Carol Façanha é escritora de ficção científica e fantasia e doutoranda de literatura de língua inglesa da UERJ.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sim, em especial durante os processos criativos. Gosto de acordar e me sentir sozinha no mundo, isso me ajuda na criação. Ajuda a bloquear os ecos e focar naquilo que mais importa no trabalho do dia: pesquisa, escrita, reescrita, revisão. Já acordei 4 da manhã e dividi parte deste processo no meu instagram. Outros dias só conseguia levantar às 5. Acho corajosas as pessoas que experimentam processos de criação diferentes e transmitem para os outros. A Kate Cavanaugh é uma escritora independente estadunidense que explora isso em seu canal de youtube e sempre achei isso inspirador. Ainda não tive coragem de me expor tanto assim e para falar a verdade, não sei se comigo teria dado certo. Preciso trabalhar com as portas do gabinete fechado também e me sentir livre para mudar a direção se eu quiser, sem me preocupar com pessoas olhando os bastidores tão de perto. Meu processo precisa de e merece privacidade.
Outra coisa que acho legal mencionar é que mostrar minha rotina matinal não vem de um local prescritivo, como que dizendo que outros escritores precisam produzir neste horário. Cada pessoa tem o seu processo. Mas é a forma mais autêntica que tenho de mostrar o meu. Escrevi a primeira versão de Não Esqueça inteira acordando às 5 da manhã todos os dias de novembro de 2016.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Adoro trabalhar de manhã: quanto mais cedo, melhor. Mas isso nem sempre é uma possibilidade. Em 2016, eu tinha outra vida: morava com a minha mãe, tinha menos responsabilidades, não era casada. Hoje eu me adapto. Porque não tenho bolsa no doutorado, também trabalho como redatora de uma agência e preciso equilibrar a carreira acadêmica com a ficção, que é a minha estrela-guia. Nem sempre consigo conciliar, mas estou sobrevivendo, caminhando aos poucos. Sobre rituais, gosto de fazer mentalizações antes de escrever. Isso me coloca num estado de espírito mais entregue para escrever na profundidade que algumas das histórias exigem. No Clube das Cinco, a imersão que propus na newsletter enquanto escrevia a novela Sinas de Fogo e Cinzas, fiz isso com o pessoal e foi interessante ver outras pessoas também mergulhando com mais profundidade nos seus processos por causa da mentalização.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Descobri que preciso de alguma rigidez, mas que rigidez demais só causa desgosto na escrita. Então eu escrevo um pouco todos os dias. Se tivesse mais tempo, provavelmente faria períodos concentrados. Porém, tem um detalhe: não acho que estou pronta para escrever de forma concentrada, preciso treinar mais o músculo de habitar este espaço híbrido, um pé no mundo de cá e um pé no mundo de lá, antes de dar este passo.
Sobre meta de escrita, já tive e abandonei isso. Tenho metas de progressão da história como “hoje quero escrever o rascunho de dois capítulos”, só que deixo estes capítulos terem a liberdade de escolher quantas páginas vão ter, ao menos na hora zero. Se ficar algo muito discrepante, sempre posso reescrever, editar. No período da criação selvagem, deixo mais solto. É uma eterna negociação entre liberdade e rigidez.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando estou com uma ideia nova, cenas aparecem desavisadas e preciso sair para escrever em qualquer lugar que dá. Tenho um grupo de Whatsapp só meu chamado “Agenda” que tem todo tipo de retalho da história e para cada projeto costumo ter também um caderninho pequeno próprio. Meu processo inicial é caótico, eu saio anotando em todos os lugares (embora eu tenha um caderno para isso) e quando sinto que é o momento, sento, paro e compilo isso num local só. Um arquivo de trabalho em que faço uma capa e invento um título de trabalho.
Para a pesquisa, sou mais disciplinada. Paro e pesquiso, anoto o que sinto que é importante, revisito essas páginas depois. Como disse, ainda estou aprendendo a lidar com o meu caos e com a necessidade de alguma organização. Tem uma frase da Clarice Lispector (juro que esta frase é mesmo dela) que é assim: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro”. Há qualquer coisa de caos que sustenta o meu edifício de escrita e estou aprendendo a respeitar este caos em vez de domá-lo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso é engraçado. Sinto um pouco de saudade da coragem delirante que minha versão jovem tinha ao escrever fanfics de Harry Potter no portal Aliança 3 Vassouras. Escrevia num caderno azul nas aulas e passava no intervalo para colegas que anotavam seus comentários com elogios que eu sempre era rápida demais para aceitar como verdade. Aquele “caderno azul” virou meu pseudônimo e acho que isso me dava uma liberdade para criar. Ainda que muito do que escrevi naquela época fosse questionável, já havia pitadas do que ia buscar hoje, como um gosto por multiplot e um desejo de brincar com os buracos que a manipulação de pontos de vista me emprestava. Sinto que preciso pegar essa garota de volta para criar com liberdade sem esquecer a responsabilidade que quero trazer para a literatura de entretenimento.
