Carmen Moreno é poeta, contista, romancista e professora.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho uma rotina nos dias em que leciono, quando acordo com o som implacável do despertador, cumpro breves ações básicas, e sigo um roteiro pouco espontâneo e mais restrito, para não chegar atrasada. Duas vezes por semana, trabalho como professora regente de Sala de Leitura, em escola da SME do Rio de Janeiro. Desenvolvo projetos de incentivo à leitura e à escrita, para crianças e adolescentes, que estimulam também a reflexão sobre valores éticos e humanistas. Produzo vídeos que são apresentados às turmas, seguidos de debates.
No restante da semana, a literatura se espreguiça, e posso saborear meu caos criador, embora ela não se imponha sobre o meu dia. Sou ansiosa, e tenho uma relação delicada com o tempo – que quase nunca se mostra suficiente à minha gula de artista multifacetada. Posso acordar de madrugada para desenvolver uma ideia, registrar um sonho, lapidar um poema, ou ceder à súbita urgência espiritual de pintar meus quadros, redecorar a casa, customizar roupas, até o esgotamento físico, quando o dia lança no meu rosto a realidade: passei do meu limite (risos). Embarquei de cabeça na minha loucura sã. Mas esta aventura libertadora só é possível quando, na manhã seguinte, o despertador está de folga.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor?Você tem algum ritual depreparação para a escrita?
Sou poeta e ficcionista, e meu processo criador acontece de forma completamente diferente de um gênero para o outro. A poesia me escolhe. Ao contrário da prosa, que exige mais disciplina de tempo e organização, a poesia me arrebata, fazendo-me parar, mudar o rumo de uma ação cotidiana para criar, sem negociação! Ela me domina, me submete ao seu clamor: uma frase, imagem, a inquietação diante de um fato, sentimento de dor, angústia, alegria, encantamento, ou algo que precise ser revelado (a mim mesma) em determinado instante.
A prosa estimula-me a procrastinar. Anoto ideias para um romance, ou livro de contos, motivada e feliz, mas, no dia seguinte, algo mais instigante (ou não) pode me desviar da proposta. A prosa exige de mim um rigor extremo a longo prazo, por isso fujo um pouco de suas amarras. Para dar continuidade a um livro de ficção, estabeleço algumas condições (que fazem parte, certamente, desse sentimento difuso que me leva a adiar a criação): preciso reservar o dia inteiro para o feito, mesmo que a produção não o absorva por completo. Preciso de silêncio absoluto, e o escritório (meu quarto) deve estar perfeitamente organizado.
Para visitar o armazém do inconsciente, e pinçar seus símbolos escorregadios, com mais precisão, a concentração deve ser total. Mas quando se trata de poesia, isso é um luxo desnecessário – ao menos nos primeiros momentos, quando o poema se debruça ou se atira sobre meu espírito desavisado. Nenhum ruído externo o detém, nenhum contexto desfavorável o faz desistir de nascer de mim.
Minha literatura é visceral, densa, de mergulhos profundos na subjetividade. Acho que este perfil literário acaba sendo extenuante emocionalmente, sobretudo porque, ao contrário da poesia, um livro em prosa nunca será concluído em três ou quatro dias, como acontece com a elaboração de um poema. Ambos os gêneros exigem de mim a mesma entrega emocional, espiritual, psicológica, física, metafísica, mas o poema me “libera” antes da exaustão. Além de dialogar melhor com minha ansiedade: o fim de um poema estará sempre mais próximo (risos).
