Carla de Castro Gomes é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
No momento, minha rotina matinal se resume a tomar café da manhã. Isso quando eu acordo de manhã. Dependendo da minha agenda, eu posso trocar a noite pelo dia, o que acontece com frequência, em especial quando estou dedicada exclusivamente à escrita, como foi o caso nos meses intensivos de confecção da tese. Quando escrevi esse trabalho, eu ia dormir de manhã e acordava de tarde, e isso virou uma rotina. No início eu me lamentava por viver num fuso-horário incompatível com o da maioria das pessoas (descobri que isso é uma transgressão social!), mas depois eu finalmente aceitava e tudo funcionava bem. Conjugar a escrita com outras atividades e trabalhos me ajuda a manter horários e rotinas mais saudáveis e sociáveis. Por outro lado, me dedicar somente à escrita, embora me transforme num animal noturno e traga alguns incômodos, é também um privilégio – não poderia fazer isso se tivesse que cuidar de alguém ou se não tivesse financiamento público de pesquisa. Fico sempre idealizando uma rotina mais saudável, despertando cedo pela manhã todos os dias, praticando exercícios, indo mais ao cinema e à praia, mas isso tem sido algo difícil de manter nos últimos anos. Nas fases em que eu me exercitei, eu realmente tinha energia extra e menos dores de coluna. Ainda tenho esperanças de retomar esse projeto, quem sabe um dia…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Pela manhã eu sou realmente uma negação, cochilo em cima dos livros, não consigo me concentrar. Uso essa parte do dia pra fazer tarefas domésticas, resolver coisas na rua, gerenciar e-mails. De tarde, de noite e de madrugada funciono muito melhor. Meus rituais geralmente envolvem satisfazer meu ascendente em Virgem: arrumo a mesa, o quarto, lavo a louça, pago as contas. Primeiro achava que isso era procrastinação, depois entendi que é procrastinação eficaz – estou preparando meu corpo enquanto resolvo coisas úteis –, então tudo bem. Depois de uma jornada de trabalho, gosto de ler literatura ou ver séries e filmes pra me distrair e dormir bem.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo em períodos concentrados, regulados pela pressão das demandas e dos prazos, o que torna a coisa mais angustiante. Em geral, não tenho uma meta diária, escrevo até me cansar. Mas às vezes estabeleço metas do tipo “acabar esta seção hoje”. E quando acabo, dou o dia por encerrado e me presenteio o resto do dia de folga. Parece bobo, mas essas pequenas recompensas pela meta cumprida me fazem valorizar meu esforço e têm o incrível efeito de renovar o fôlego na rotina de escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Como socióloga, eu passo muito tempo lendo e produzindo dados (etnografia, entrevistas, pesquisas na internet). Depois, tem um momento de escrever produtos parciais, que são essenciais para o texto final. Eu tento me comprometer a produzir textos menores regularmente: resumos e papers para congressos, seminários e grupos de estudo. Esses textos são muito valiosos, pois serão lidos por outras pesquisadoras e receberão feedbacks que continuarão alimentando minha escrita. Mas, embora importantes, esses textos são, de alguma maneira, mais fáceis de escrever, porque como não os imagino como “produtos finais”, tenho menos medos e travas e me permito ser um pouco menos perfeccionista. Essas metas e compromissos intermediários são artifícios bastante úteis que eu crio para mim mesma, para me obrigar a escrever, já que não tenho o talento da escrita por livre e espontânea vontade, sem pressão externa. É desses textos que eu parto para escrever artigos, monografias e projetos. Eles me dão a sensação reconfortante de não estar começando sempre do zero. Mesmo assim, entre acabar esses textos menores e começar os maiores, eu levo um tempo emperrada. É como se eu tivesse tomando coragem pra começar. É um tempo de angústia, mas não de todo inútil, pois percebo que estou também maturando ideias. Depois que finalmente começo, tudo fica mais fácil, eu percebo meu avanço diário, as ideias vão tomando forma enquanto escrevo e eu sempre me pergunto: “por que diabos não comecei antes?”
