Carla Kinzo é poeta, dramaturga e doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Sou bastante lenta de manhã, demoro a acordar, não costumo comer. Se estou em casa, tomo café preto, leio. Só depois passo à escrita e então começo a ter fome.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Acho que trabalho melhor à tarde e à noite. Não tenho um ritual de preparação para escrever, apenas me sento diante do computador – posso ficar horas na mesma posição. E ando sempre com cadernos na bolsa (tenho vários, uso todos ao mesmo tempo).
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo todos os dias, mesmo se na rua (como disse, os cadernos me ajudam). E há dias em que escrevo mais. Se tenho prazo, se fico encalacrada em algo, obcecada, sou mesmo capaz de me esquecer e ficar por muito tempo ruminando diante do computador.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Pesquiso bastante, acho das coisas que me dá mais prazer em começar algo novo. E sigo pesquisando mesmo depois de iniciado o texto; deixo que esse processo rasgue a escrita se preciso, mesmo depois de ter esboçado um plano – eles são fugidios também, os planos. Gosto de traçá-los, mas nem sempre os sigo à risca. Tento observar a ansiedade em usar a pesquisa, quero dizer, tento não temer o que resta, o que não figura no texto. Porque muita coisa fica à margem, invisível.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Insistindo, escrevendo, produzindo mesmo que pouco; uma nota, uma imagem, um verso, não sei. Isso me salva da procrastinação, da ansiedade em relação a trabalhos longos. Em relação à expectativa, isso é mais capcioso. Não sei se sei lidar com expectativas, acho que não – mas não deixo que elas me impeçam de seguir escrevendo.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes, sempre. Enquanto escrevo, depois que escrevo; reviso muitas vezes, leio em voz alta para saber da dicção do texto, corto. E tenho tido cada vez mais vontade de mostrar o que escrevo para outras pessoas. Fiz isso com meu último livro de poemas (ainda inédito). Mostrei-o a pessoas em que confio e que realmente fizeram leituras preciosas. Quando escrevo para o teatro, é mais fácil esse retorno; ou melhor, ele é fundamental. Pelo menos para mim – mesmo se o texto não for escrito a partir da sala de ensaio. Ouvir dos atores, ouvi-los lendo, pode transformar o trabalho.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador, menos os poemas. Os poemas escrevo à mão, sempre. Mas os textos de teatro, os contos, os textos acadêmicos, enfim, escrevo no computador. Ele facilita os cortes, as idas e vindas, os saltos. No caso dos poemas, é diferente. Preciso ver o que fica por baixo da palavra riscada, substituída; as antigas cesuras. Gosto de ver o palimpsesto se formando.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Do que leio, dos filmes, do que vejo na rua, de uma palavra estranha – tudo isso vou anotando. Sempre tive essa vontade de registrar. De fazer diários, anotações, os muitos cadernos são um hábito antigo mesmo. Às vezes esqueço por que anotei uma coisa e ela acaba gerando (assim, sem raiz), algo novo.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que se antes eu tomava nota das coisas apenas porque gostava do hábito de escrever a esmo, ou para não me esquecer de alguma cena, hoje faço isso com um pouco mais de consciência de que posso voltar a esse material. Posso reler essas anotações, usá-las eventualmente. E acho que tenho escrito mais e, principalmente, cortado mais. Penso que tenho dado mais tempo para que cada coisa escrita fique na gaveta, um pouco esquecida. Sobre minha tese: estou no meio dessa escrita! Do doído e longo processo de escrevê-la. Certamente terei muitas coisas a dizer a mim mesma quando esse tempo passar… Mas se tivesse que voltar a outros textos, diria a mim mesma para deixá-los mais tempo à sombra.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria de escrever um texto para o teatro, a quatro mãos, com o dramaturgo Marcos Gomes, que partisse da poeta Anna Akhmátova – e nessa trama tentar, ensaisticamente, digamos, observando essa distância, relacionar sua vida e obra com nosso país de agora. Esse é um projeto que existe, mas que ainda não começou; espero que comece logo. Estamos pesquisando. Dos livros, puxa. Há inúmeros (inúmeros!) que quero ler e que existem. Como ainda penso neles, não sei se há um que não exista e que queira ler.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Depende. Satélite, meu último livro de poemas, foi todo planejado em princípio. A escrita do livro partiria de cartas trocadas com dez pessoas, nas quais falávamos sobre nossos ancestrais, sobre fragmentos de histórias daqueles que vieram antes de nós. Tive um ProAC para desenvolvê-lo e, felizmente, quando recebi o prêmio, não tive que publicá-lo obrigatoriamente. Pude retrabalhar o livro ao longo de três ou quatro anos. Foi quando me dei conta de que traía aquela premissa; não era possível olhar diretamente para as histórias que haviam chegado até mim. Talvez de viés. Fiquei muito tempo orbitando aquelas cartas – e o livro se modificou. Precisou ser renomeado também. Nesse tempo, tive um outro prêmio para publicá-lo.