Tenho necessidade e prazer imensos de trabalhar a linguagem. Posso demorar horas para escrever um curto parágrafo, buscando a imagem ou a construção que melhor simbolizem determinado sentimento ou ideia. A imagem virgem, original, inusitada e fiel àquele contexto ou situação vivida por determinado personagem. Sendo assim, a finalização de um livro de poesia costuma sair na frente. A não ser quando há convite e prazo estabelecidos. Gosto de prazos e encomendas, eles não me oprimem. Mesmo porque, são raros! (risos). Costumam, ao contrário, me desafiar e motivar. Escrevi o romance policial “O Primeiro Crime”, Coleção “Elas São de Morte” (Rocco), em pouco mais de quatro meses, estimulada por um convite da querida editora Vivian Wyler, que, infelizmente, nos deixou há alguns anos. Recebi um telefonema da jornalista Denise Assis, idealizadora do projeto, e comecei a escrever o romance na mesma tarde, com uma produção de 13 horas diárias – que me levou a desenvolver uma tendinite. Foi uma experiência maravilhosa, e o livro esteve entre os três primeiros lançados – juntamente com as obras de Ana Arruda Callado (“Uma Aula de Matar”) e Ateneia Feijó (“O Jantar da Lagartixa”).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrever é um movimento de prazer, alegria, libertação, embora esteja inevitavelmente ligado à dor. Portanto, a criação literária em mim segue um fluxo espontâneo, sem que eu estabeleça metas diárias, a não ser quando preciso atender a um prazo, conforme respondi acima. Contudo, sempre vislumbro um tempo para a conclusão dos meus projetos, mas de maneira a não comprometer a liberdade do processo criador, e as prioridades que se apresentam na minha agenda da Vida, onde a literatura é um elemento precioso, mas não a própria vida. O poema abaixo, publicado no meu livro “Para Fabricar Asas” (Ibis Libris), sintetiza a essência da escrita para mim: “ESCREVER: Transformar a dor em leveza/ e qualquer lixo humano em beleza”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando escrevo um romance, faço anotações aleatórias, mas é o próprio fluxo da história que me conduz. Sou uma escritora essencialmente intuitiva. Não realizo pesquisas. A escrita acontece a partir de um tema inspirador, ideia ou sentimento que mobilizem minha imaginação ou interesse. Quase sempre, recorro apenas ao manancial de experiência e leitura de mundo da artista – que está sempre em sintonia com a vida e com o humano.
Exercito minuciosamente a observação, embora não tenha uma memória privilegiada. Alimento meu inconsciente com informações absorvidas por este olhar lançado a tudo que se move, mas minha pretensão é sempre o invisível, o impalpável. O invisível é o que me apaixona. Isso fica claro na minha escritura: não me detenho em longas e detalhadas descrições de ambientes e ações físicas, por exemplo. A construção do externo é apenas um pretexto, o trampolim para que a subjetividade do personagem possa emergir e expandir-se. Jamais seria escritora se não pudesse dar atenção especial ao mundo dos sentimentos, à vida interior dos personagens, suas contradições, alegrias, neuroses, medos, se não pudesse iluminar sua dor existencial.
Mas quanto à pesquisa, houve exceções, nestes 30 anos de carreira literária. O livro “O Primeiro Crime” (Rocco), como se tratava de um romance policial, uma narrativa realista, levou-me a estudar alguns temas específicos e realizar entrevistas. Precisei conversar por telefone com uma médica e com uma delegada de polícia, pois as cenas deveriam ser verossímeis, e eu precisava partir de informações reais para dar credibilidade à trama. Foi uma ótima experiência, pois a pesquisa me proporcionou maior segurança para saltar e voar. Mas quando escrevo contos, por serem narrativas mais curtas, sequer realizo anotações. A história (inicialmente inscrita em mim enquanto inquietação) escreve-se naturalmente, conduzindo-me sob sua própria luz. Os personagens surgem organicamente, inseridos na dinâmica da ação.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
A procrastinação às vezes me causa certa culpa, pois sei que alguns projetos se estendem por tempo desnecessariamente longo, entregues aos meus critérios de primazia – sempre flexíveis – submetidos ao movimento sedutor e voraz da vida, seus encantos, demandas e obstáculos. Os prazos, como já disse, ajudam-me, pois definem por mim as prioridades da agenda. Não gosto de projetos longos. Sou imediatista.
