Carlos Eduardo Marcos Bonfá é doutor em Estudos Literários pela UNESP e professor de Literatura, Leitura e Produção de Texto.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Inicio meu dia tentando não me esquecer de que tenho de perceber e entender que continuo vivo. Ao despertarmos, geralmente realizamos tal ato como mais um entre todos, ou como o inicial de uma série automática de outros afazeres cotidianos. Mas acordar é ter de entender que você continua vivo. Talvez aí já se encontre um germe de sensação poética que pode reaparecer no curto-circuito de algum dos afazeres automáticos, enchendo um afazer de prazer inesperado. Esse prazer inesperado é ainda mais importante e afagante para alguém como eu, que sofre de TOC. Minha rotina é a de evitar o TOC da rotina: levantar, escovar os dentes, preparar o material para o trabalho, se dirigir até ao trabalho. Evitar o TOC é fingir que ele não existe, agir naturalmente com ele estando lá, como se para o TOC a naturalidade fosse o inesperado. A naturalidade, oposta ao mecânico. Mas perceber e entender que ainda se está vivo não é nem tão natural, nem automático, nem da dimensão do TOC. É um ato mais próximo da dimensão poética, que vertigina todos esses estados. Despertar é entender uma ruptura que, em sua profundidade, não ocorreu, e os surreais estavam certos ao afirmar que a realidade cotidiana deveria continuar a partir da realidade onírica, ao despertar. Essa é a utopia surreal de transformação integral da realidade, que às vezes gosto de exercitar imaginativamente, pensando em que atos cometeria em minha rotina que poderiam abrir um horizonte transformador, seja lírico, épico, dramático… De qualquer modo, quando minha existência onírica não continua como deveria na existência cotidiana, é a literatura que sempre entende e revela que a ruptura, em sua profundidade, não ocorreu.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Não tenho uma hora exata, mas tendo a achar que os melhores horários são entre a tarde e a noite, às vezes de madrugada. Assim como não tenho um ritual de preparação para a escritura, apesar de crer no homem como um ser necessariamente ritualizado. É provável, no meu caso, que a própria escritura seja por mim concebida e exercitada como um ritual. Como a literatura é uma das melhores vias de acesso às demandas simbólicas humanas, é por meio dela que sinto a necessidade ritual do ser humano, sem precisar de rituais intermediários que buscam a prática da escritura. Talvez o único ritual de preparação seja o enfrentamento da página em branco (da folha de papel ou da mente), o face-to-face com a ausência que será preenchida, às vezes com mais gestos de ausência.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, ou quando consigo algum período de tempo concentrado. Alguns dizem que escrevem quando podem, como eu, outros que é a necessidade que impera sobre o período de tempo disponível, que a escritura é a única possibilidade de comunicação real e, por fim, outros afirmam que fazemos uma confusão proposital entre possiblidade hábil e necessidade (que é sempre ao menos minimamente metafísica). A escritura não é uma necessidade, mas, sim, a ritualização da vida e a escritura é uma das vias de acesso à ritualização pelas demandas simbólicas. Nunca exigi nenhuma meta para mim mesmo, a não ser em raros momentos referentes a determinados projetos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo de escritura é um processo equilibrado de dessubjetivação, ou melhor, de “povoamento”. Muito se exige hoje em nome da empatia. A literatura não é empática ou empata. A empatia é uma espécie mais ou menos oportunista de colonização do outro, estabelecendo falsas simetrias e ilusórias equivalências que, a bem da verdade, enfatizam o veio narcísico do empata. A literatura faz povoamento, exerce hospitalidade, e o outro não é somente o outro, mas o outro do outro e o outro de si mesmo, em variação “infinita”. A identidade é um work in progress ad infinitum povoada de outras identidades ou delirando todo um povo, toda uma comunidade de identidades dessubjetivadas. A empatia sempre quer identificar as identidades, classificá-las para colonizá-las narcisicamente. O povoamento é o respeito ao incomunicável, ao mistério, à diferença, oposto à noção de tolerância. Somente é possível fazer povoamento com a diferença que se mantém diferença, que se mantém assimetria, e a literatura é esse fenômeno de povoamento que é a maior possibilidade de respeito ao mistério. Quanto mais distanciamento, mais proximidade com a compreensão que o respeito ao mistério e à diferença só pode ser a manutenção de sua incompreensão. A compilação de minhas notas são os caminhos desse processo, e é sempre difícil começar o que não tem fim. Todo fim da escritura é uma exigência que a destrói, que a faz deixar de ser escritura e, assim, a faz continuar nunca tendo fim. Por isso toda escritura que conhecemos não é mais escritura, só deixou rastros rasos ou os indícios de que continua infinita. Minha movimentação da pesquisa para a escritura e vice-versa se realiza no mesmo espaço, pois a escritura também é sua pesquisa, a pesquisa de sua infinitude sempre destruída para poder se reafirmar.