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu já aceitei que sempre vai ter procrastinação. Tento favorecer as formas mais úteis, como as virginianas que citei acima, mas redes sociais são inevitáveis pra mim, especialmente nos períodos de produção mais baixa. Quando eu finalmente engreno num ritmo mais intenso de escrita, eu as uso menos, esqueço um pouco delas. O medo de não corresponder às expectativas é muito comum na academia, onde ninguém revela suas deficiências e dificuldades. Esse medo certamente me impede de escrever mais, porque gera um nível de auto-cobrança muito alto. Acho que esse é um problema ainda mais comum entre as mulheres, de quem se espera muitas provas de competência no meio intelectual e que precisam lidar não só com o medo de fracassar como também (ainda, infelizmente) com o medo e as cobranças de serem bem-sucedidas. Gosto de acreditar que o acúmulo de experiência está lentamente me dando mais coragem e auto-confiança, mas esse não é um processo linear, claro. Os projetos de longo prazo serão sempre motivo de ansiedade pra mim, acho. Pra me apaziguar um pouco, tento repetir pra mim mesma uma coisa meio óbvia que a ansiedade, no entanto, nubla: não há atalhos. O mais importante é o processo mesmo de trabalho cotidiano, de artesanato da pesquisa e da escrita, palavra a palavra, ideia a ideia. O processo em si é o “resultado final”. Parece coisa de auto-ajuda e nem sempre é suficiente pra aplacar a angústia da escrita, mas é a esse pensamento que recorro com frequência. Também às vezes é útil, se você não se exercita regularmente como eu, largar tudo e ir dar uma caminhada. As coisas parecem voltar ao seu tamanho normal depois que você sai do seu casulo-tela e vai dar uma voltinha ali na esquina, na praia ou no barzinho com as amigas.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu sofro da doença do perfeccionismo, escrevo muito devagar, reviso meus textos incontáveis vezes, é um inferno. Reescrevo as frases muitas vezes, mudo sempre os parágrafos de lugar, toda hora encontro novos jeitos de me expressar que me parecem melhores que os anteriores. Que bom que há prazos e cansaço, porque limitam o tempo e me obrigam a encerrar o trabalho. Sempre procuro mostrar meus textos a amigas e professoras, que trazem contribuições importantes, e tento fazer o mesmo por elas, com prazer. Há muita falta de tempo, nem sempre as pessoas podem se dedicar a ler as nossas coisas, mas pra mim essa troca é um dos momentos mais importantes na produção de um texto. É quando ele sai do claustro da nossa cabeça e vai receber um pouco de oxigênio de outras.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu uso um pouco de tudo. Anoto ideias e esquemas tanto em cadernos como no computador. Tento escrever em um caderno de cada vez, pra não espalhar demais as anotações e acabar perdendo-as. No computador, acabando criando dois ou três arquivos de notas, em que sucessivamente testo e abandono diferentes ideias e estruturas de texto, até finalmente “me mudar” pro arquivo definitivo, que é o que me parece melhor e mais robusto. É como se esses arquivos-teste fossem aos poucos me colocando no ritmo de escrita. Durante toda a escrita no computador, eu sigo fazendo notas no caderno. De tempo em tempos, eu consulto o caderno para decidir quais notas serão ou não incorporadas ao texto no computador. Também uso o bloco de notas e o gravador de voz no celular, para registrar ideias quando estou na rua ou na cama. Vários desses registros acabam esquecidos e nunca chegam a ser úteis, mas acredito que eles têm outras eficácias, como o exercício de expressar uma ideia ou a chance de “se livrar” de uma quando se está tentando dormir. É divertido encontrá-los depois de um tempo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Na minha experiência, a criatividade é resultado de bastante esforço. Quanto mais eu mergulho, mais ideias me aparecem. Nem todas são boas, claro. Enquanto mergulho, fico bastante suscetível à literatura, filmes, exposições e etnografias, que podem ser ótimas fontes de novas ideias. Por exemplo, na minha tese, que envolveu uma longa e minuciosa etnografia sobre relações entre feministas, eu precisei encontrar formas de contar que não fossem repetitivas e que preservassem a identidade das pessoas. Recorri ao artifício de confeccionar cenas e personagens, algo que vi em outras etnografias, na literatura e nos filmes.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que com o tempo a minha escrita se tornou mais simples, o que não significa menos trabalhosa, pelo contrário. Quando raramente volto a textos antigos, acho-os muito prolixos, cheio de palavras empoladas e frases enormes, chatíssimos. Isso não faz mais sentido pra mim hoje, e quando leio um texto assim, fico meio irritada. Por isso, escrevo e reescrevo o texto até que fique o mais simples possível. Quando chego a uma formulação que me parece simples, percebo que simultaneamente as ideias ficaram mais claras pra mim mesma, o que é incrível! É como se a escrita depurasse as ideias. Claro, há muitos jargões em qualquer campo científico e nem sempre é possível evitá-los, mas eu procuro não exagerar. Felicidade é quando amigas que não são acadêmicas podem ler meus textos, compreendê-los e talvez até gostar deles.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de escrever diariamente. Não apenas textos sociológicos, mas qualquer coisa, uma ideia, uma frase, uma cena, até mesmo um desenho. Faço isso apenas de vez em quando, e é tão bom! Acho que isso significaria uma mudança na relação com a escrita, perder o medo dela, sofrer menos, deixá-la fluir – boa ou má, não importa. Sobre livros que ainda não existem… acho que eles existem, só não vou ter tempo de lê-los todos, infelizmente. Talvez, inspirada pela tetralogia napolitana de Elena Ferrante que li recentemente, gostaria de ler um romance ou uma ficção científica ambientada no Rio de Janeiro, uma estória entrelaçada com as estórias dessa cidade cruel e fantástica. Se já existir uma, me avisem por favor.