Quando escrevo, não penso no leitor, não penso em ninguém… não penso. A intuição guia-me, não o cérebro. Ele segue ao lado dela (a mestra), aprendendo e servindo sempre. Não como um súdito. O cérebro serve à intuição com respeito, inteligência (e generosidade ágil), para colaborar, de maneira imediata, durante todo o caminho. Ninguém importa quando escrevo, nem eu mesma. Por isso, não tenho medo de não corresponder a supostas expectativas. Escrever é me desamarrar. É o contrário do medo que, dependendo da intensidade, pode significar a morte da criatividade. Mas ele pode surgir depois, quando o livro está pronto e eu não tenho noção de como e quando será publicado. Ou quando, depois de editado, o exemplar chega às minhas mãos, e não sei se algum problema nos escapou: sentimento semelhante à felicidade temerosa da mãe ao acolher o filho nos braços pela primeira vez – imagino. Por mais que seja um paralelo desgastado, é a imagem que se assemelha à minha sensação. Não tenho filhos. Sou mãe de meus livros. Sim, o medo surge depois, na véspera da noite de autógrafos, um medo eufórico e mágico. Ele só não toca o ato da criação – pois que o medo é inacessível ao divino.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Antes de apresentar àseditoras,costumo mostrar meus livros ao meu irmão, Tanussi Cardoso, poeta e grande incentivador da minha arte. Comecei a escrever aos 14, e ele foi meu primeiro crítico literário. Aos sete anos, levava para a antiga escola primária seu primeiro livro. Ao final da aula lia para a turma, orgulhosa por ter um irmão poeta. Hoje ambos nos apoiamos nessa estrutura amorosa de troca de opiniões. Mas não apresento nenhum livro a ele sem antes trabalhá-lo sozinha, exaustivamente. Reler, revisar, enxugar o texto, torná-lo fiel àquilo que emerge e precisa ser revelado talvez seja o momento mais prazeroso da escrita: à medida que releio um parágrafo, revisito o sentimento inicial que o gerou. Este processo me conduz a um novo olhar, que se desdobra, necessariamente, em outras formas de estruturar a linguagem, de reorganizar o texto bruto do jorro inicial. O mergulho na releitura se aprofunda, e a forma aprimora-se em originalidade e vigor. Esta busca pelo signo singular é inegociável.
Escrever é um exercício de autoconhecimento e catarse profundos, do qual sempre necessitei, desde menina, sem perceber o quanto a ferramenta da escrita sustentava e impulsionava minha lucidez e alegria. Hoje tenho plena consciência da importância da criação literária na minha “salvação” pessoal. Tive uma infância feliz, pois a felicidade é um talento que herdei de minha mãe, Carmen, mulher que viveu, durante 98 anos, alimentando a menina bem humorada e criativa que trazia em si. No entanto, não foi uma infância tão fácil, pois convivi com a esquizofrenia de minha irmã. Minha literatura tem marcas desta experiência de dor, transformada, graças a Deus, em beleza. Por exemplo, no livro “Diário de Luas” (Rocco), meu primeiro romance, a protagonista escreve: “A loucura sempre me atraiu. É especial minha emoção diante de um louco: ele desorganiza a rotina das certezas, surpreende a mesmice da ótica, senhor absoluto das bruxarias do inconsciente”.
A literatura ajuda-me a realizar, lúdica e intensamente, minha travessia existencial, sempre ao encontro do meu semelhante. Não é um mero expurgar de fantasmas, e tampouco uma exposição de umbigo. A escrita é a terra do encontro. Parto de mim para o universal. Não construo um baú de experiências memorialistas, mas um moinho que as tritura e as transforma em comunhão e salto. Através de seus símbolos poderosos e curadores, consigo mergulhar em mim e trazer à tona o outro, de maneira densa, clara e inédita. Meus personagens (na prosa) são absolutamente intensos e reais. Existem, com todas as contradições e neuroses humanas. Fico feliz quando leio este tipo de comentário nas resenhas sobre meus livros, pois os personagens pulsam com a nitidez da vida que eu lhes empresto. Não apenas a minha, mas a que apreendo na íntima observação e absorção do meu semelhante.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
O poema se coloca tão urgente que, na falta de um computador, qualquer guardanapo de bar me socorre. Costuma surgir da inspiração. Depois, sim, ele será digitado e lapidado, durante vários dias. Mas posso criá-lo diretamente no computador. Antes precisava de caneta e papel, tudo tinha de ser manuscrito. Comprei meu primeiro PC, e o deixei decorando o quarto, intacto, durante um ano, como um ente a ser admirado e temido. Meu primeiro romance foi digitado por um rapaz, a quem eu entregava os manuscritos aos poucos. Semanalmente ele me devolvia uma parte para revisão. Mas o computador estava lá no meu quarto – um estranho. Hoje em dia não consigo sequer imaginar essa logística tão problemática (risos). A tecnologia é uma bênção dos novos tempos que me atende e encanta: tenho site e blog literários, canal no YouTube, produzo curtas em prosa e verso (…), amo celular, tablet, tenho e-book (embora prefira o livro físico), enfim, dei a volta por cima no meu medo da tecnologia, e passei a me valer dos seus serviços.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Estou viva – e isto basta. Viva, na plenitude da palavra – que envolve alegria e dor, e a complexidade indizível destas experiências. Sou uma observadora detalhista do mundo, das pessoas, de mim mesma. Alimento meu inconsciente criador (meu armazém de sentimentos e imagens) com tudo o que pulsa. E, generoso, ele me devolve a criatividade.
