaba se surpreendendo mesmo, é fascinante uma única frase te levar a um texto tão repleto de sensibilidade. Não é à toa que na minha monografia do curso de Direito escrevi sobre a condição jurídica da mulher e a figura feminina expressa na MPB ao logo dos tempos.
Além da música, meu processo criativo também se dá por meio da observação de imagens de cenas corriqueiras do cotidiano, essas são as que mais adoro. Uma simples moeda achada na areia da praia já me fez escrever “textão”. Com a pandemia, essas cenas podem não ser tão variadas então recorro aos registros de domínio público no banco de fotos do site Pixabay. Recomendo essa alternativa e adianto que funciona muito bem! Também sou encantada em escrever a partir de conversas que tenho com meus amigos e familiares ou de conversas para as quais nem fui chamada, mas que de alguma forma cruzaram meu caminho e me tocaram profundamente. Já escrevi até inspirada em áudio de whatsapp. Por uma questão ética, de bom senso mesmo, sempre invento nome fictícios para os personagens e floreio bastante as histórias, conforme minha criatividade dita essa “dança de palavras”. Entrelaço acontecidos, porque, na maioria das vezes, essas pessoas narradas em minhas histórias existem de verdade, constantemente são eu mesma misturada com outras, o que gera ainda mais identificação dos leitores. Não há como fugir, meus escritos são bastante biográficos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Quando me surge um bloqueio criativo, o medo de não sentir “à altura” de um determinado projeto ou certa ansiedade, em virtude de prazos para a entrega dos textos, eu procuro trazer minha mente para o momento presente, o meu “aqui-agora”. Tento focar nas etapas do processo, costumo rascunhá-las em um papel, assim vou vivendo um dia de cada vez e os pensamentos de auto-crítica e as crenças limitantes vão se abrandando. Nessas horas, costumo me recordar da voz de uma professora de italiano que tive, ela sempre me dizia: “Calma, tranquillità, bambina!”. Vez ou outra, deparo comigo repetindo para mim mesma essa frase em voz alta. É o que realmente me acalma nessas situações de autocobrança. Em momentos em que me encontro muito saturada criativamente, busco escutar uma música que me faça relaxar ou praticar alguma atividade física: adoro dançar e também curto fazer caminhadas. Tais atividades me afastam da escrita por um breve momento, de forma que quando retorno para meu ofício de escritora me sinto mil vezes mais disposta e renovada. As ideias fluem muito melhor assim. Lembrando que a escrita não preza apenas o intelecto, é necessário que todo o corpo esteja bem para que a “mágica” aconteça. “Mente sã, corpo são!” – essa integração é importantíssima.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A quantidade de vezes que reviso meus textos varia muito de acordo com o tamanho do texto. O que posso garantir é que reviso meus textos muitas e muitas vezes, mais de 10 com certeza! Mas quando constato que o texto está “no ponto”, paro de revisá-lo. Sabe aquele velho ditado “se melhorar estraga”… acredito muito na aplicação dele para a escrita. Quando o texto chega nesse estágio que me agrada demais, eu relaxo. Um sentimento de missão cumprida me invade e aproveito êxtase do momento. É muito agradável essa sensação, prazer indescritível. Guio-me por Clarice Lispector: não reviso meus textos após enviá-los ao editor. E gosto de mostrá-los antes da publicação para meu pai e amigos mais íntimos. Isso para mim é inevitável, praticamente uma necessidade vital, compartilhá-los com pessoas que sei que vão apreciá-los com o carinho que merecem.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quando comecei a escrever, essa tecnologia que temos hoje nem existia (sou do tempo da internet discada – risos), então acostumei a escrever meus rascunhos à mão e torcia demais o nariz para a escrita dos rascunhos no computador. Meu primeiro romance longo escrevi aos 9 anos de idade, em uma agenda que era uma espécie de diário, então cacule o quanto relutei em me render ao computador, porque achava muito mais poético o caderno físico, a caneta. Ainda adoro desse clima ‘handmade’, bem mais original, mas de uma década para cá, já muito influenciada pela tecnologia, passei a não me importar muito com os meios de registro, considero que o essencial seja registrar sua idéia, trazê-la ao mundo, idependentemente de que maneira for. Escreva! Creio que atualmente eu esteja rascunhando muito mais no bloco de notas do celular do que no caderno físico propriamente. Noto isso pela quantidade de folhas soltas que guardo com meus textos, são todas de textos antigos… nem tenho as folhas dos mais recentes, porque eles já “nasceram” da digitação. Pois é Dona Tecnologia, quem te viu, quem te vê. GAME OVER: Você venceu!
