Carlos Machado é escritor, músico e professor de literatura.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como trabalho como coordenador pedagógico durante o dia e também sendo professor, passo meu tempo de trabalho na escola, desenvolvendo projetos pedagógicos, acompanhando professores e professoras, alunos e alunas envolvido com o dia-a-dia de uma escola. Sou membro da gestão do Colégio Suíço, isso faz com que tenha também que me envolver em questões administrativas e estruturais de nossa escola. Muitas vezes estou em viagem também (antes da pandemia, naturalmente). Bem, resumindo, a literatura está em todos os lugares e em tudo que faço, já que as ideias, as imagens, as palavras são pensadas, inventadas e usadas em qualquer momento. Sempre anotando tudo, guardando aquilo que imagino que possa ser redefinido, porque literatura é redefinição de uma determinada realidade, é o processo de pensar sobre o quotidiano próximo ou distante, meu ou de outros… sendo que sou a voz do outro, definitivamente. Escrevo todos os dias a todo momento, sem necessariamente colocar as palavras na tela do computador. Dessa forma, de forma orgânica, muitos projetos se entrelaçam ao mesmo tempo. Sem dúvida. Porém, quando chega o momento de jogar com as palavras, então procuro me concentrar em um único projeto, em um único objeto, até desenhar algo que possa ser redesenhado a qualquer momento. É comum terminar um livro, por exemplo, deixar “descansando”, partir para outros textos e depois voltar para o primeiro e em algum momento desistir dele, então pensar em publicar. Um caminho longo entre pensar as imagens, mastigar as ideias, colocar no computador, deixar parado, voltar nele, sofrer com outras pessoas próximas lendo e devolvendo cheio de observações, reescrever e achar que pode ser enviado para um editor… então o processo continua. Muitas vezes inclusive trocando nomes de contos, de personagens, “matando personagens, criando novos e assim por diante. Como aconteceu com meu novo livro que está em pré-venda pela Arte e Letra, editora curitibana: o livro começou a aparecer em 2013, mas apenas em 2016/2017 escrevi uma versão (um romance), em 2018 ele virou uma pequena novela (cortei 75% dele), mais além, era um pequeno conto… alonguei algumas partes e chamei de narrativa… nem romance, nem novela, nem conto: “Por acaso memória”: uma narrativa. Mas nesse tempo todo, de 2013 a 2021, produzi uma série de contos que se transformaram em um livro chamado “Flor de Alumínio”, que já tem texto de apresentação escrito pela Luci Collin, mas que deve ser lançado apenas em 2022, caso eu mantenha da forma que está… é um processo inquieto, de muitas idas e vindas. Mas em algum momento é preciso dizer basta…
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Sempre planejo. Nunca funciona como o planejado, mas isso já é, em si, o plano. Começar por uma imagem e seguir em busca de uma linha, de uma luz, de uma porta. Muitas vezes é mais difícil achar o final da imagem inicial… até mesmo porque o caminho (que é a parte que mais importa) anda “sozinho”. Porém, a primeira frase é, sem dúvida, quando tentamos segurar na mão do leitor para dizer: venha, vamos por aqui… e para que não haja decepção, além do caminho, o ponto final deve fluir desse encontro. Isso serve para um conto, para um livro inteiro de contos ou para uma novela, que são os gêneros que me sinto mais à vontade.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Cada livro tem um momento ideal. Já escrevi em um caderno no colo durante 30 dias, durante uma viagem, ou em um café com muitas conversas paralelas ou no meu dia-a-dia… mas lembrando que escrever não é necessariamente colocar as palavras na tela do computador. Para o meu processo, escrever, como disse anteriormente, é mais o ato de pensar, imaginar frases, cenas, personagens etc. de qualquer forma, quando é para seguir com as palavras, preciso que seja sim em silêncio e durante um período de alguns dias em que só faça isso, geralmente férias, feriados etc. assim consigo passar horas, dias, semanas apenas escrevendo sobre o que foi mitigado, pensando, engolido, regurgitado por um período anterior. Assim fiz com todos meus 9 livros até hoje. “Poeira fria”, por exemplo, aluguei um pequeno apartamento na boca do lixo em SP e em 5 dias escrevi a novelinha, mas as imagens, histórias, linha mestra etc. eu já tinha comigo meses, anos antes.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
O processo mais importante para escrever algo basicamente se resume em duas ações: viver, observar, se possível viajar, conhecer lugares diferentes, ser invisível e uma cidade, em um bairro, em uma rua… e a outra parte do processo é a leitura (além de ler o que estamos vendo e pelo que estamos vivendo) de outros livros. O escritor é, antes de tudo (além de observador) um leitor. Deve ser voraz. Ler tudo que achar pela frente, com um projeto de leitura ou não necessariamente. Tudo que lemos pode ser usado contra ou a favor de nosso próprio texto no final das contas.