Leio muito, assisto a filmes, trabalho com artes plásticas, leciono, faço análise (tenho imensa necessidade de autoconhecimento), amo, namoro, cultivo amizades longas e íntimas, procuro perceber meus defeitos e superar limitações, gosto de gente, de ouvir e de aprender com as pessoas, desenvolvo a minha espiritualidade, rego a minha alegria, enfim, estas são as fontes essenciais da minha criatividade.
Acho que o escritor, enquanto busca a substância do texto, quando se lança sobre aquele Ser que brota do escuro, apalpando-o com a paixão do desapego, orando à palavra original para que encontre e traduza aquela vida, na realidade procura a si mesmo, sem perceber. E quanto mais ele aprofunda essa busca, mais o seu inconsciente criador lhe oferece material farto. O exercício de buscar-se é um dos alimentos fundamentais da criatividade. A cada palavra descartada, substituída por outra mais fiel à emoção, ao pensamento, ao conceito da obra, o escritor despe-se dos medos de encontrar-se. Ao menos naquele raro instante da criação.
O movimento lúdico do mergulho (descascado em símbolos) liberta o artista. Liberta-o da prisão cotidiana de olhar-se furtiva e passageiramente, conduzindo-o a um patamar de autoconhecimento tanto mais profundo, quanto mais se dedicar a conhecer a identidade de sua escritura. Temos aí uma via de mão dupla, pois que, quanto mais o artista explora as metáforas do seu inconsciente, disponibilizando para si mesmo a abertura de um portal mais amplo à passagem dos seus fantasmas e sonhos, das suas imagens pessoais, mais os seus símbolos artísticos tornam-se generosos e singulares no momento da sua produção. Mais ele se torna senhor das sutilezas dos sentimentos, das palavras, ou quaisquer ferramentas artísticas do seu trabalho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Comecei escrevendo poesia, depois a prosa foi acontecendo, aos poucos: romance, conto, e duas incursões pela dramaturgia. Mas o olhar (onde tudo se inicia) é sempre o da poeta. E o tema recorrente da poeta mais jovem era o amor sensual, a paixão. Com a maturidade, o leque expandiu-se, e o amor tornou-se mais profundo e abrangente, ligando-se à morte, às perdas, à família, à espiritualidade e às questões existenciais. Cada tempo tem sua importância e beleza, não podemos apressar a existência. Minha literatura cresceu na proporção das minhas experiências e maturidade.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Pretendo concluir e publicar dois livros – um de contos, e um romance de autoficção, cujo título, “A Casa da Louca”, além de simbolizar a convivência com minha irmã, Gley, esquizofrênica, também faz referência ao maravilhoso romance “A Louca da Casa”, de Rosa Montero. Estou bastante entusiasmada com estes dois trabalhos, em andamento há algum tempo. Concluí recentemente um novo livro de poesia, “O Amor e Outras Traições”, e meu projeto mais imediato é apresentá-lo às editoras, juntamente com o romance inédito “Casa Insana”.
Os livros que “gostaria de ler e que ainda não existem” são todos os que existem e não li (risos). Aqueles que me assediam, empilhados na mesinha de cabeceira, e tantos outros, espalhados pelos cômodos, que vou desvelando diariamente, sempre sob o controle mesquinho do Senhor das Horas, com quem mantenho contenda desde que nasci (risos).
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sempre me deixo fluir, por mais que necessite planejar ou fazer um esboço de projeto literário. É a criação quem me conduz. Não sou uma artista cerebral, racional. A intuição é minha mestra. Confio plenamente nos caminhos abertos por ela. Durante todo o processo de alargamento desses caminhos, desdobrados em ruelas e avenidas, o cérebro não atua como condutor, mas como supervisor, revisor, como um crítico atento e respeitoso da produção orgânica que a intuição realiza.
