Carla Guerson é escritora, feminista, geminiana, incomodada, autora de “O som do tapa” (Patuá, 2021).

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durante a semana, meu dia começa muito no automático: já acordo na função mãe, arrumar mochilas, lancheiras, café da manhã das crianças, que estudam de manhã. Brinco que o meu dia começa quando eu ainda não acordei. Depois de tudo isso feito, preciso de um tempo para minha alma voltar para o corpo e esse é um tempo sozinha, organizando os pensamentos. Em dias corridos, quinze minutos bastam. Mas se eu tiver tempo, gasto facilmente umas duas horas nesse processo: um café passado na hora, leitura (especialmente poemas), uns rabiscos aleatórios sem compromisso de ser algo “publicável”. E aí sim me sinto apta a começar meu dia produtivo: conversar, escrever, trabalhar.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Existe um conflito entre o mundo ideal e a realidade, neste aspecto. No meu mundo ideal, no teto todo meu que eu gostaria de ter (ou talvez mais que um teto, um tempo todo meu) eu teria toda uma rotina de preparação para a escrita. Leria antes, colocaria uma música para entrar no clima, talvez até uns óleos essenciais, uma aromaterapia. Acho chiquérrimo. Já fiz algumas vezes. Mas eu estaria mentindo aqui se dissesse que é esse meu ritual. Meu ritual é basicamente de estrangulamento. Preciso estrangular minha rotina, achar uns espaços, intervalos, madrugadas insones, feriados enforcados, para encaixar a escrita. Ela entra ali no espaço da impossibilidade e por isso acho que a escrita para mim fica sempre no lugar do desejo, do querer. Talvez por isso seja tão gostoso, um prazer proibido, uma subversão.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Eu escrevo praticamente todos os dias, mas não tenho rotina. Sou de fases, como uma boa geminiana. Tenho períodos de muita criatividade e períodos de inércia. Não tenho disciplina nenhuma e não conseguiria trabalhar com meta diária de escrita. Mas, em regra, sou compulsiva. Alterno períodos de leitura compulsiva com outros de escrita compulsiva. Quando estou envolvida em um projeto específico (como um livro), só penso naquilo. Todas as coisas me lembram os meus personagens: uma música, uma pessoa na rua, uma comida. Depois que termino o projeto dou uma descansada até aparecerem outros personagens para me fazerem companhia.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Nunca é difícil começar, sempre é difícil terminar. Sou uma começadora profissional, tenho mil inícios de romances, contos inacabados, esboços de poesia. Não faço pesquisa prévia, a pesquisa vem no “durante”. A história surge enquanto escrevo, pesquiso, paro, continuo escrevendo, tudo misturado. Quando, enfim, termino esse jorro, passo para a parte de revisão e aí sim é um processo lento e que tende a nunca terminar. Acho que nessa hora o meu ascendente em virgem dá notícias e fico super metódica, sempre acho que tem algo a melhorar e que poderia modificar. Costumo ler e reler muito até desistir e entregar para a publicação (geralmente, quando o prazo estoura).
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nossa, que pergunta difícil. Acho que eu não lido, eu finjo que isso tudo não está ali. Rola muita terapia, também, faço análise há 10 anos. A terapia não me ajuda diretamente com isso, mas acho que foi no processo terapêutico que aprendi a reconhecer e aceitar meus ciclos, sou uma pessoa cíclica (arrisco dizer que a maioria das mulheres são). Então quando um desses momentos de ansiedade e medo surgem eu costumo acolher e aceitar que esta é uma fase e que vai passar. E passa.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso muitas e muitas vezes. O som do tapa, por exemplo, eu li cerca de cinquenta vezes depois de pronto. Tinha pavor de que ele fosse publicado com um erro grave, cheguei a sonhar com isso. Li tanto que sei a maioria dos contos de cor. Mostro meus textos originais para muitas pessoas, todas que quiserem e aceitarem. Amigos, parentes, colegas, todo mundo ajuda. Eu devo ser a escritora que mais tem leitores beta do mundo, rs…No romance que estou atualmente trabalhando, além das leitoras betas eu contratei também leituras críticas profissionais que me ajudaram bastante. Foi um processo novo, que eu ainda não tinha passado, mas que valorizei muito, acho que agrega muito à obra.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Gosto da escrita à mão para rascunho, ou num processo catártico. Para esboçar umas ideias, para “brincar” com as palavras. Mas escrever, escrever mesmo, é no computador. Me relaciono muito bem com a tecnologia, me considero “espertinha digital”. Uso muito o drive, mexo no canva, tento fazer uns vídeos, me viro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o principal hábito que eu cultivo é me relacionar muito com as pessoas. Sou uma viciada em relacionamentos, quero ser amiga de todo mundo. Gosto de ouvir histórias, causos, mentiras, sonhos, fantasias. Embora goste muito de conversar e falar, também sou boa ouvinte e nisso vou colhendo material para os meus personagens. Sou observadora, embora não tenha aquele perfil caladão de quem fica só observando, minha observação é ativa, eu observo e interajo ao mesmo tempo. E, claro, a leitura. Muitas ideias e referências para a escrita surgem a partir da leitura e sou especialmente inspirada pela leitura de poesia, aguça bastante a minha criatividade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o mais mudou foi a entrega. Eu escrevia com medo, com incerteza. Se pensava em publicar, tirava muito do que estava ali, tinha vergonha. Hoje eu sou muito mais entregue ao processo, estou completamente envolvida e devotada ao processo de escrita.
Se eu pudesse dizer algo à Carla de treze anos que queria ser escritora seria: se joga.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho vários inícios de romance engavetados, quero terminar de escrever todos eles nos próximos 50 anos. Vai dar certo. Também tenho um livro de poesias não publicado, estou aguardando o momento certo, ainda sou meio reticente com minha face poética. Por fim, ainda tenho a pretensão de escrever infanto juvenil, gosto muito e pesquiso bastante nesta área. Querer é fácil, né? Eu quero tudo.
Não sei que livro gostaria de ler e não existe, pois tenho vários livros que existem e eu gostaria de ler, uma lista infinita que só aumenta. Sorte que ainda tenho muita vida pela frente, pretendo morrer apenas com cem anos, mas sei que mesmo lá não terei lido e escrito tudo o que eu gostaria.
* Entrevista publicada em 10 de julho de 2022.