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Meu novo livro deu muito trabalho… a história se passa no período do Plano Collor… precisei ler bastante sobre esse tempo, fazer exercícios de lembrar como era, onde eu estava nesse período, conhece pessoas de diferentes idades que viveram esse momento e achar as consequências. Estive em Porto Velho em 2013 e achei que o negócio com madeiras daria uma boa história, uma realidade tão diferente da minha, que moro em Curitiba. Havia lido sobre a Geada Negra de 1975 que foi um dos fatores que influenciaram o crescimento demográfico da capital do Paraná e juntei tudo em uma história que virou um romance relativamente longo. Em 2018 eu comecei a reler o que tinha escrito, queria lançar na época das eleições presidenciais, já que o Collor tinha se lançado como pré-candidato, parecia uma história sul-real. Bem, mas ao reler o texto, precisei cortar muitas partes, personagens, o texto estava ruim, não funcionou. Nenhuma editora quis lançar (das editoras comerciais), o mercado completamente mudado, editoras independentes crescendo, mas muitas sem um cuidado editorial, enfim uma confusão em minha cabeça… reescrevi o livro mais 5 ou 6 vezes até que virou um conto longo e o chamei de narrativa. Enviei para o Thiago Tizzot, escritor e editor da Arte e Letra, que faz um trabalho incrível de edição (lançou muitas preciosidades Jamil Snege, Luci Collin, Cristovão Tezza, Dalton Trevisan, Luiz Felipe Leprevost entre tantos outros). Ele já havia lançado uma novela minha de 2012 “Poeira Fria” que talvez tenha sido o meu melhor momento (não em qualidade literária necessariamente, mas de total confiança no que estava fazendo) e ele topou fazer essa nova narrativa… depois de quase 6 ou 7 anos que estava mexendo nela… O escritor Paulo Venturelli fez o texto de apresentação e agora não tem mais volta, já está sendo produzida, com uma capa incrível do Frede Tizzot, artista plástico premiado por seus trabalhos como artista e capista (mais uma felicidade a minha) e talvez meu livro menos pessoal, embora uma das personagens, a Joana, tenha a mesma idade que eu em 1990…
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Desde sempre eu tenho um projeto literário. Escrevo sobre o não-lugar (finalizei a trilogia do não-lugar com “Olhos de Sal”, em 2020 (os outros são “Poeira Fria”, 2012, “Esquina da minha rua”, de 2018. Porém, como minha geração flerta com a “autoliteratura” os temas começaram a flertar com o deslocamento, desencontros e buscas por algo que nos move na contemporaneidade: o conflito da solidão com a multidão, do umbigo com o universal. Um tema não original, obviamente, na literatura mundial, porém com uma perspectiva bastante paradigmática e atual. Uso muito o deslocamento psicológico (Freudiano) e físico (mesmo quando os personagens não saem de cima do sofá, como em “Poeira Fria”. O flerte com diversos idiomas é uma das formas que encontrei para causar esse estranhamento. Portanto, um leitor ideal, seria aquele que vê a linguagem sem a barreira dos idiomas. O personagem de “Olhos de Sal” fala português, alemão, italiano e francês ao longo da narrativa sem pestanejar e sem interrupção. Ou seja, na mesma frase são diversos idiomas que aparecem de forma natural, como se ele fosse impossibilitado de se prender a um único idioma. A nacionalidade desse curitibano se mostra exatamente quando ele caminha de um idioma para o outro, sem, necessariamente, levantar a cabeça. Mesmo se ele não se faz entender. O leitor ideal precisa entrar nesse jogo.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Somente depois que a história está no papel. E preciso de afagos… então começo pelas mulheres da minha vida: minha mãe, minha irmã, minha namorada… rsrs assim não tem erro… depois vou para a revisora. Então chego a um ou dois amigos/amigas que são escritores/as, jornalistas literários, artistas, ou seja, são da área… e por fim para o editor que quer encarar o lançamento.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Sim, lendo a série vagalume eu já sabia que era o que queria fazer. Escrever histórias, ler histórias, fazer um dicionário! Ainda com 10 ou 12 anos. Nessa época também comecei a estudar idiomas (hoje falo 7 idiomas fluentemente) e isso me colocou em um outro universo (que descrevi acima). Bem, a primeira pessoa que disse algo para mim foi o Dalton Trevisan (meu vizinho de bairro), “você precisa encontrar sua voz”… eu tinha lançado “A voz do outro”, um título tirado de Bakhtin (que havia lido nas aulas que tive com Cristovão Tezza) e que jogava com essa ideia de que somos a construção do outro. Nessa época, o Wilson Martins escreveu um artigo sobre o novo conto no Brasil (2004) e citou esse meu livro como uma voz que se separava da Curitiba de Dalton e ele me dizendo que eu tinha que encontrar a minha voz… imagine como fiquei (ainda estou) cheio de conflitos estilísticos e literários… No ano seguinte conheci Thiago de Mello em Manaus que leu meu segundo livro em uma noite e me entregou a cópia toda rabiscada com observações semelhantes às do Dalton…
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Até hoje, quase 20 anos depois, procuro por essa voz… que difícil. O que me ajuda a me ausentar dos meus ídolos de certa forma, é ler livros de outras culturas, outros idiomas, acho que isso faz com que eu abra o leque e mergulhe nesse universo de confluências culturais, idiomáticas, mas sempre com os pés em Curitiba, na minha província, no meu bairro. Mas isso ainda vai durar mais do que tenho de tempo com essa vida…
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
A trilogia do não-lugar (“Poeira Fria”, “Esquina da minha rua” e “Olhos de sal”) que deve ser lançado como edição única em algum momento. Mas hoje, o livro que gostaria de sugerir é o novo “Por acaso memória”, naturalmente. Porém, “Era o vento” é um livro de contos que lancei em 2019 pela Ed. Patuá que tenho muito carinho, já que se comporta como a transição dessa autoficcção geracional para a busca de algo que se afasta mais do Carlos, sem, necessariamente, deixa-lo de lado. Naturalmente.