Uma coisa é o que acho justo e necessário fazer numa história. Outra, bem diferente, são as expectativas dos outros sobre mim, as tendências de mercado, as ondas que flutuam e prometem muita coisa para quem souber navegar por elas. Eu precisei voltar para um local de paz interna para não me contaminar com essas demandas externas que muitas vezes não têm nada a ver com o que quero fazer.
Nunca lidei bem com projetos longos, a novela é uma forma que hoje em dia se afina mais com a explosão criativa que vem nos meus projetos. Não dá para exigir que essa explosão dure mais tempo do que ela tem para dar hoje. Mas é aquela coisa, desconfio que seja um músculo e eu esteja só começando a nadar.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Sou ansiosa. Para pessoas de confiança, vejo duas vezes e já envio. Aí, claro, geralmente recebo uma mensagem mais ou menos assim: “tem potencial, mas precisa trabalhar mais” com gradações de gentileza. Então trabalho de novo, revejo detalhes que não tinha percebido, tenho novas epifanias, daí mostro para outras pessoas. O processo em geral tem três fases. Na primeira, o projeto está bem cru e mostro para uma pessoa ou duas, no máximo. Com a devolutiva, trabalho bem naquele material e mando para os leitores beta. Quando eles me devolvem, eu já sinto a história pegando forma e envio para o leitor crítico. O Não esqueça foi aceito pela Caligari depois dos betas, mas antes da leitura crítica, então ainda reformulei bastantes pontos na fase da edição. Não recomendo, foi estressante e doloroso. Só que eu estava com tanta síndrome de impostora naquela época que se eu não fosse com coragem, ia acabar me afogando nas minhas inseguranças.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
No computador. Uso caderno ou folha de papel em branco quando preciso dar uma materializada naquela ideia. Entender aquele esqueleto ou fazer novas conexões que a tecnologia não me permite como o papel. Sei que tem gente que escreve à mão, como a Carol Chiovatto (autora de Porém Bruxa), eu gosto da ideia, mas não consigo escrever cenas assim. Apenas alguns trechos e muita pesquisa, ideias de universo, exercícios de estrutura.
Na época das fanfics, escrevia em cadernos porque não tinha computador em casa (era lá para 2009). Depois que comecei a escrever em tela, não consegui voltar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Elas chegam a despeito de mim. Em sonhos, quando tomo banho porque água canaliza muita criatividade, lendo um texto teórico para a tese, em aulas na universidade, ouvindo uma música nova ou uma que já ouvi um milhão de vezes, mas que naquela hora abre um portal de inspiração inesperada. As ideias vêm numa enxurrada e em geral mais do que consigo absorver. Meu problema é materializar essas ideias.
Mas em geral não tenho ideias lendo livros de ficção ou vendo séries ou filmes. Teaser de vídeo games é outra história. A ideia do Não Esqueça tive vendo o teaser de um vídeo game francês que achei por acaso.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que comecei a entender mais quem eu era e do que gostava. Se eu pudesse voltar para o que escrevia, romantizando relações abusivas ou tendo o male gaze como norteador do meu olhar, eu diria “espera só o que a vida vai fazer contigo”. Parece um pouco sádico, né? Até para nossos desejos e fantasias, é necessário sabedoria e alguma responsabilidade. Eu não sabia disso quando comecei. Hoje que sei, tenho um segundo desafio: não julgar quem, em especial autoras, que patinam numa jornada perigosa de falta de responsabilidade ao que se escreve pelo pretexto de que “o que vale é fazer o que você gosta” num reducionismo complicadíssimo e uma relativização absurda. Tento lembrar que já fui assim e provavelmente ainda sou com uma porção de situações em que não sou consciente.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Hum, ótimas perguntas. Tenho a ideia de uma releitura feminista dos Três Mosqueteiros que vai exigir muito mais pesquisa. Chama-se Código de Honra e vai nos convidar a olhar para a história contada por Alexandre Dumas por outros olhos. Olhos femininos… É um baita desafio, me preparando para este. Sobre o livro que ainda não li, também tenho um projeto guardado que vai trazer aquela frase da Virginia Woolf com mais profundidade: será que mulheres espelham a imagem do homem, a exibindo com duas vezes o seu tamanho? É pegar esta ideia e ir para a fantasia trabalhando a monstruosidade feminina. Também vai exigir bastante dedicação. Como é o livro que sempre quis ler e não existe, vou escrevê-lo. Tudo o que me resta é confiar no processo.