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Muitas vezes nem eu mesma sei explicar como as ideias surgem em minha cabeça de forma tão orgânica e natural. Parece até que a combinação de palavras chega “pronta”. Arte para mim se resume a uma força especial do ser humano, um contato com o divino que nos habita. Um amigo, esses dias, me lembrou um pensamento de Freud, o qual dizia que o artista está 100 anos à frente de tudo, o que para mim faz muito sentido. No livro “O Caminho do Artista”, a escritora Julia Cameron aborda a escrita da mesma forma: uma junção entre arte e espiritualidade (não no sentido da religião, mas da conexão do escritor com a própria alma, cm Deus, com o Universo… ou com a força que você acredita). Fora essa conexão com o divino, creio que as minhas ideias vêm de tudo o que eu leio, experimento e vivo. Das músicas, filmes, histórias que escuto no dia a dia, das experiências de vida (tanto das minhas quanto das pessoas que me cercam). Portanto, o conjunto de hábitos que gosto de cultivar para estimular minha criatividade: é escutar uma boa música, prestigiar a sétima arte e acima de tudo, viver uma Vida interessante.
Não por acaso meu primeiro livro solo lançado se chama: “Caos, Cais, Canções & Outros Causos” – Um ensaio para o infinito. Somos seres de infinitas possibilidades. O psicanalista Contardo Calligaris gostava de afirmar: ‘Não quero ser feliz. Quero é ter uma vida interessante’. Ele defendia que deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia. Isso implica ter curiosidade, aventurar-se, lamentar menos e arriscar mais. Eu completaria, então, dizendo que uma vida interessante gera uma escrita interessante também! Por isso arrisque-se sempre que possível fora da sua “bolha” de conforto, aventure-se… viva deliciosamente!
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
No início do meu processo eu era muito prolixa. No colégio sofria em cumprir com a quantidade máxima de linhas permitidas para escrever minhas redações. Escrevia frases longuíssimas e o espaço que eu tinha jamais era suficiente. Parece até que “estava de mal” com a pontuação, havíamos brigado feio, desfeito a amizade no “Orkut”, via textão. Anos mais tarde liguei para ela por telefone e fizemos as pazes. Levamos um longo papo e nos adicionamos novamente, só que dessa vez no “Instagram”. E com um único emoji de coração selamos a paz. Brincadeiras à parte, já deu para notar que amo uma metáfora, disso sempre gostei. Mas acredito que minha escrita sofreu várias transformações ao longo dos anos, principalmente com as mudanças das redes sociais, tendo em vista que curto publicar meus textos nas redes… sou constantemente impactada por essas reviravoltas do mundo tecnológico. Pertenço a Geração Y, me considerava “a modernete”, mas nos últimos anos com o surgimento das gerações Z e Alpha na internet, tenho revisto meus conceitos de escrita diariamente. A partir do meu amadurecimento como escritora (e leitora também), fui dando mais valor às vírgulas e aos pontos, porque o leitor precisa de pausas, o ser humano precisa de pausas e a vida precisa delas também. Percebi o efeito terapêutico das pausas em minha leitura. Frases com poucas palavras que me revelam um mundo, são as minhas preferidas. Passei a me interessar por escritas mais objetivas, sem perder minha “subjetividade de nascença”. Além de colocar ordem na pontuação, dispensei o uso exagerado de adjetivos, fiquei menos “verborrágica” também. Adotei certo “minimalismo” para minha escrita, o que certamente colaborou para o desenvolvimento dela. “Menos é mais!” – estou de acordo.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de criar um espaço dedicado à escrita para receber as pessoas que têm ânsia por “EscreViver”… um “book café”, algo nesse estilo, onde eu possa oferecer os meus cursos de Escrita Criativa & Curativa. Porque para mim livros, cafés e amigos é a perfeita combinação! Foram nas cafeterias com livros (ou nas livrarias com café) que, até o momento, nasceram algumas de minhas melhores ideias na escrita. Sempre que preciso desestressar da rotina agitada marco um encontro com uma ou mais amigas num desses lugares e é BA-TA-TA: volto revigorada. Isso é maravilhoso!
Ainda quero muito, também, que alguma de minhas obras literárias vire produção audiovisual nas telinhas, para isso eu já comecei a me mexer, realizei vários cursos de roteiro audiovisual para poder adaptar meus textos para a TV. Por sinal, recomendo todos os cursos da Flávia Orlando, incrível roteirista e professora de roteiro. Ah! E eu gostaria de ler um livro escrito pela Mônica Martelli, atriz e roteirista do filme “Minha Vida em Marte”. Adoro escrever sobre o tema do filme: relacionamentos no universo feminino. E acredito que a Mônica escreve sobre isso de forma tão leve e bem humorada. Amo a escrita que tem em sua receita pitadas generosas de inteligência e bom humor, cuja leitura nos faz sentirmos vivos e muito amados. Para mim, esse tipo de escrita não tem preço! É uma pena que a Mônica não tenha lançado nenhum livro desse estilo ainda para acompanhar seus filmes e séries, mas sei que ela também é fã da Martha Medeiros, o que já explica minha afinidade. Em 2020, tive o privilégio de ouvir a Mônica declamando meu poema “Multipersona” (Sou meio doida /Meio santa / Meio Atenas / Meio Esparta / Sou tantas em uma só / Meia Lua Inteira do Caetano / E de Quintana: Laço / Não nó), em uma live com a Martha. Um sonho realizado! Que os outros sonhos também tenham esse privilégio.