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Esses medos e ansiedades são comuns e, por assim o serem, a presença deles é quase inexpugnável. Não me envolvo com projetos tão longos, prefiro reforçar o sonho de infinitude da escritura logo, destruindo-a em breve, calando-a mais rapidamente e fazendo, assim, ressoar infinitamente. E isso até pode parecer a ansiedade filosoficamente performada. Performar é um modo de lidar. Com o medo de não corresponder às expectativas lido tentando não ter expectativas, não ter um alvo, um objetivo, um direcionamento pré-traçado, me deixando envolver pelos processos dessubjetivadores (povoados, hospitaleiros) e pela infinitude da escritura, que sempre logo termina para continuar, sem depender de nós, ou dependendo, no máximo, de todos nós, mas não de cada um de nós. Com a procrastinação não se lida exatamente, mas para ela se tem de exigir resposta pegando-a de surpresa. Surpreender a procrastinação é o único modo de lidar com ela. Hoje há dois grandes bloqueadores do processo criativo no seu sentido mais quantitativo: o trabalho, que nunca deixou de se sustentar pelo mais-valor e por estratégias cada vez mais sofisticadas de exploração econômica do corpo e da mente, e as plataformas de streaming.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Alguns eu reviso diversas vezes e outros nem tanto. Geralmente reviso bastante. Procuro mostrá-los para membros da família que aceitam leitura, para um ou outro amigo ou conhecido e exibi-los nas telas de redes sociais e de blogs, espaços que permitem constante modificação e diálogo. Mas cada vez menos mostro para personalidades do meio, pois isso exige mais disposição, para a qual raramente me entrego.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Às vezes inicio o texto no notebook e às vezes na folha de papel. Escrevo mais poemas e geralmente os inicio na folha de papel. Creio que os consigo visualizar melhor e tinha uma sensação mais consistente de controle e afetividade quando escrevia um poema à mão. Uma sensação que vem, gradativamente, esmorecendo. No momento, vivo uma desterritorializada sensação de descontrole em qualquer situação e uma reterritorializada sensação de novo controle no meio digital. Só não posso ser “cooptado pelo dispositivo”, nas palavras de Giorgio Agamben.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Os hábitos que mais cultivo são o da leitura e o do contato com a arte. Mas a criatividade também está relacionada à falta momentânea de hábitos. Após um acúmulo de informações e experiências intelectuais, a dispersão e o ato de ceder são postos de investigação desorganizada de brechas, frestas e fissuras pelas quais podemos espiar experiências inesperadas que distanciam a criação da produção e atingem um nível mais autêntico, que muitas vezes a densidade ou acúmulo informacional obsedante não deixa ver, apesar de um processo cumulativo ser importante. Minhas ideias vêm principalmente de uma ideia, qual seja a de que existem demandas simbólicas de um animal ritualizado chamado de humano. Além dessas necessidades simbólicas, também tenho a ideia da necessidade orgânica mais instintiva e mais estetizada, que é a das sensações. A escritura literária, principalmente o desregramento poético (ainda que o poema seja o mais composicionalmente organizado possível) atende a essa necessidade de sentir concretamente, na pele, mesmo visceralmente, todos os sentidos, juntamente com o sonho de se criar outros sentidos somente para serem sentidos. O poema é o suporte cultural que concretiza por meio do sonho e mesmo de grandes abstrações as experiências sensoriais mais sofisticadas, mais rudes e mais ancestrais, desde um jogo intelectual e sensorial baudelairiano advindo da cosmovisão correspondente e seus recursos sinestésicos até o uivo mais animalesco, no meio das florestas ou no meio das cidades.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou no meu processo foi o fato de ter mais calma no sentido de não criar grandes expectativas ao entender que a escritura não é (ou é) de ninguém, é insubordinável, independente de nós, e que a linguagem é ainda outra, mais além ou mais aquém, mais, ou menos, é a própria incomunicabilidade que se diferencia da escritura, mas que só pode se realizar por meio e através dela. Deixei de criar grandes expectativas por me dessubjetivar, aceitar a escritura como é e sonhar com a linguagem. Talvez não haja maior expectativa do que vivenciar tais utopias, mas as vivencio enquanto déficit de expectativa ao invés de sua acentuação. O que diria para mim mesmo se pudesse voltar à escritura de meus primeiros textos é que deveria desistir. Desistir, aqui, seria uma forma sintética, meio infantil (comecei a escrever na infância mesmo) e até meio humorada de pedir para aceitar a escritura como ela é de se dessubjetivar, não como esconderijo do eu, que continuaria um Narciso recalcado, mas como revelação da “verdade” do eu, que é sempre outro, outros, povos, povoados, povoamentos. Desista mais, desista melhor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não há nenhum projeto que queira fazer e que ainda não tenha iniciado. Meus projetos são sempre os de escrever mais poemas, ou principalmente poemas, mas nem sei se são realmente projetos. São perspectivas de futuro que me garantem mais ou menos que continuarei escrevendo poemas. O livro que eu gostaria de ler e que ainda não existe é um de tradução dos melhores poemas de alguns autores de todos os países.