Quando se trata de poesia, o verso normalmente se impõe, urgente, em forma de inspiração. Não me oferece muita escolha. Paro o que estiver fazendo e atendo àquela súbita querência desconhecida que brota de mim, e vou ao encontro dessa força indefinida para identifica-la, traduzi-la, buscando sanar aquela inquietação. A poesia me toma. Sendo assim, o primeiro verso é mais fácil de ser criado do que o último. Inscrito em mim, ele se escreve. Por mais que seja transformado, durante o processo de burilamento da ideia e do sentimento.
Contudo, quando estou criando um romance, ou um conto, a primeira frase é infinitamente mais difícil de ser escrita, pois quem escolhe a prosa sou eu. Ela surge normalmente de um enredo que esteja me instigando. Ou um tema. Mas raramente acontece enquanto linguagem pronta e generosa. Não brota como palavra, ou como uma metáfora aflita que precise ganhar vida, e que praticamente me implore para ser parida.
A prosa é um processo lento, que requer de mim persistência para dobrar minha procrastinação de escritora. Exige grande disciplina. É mais difícil iniciar uma obra de ficção do que de poesia. No entanto, se eu considerar sua pergunta com relação apenas à prosa, respondo que o mais difícil é escrever a última frase do livro, pois tenho sempre a sensação de que talvez ele nunca chegue ao fim (risos).
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Gosto quando tenho vários projetos simultâneos, isso me estimula. Por outro lado, também me causa certa ansiedade (boa). Neste momento em que vivemos a situação dolorosa de uma pandemia, colocar o foco na literatura, além de promover alívio emocional, facilita a administração do tempo dedicado aos projetos, pois não há escolha: precisamos ficar em casa. Não posso, por exemplo, lecionar, ir ao cinema, ao teatro, pedalar etc. E têm surgido muitos convites nesta fase. Normalmente concluo primeiro as solicitações mais urgentes. Também tenho dado prosseguimento, de forma mais assídua, a produções pessoais. Retomei a criação do meu romance de autoficção, A Casa da Louca, cujo título faz referência ao maravilhoso A Louca da Casa, de Rosa Montero. A criação estava parada há séculos! Concluí também o meu novo livro de poemas, Sobre o amor e outras traições, e consegui entregá-lo à editora Patuá, no prazo que estabeleci.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Sempre gostei de escrever, desde menina. Inconscientemente, percebia que a escrita me libertava. A imaginação me transportava para lugares que eu jamais poderia visitar fisicamente. Então, na antiga escola primária, as redações foram, inicialmente, meu passaporte para alguns mundos intangíveis. As professoras sempre as elogiavam. Depois, aos onze anos, aproximadamente, escrevi um conto romântico. Só me lembro de uma frase: “Ele me abraçou com seus braços de corda”. Percebo neste trecho o viés poético que marcará toda a minha criação. Aos quatorze anos, o poema se instala de vez, como linguagem. Só bem mais tarde a prosa retorna, com a dramaturgia, o conto e o romance. Ou seja, houve fases, movimentos, não um uma decisão consciente de ser escritora. A literatura sempre foi uma força pulsante dentro de mim. Depois que abri a primeira porta, nunca mais pude fechá-la. Não se detém o fluxo de um amor profundo.
E o que me lança à escrita, além dessa necessidade do voo, é a busca do desconhecido em mim, que precisa ser desvelado em signos. Uma inquietação que me leva a identificar e a traduzir em palavras o que está submerso. Acho fascinante mergulhar na minha alma e encontrar uma alma universal (a do Outro). Mergulho em mim e trago à tona vários seres – únicos, incomparáveis, mas, ao mesmo tempo, tão semelhantes! Conforme disse, na primeira fase da entrevista, escrever não é um mero expurgar de fantasmas, e tampouco uma exposição de umbigo. A escrita é a terra do encontro. Parto de mim para o universal. Não construo um baú de experiências memorialistas, mas um moinho que as tritura e as transforma em comunhão e salto.