Mas em geral, sim, gosto de pensar em projetos para escrever. A verdade, no entanto, é que ao longo do processo acho que vou me distanciando do plano inicial.
Esses lugares de partida e chegada se tocam de alguma forma, não sei. Mesmo se o percurso for longo. Por isso, acho que a primeira e a última frase são igualmente desafiadoras. Partir de um lugar que pode ser abandonado, chegar a um lugar que não é necessariamente um porto, um fim. Não sei dizer se a primeira ou a última frase é a mais difícil. Talvez cada livro, cada projeto apresente um desafio diferente para esses lugares.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Escrevo um pouco todos os dias e tenho quase sempre vários projetos que acontecem ao mesmo tempo. E um alimenta o outro, sempre. É um pouco caótico, mas funciona. Não teria como dar conta dos textos, nesse cenário, se não escrevesse sempre, um pouco todos os dias – mas faço isso sem método. Quero dizer, sem um tempo determinado. Posso ficar muito tempo diante do computador, se puder. Ou poucas horas, entre outras tarefas. Mas a constância é diária.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Ler. Me deparar com as histórias das pessoas, o modo como elas se lembram de suas histórias, como as recontam. Pensar a escrita acontecendo “entre lugares”, entre linguagens. Mas principalmente ler.
Não sei se me lembro desse momento. Mas sempre li muito; me lembro de reler muitas vezes certos livros quando criança, como Ou isto ou aquilo, da Cecília Meireles – e tentar escrever alguns versos, tentando imitar aqueles do livro, com animais como personagens, sem rima.
Fui fazer Cinema porque queria escrever, depois fui fazer Letras; acho que só tocava muito de leve essa vontade, mas ficava ao redor dela. Fiz as aulas da Noemi Jaffe por muitos anos e acho que fui encontrando uma voz ali, além de uma determinação para a escrita, de modo mais aferrado, comprometido.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Acho que precisei da troca para tatear minha voz – e tempo. Desde a época das aulas de roteiro na faculdade de Cinema, depois nas aulas de dramaturgia (fiz a formação do Sesi-British Council em 2014) e nas aulas com a Noemi, essa troca me ajudou muito. Ler os textos dos colegas, ouvir impressões sobre os meus. Como gosto de me isolar – e preciso disso –, há um equilíbrio na escuta do próprio texto pelo outro. O teatro possibilita essa experiência de modo radical. Tentar sair de mim, dos meus hábitos, do modo como costumo ordenas e usar as palavras – tudo isso é redimensionado por essas trocas. E pelo tempo, claro, o tempo que passa.
Há muitas autoras fundamentais para mim. Que certamente estão comigo (ou quero que estejam) quando escrevo. Difícil dizer uma. Vou citar algumas, para quem sempre volto: Sophia de Mello Breyner Andresen, Orides Fontela, Virgínia Woolf, Anne Carson. Além das três poetas que cito na resposta à pergunta logo abaixo.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Coração de boi, da Ana Estaregui é um livro que faz o leitor parar, observar uma vez mais o cotidiano, descobrir o que há por trás da superfície do mundo, das palavras. O livro tem 72 poemas numerados e cada um deles parece ser um daqueles blocos de gelo gigantescos que se vê ao longe. São imagens que não se deixam agarrar, como as que se formam dos caleidoscópios.
Câmera lenta, da Marília Garcia. Marília faz uma coisa com a poesia, uma torção com as imagens, algo que eu acho tão difícil de fazer e tão simples de entrar quando lemos. Há uma vivacidade naquela estrutura que ela arma, algo que acontece novamente quando lemos o livro, difícil de nomear. Fui super imprecisa na fala sobre esse livro, mas acho que ela pode ser uma provocação à leitura.
Um corpo negro, da Lubi Prates, é um livro fundamental, muito bonito. Doído como não poderia deixar de ser um livro que olha o racismo de frente, que abre espaços no mundo com o corpo machucado, com a palavra machucada, mas que insiste em seguir adiante, em renomear as coisas.