É fascinante, através do verso, ou da narrativa, buscar metáforas, e tantas outras figuras de linguagem, que me ajudem a entender e a representar a complexidade do Ser no mundo. Escrever é expressar sentimentos, ideias, indignações, realizar denúncias, abordar as neuroses, as contradições humanas (…). Costumo dizer que jamais seria escritora se não pudesse falar sobre o mundo interior dos personagens, sobre conflitos humanos. Apenas narrar fatos, descrever cenários e ações físicas não me interessa. Todas as minhas narrativas são densas e psicológicas. Os poemas também. Isso não quer dizer que tenham uma atmosfera pesada. Trabalho a linguagem para que possa cortar com delicadeza e beleza. Mas o corte, embora sutil, é sempre profundo. E sangra.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Nunca me preocupei em desenvolver um estilo próprio, mas hoje minha escritura tem minha identidade. Meu olhar, as marcas de uma experiência que se desenvolveu ao longo de um constante amadurecimento pessoal e profissional. O estilo é uma construção do tempo.
Quando comecei a escrever poemas, aos 14 anos, fui influenciada por meu irmão, o premiado poeta carioca Tanussi Cardoso. Aos oito anos, levava seu único livro para a escola, e lia, orgulhosa, ao final da aula, seus poemas. Gostava das imagens fortes, desconcertantes, originais, do ritmo. Não entendia tudo, mas o essencial me atingia. A arte não passa inicialmente pelo cognitivo. Ela atinge, antes, múltiplas regiões sutis. Principalmente, quando é boa. Depois é que surgem os nomes.
Tanussi me influenciou bastante. E todos os poetas e compositores que ele levava para a nossa casa, em Quintino Bocaiúva, na Zona Norte do Rio de Janeiro: os poetas da década de 70 – a poesia marginal, e os grandes poetas da MPB da época. Inconscientemente, eu seguia o estilo do irmão. Depois, minhas leituras se diversificaram, e, conforme respondi acima, a maturidade me proporcionou uma voz singular, embora moldada pela riqueza de tantas outras vozes preciosas, que, constantemente, ajudam a construir meu olhar e minha escritura.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Poderia escolher tantos livros que me encantaram, mas começo citando o primeiro que me surgiu à lembrança ao ler a pergunta: Infância. Esta densa autobiografia de Graciliano Ramos aprofunda, através de uma linguagem de intenso lirismo, a dor existencial de um menino, oprimido e humilhado, que encontrou, na literatura, libertação.
Quero alternar, escolhendo o meu livro mais recente, Para Fabricar Asas (poesia), Ibis Libris Editora. Entre os meus (publicados) no gênero, é o mais maduro. Apresento um breve poema:
REMORSO
Onde enterrar os beijos que não dei e quis?
Que luto lavará a dor do amor que não fiz?
A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, é um livro eletrizante, embora o protagonista seja um homem comum – medíocre, até. Mas a narrativa, seca e cortante, nada tem de banal. O livro me tirou o fôlego, literalmente. Fiquei asfixiada, a ponto de ter que interromper a leitura, em determinado momento. Acho fascinante o poder de desorganização emocional, e até física, que uma obra desse nível pode nos causar. O personagem, enfermo, diante da morte, reflete sobre a banalidade de suas escolhas, e o vazio de sua existência. Sua solidão e angústia são atemporais. É uma novela extraordinária.
Encerro, apresentando o meu primeiro romance, Diário de luas (Rocco), 1995. Considero-o um livro impactante. Conta a história de uma atriz anônima, narcisista, megalomaníaca, obcecada pela fama, que nutre um sentimento de idolatria e inveja por uma atriz consagrada. Depois de cometer um crime, ela escreve um diário, nos últimos dias de cárcere, imaginando que ele lhe servirá de base a algum projeto grandioso. Narrado em primeira pessoa, a obra deflagra uma personalidade patológica: “A loucura sempre me atraiu. É especial minha emoção diante de um louco: ele desorganiza a rotina das certezas, surpreende a mesmice da ótica, senhor absoluto das bruxarias do inconsciente”.
A obra, além de resenhas positivas em importantes jornais, me proporcionou outras alegrias: foi finalista da 5ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, e tema do Mestrado de Lilian Gonçalves de Andrade: “Diário de Luas: um Künstlerroman no universo literário de Carmen Moreno”, sob orientação da Profª Drª Eliane T. A. Campello, da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG), RS, 2006. Escrevi também um Argumento, a partir desse romance, e fiquei entre os selecionados da primeira fase do Prêmio de Desenvolvimento de Roteiros Cinematográficos de Longa-metragem, do Ministério da Cultura/ Secretaria do Audiovisual, 2001. Foi um grande desafio, pois tive a oportunidade de criar o roteiro A Delicadeza das Facas, sob a supervisão de grandes roteiristas brasileiros e estrangeiros.