Carla Bessa é tradutora literária e escritora, autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia bem cedo, pois tenho filho e um emprego fixo numa repartição. Também porque gosto de acordar cedo. Ainda na cama, tento verbalizar para mim mesma a primeira coisa que me vem à cabeça. A lembrança de um sonho ou um pensamento espontâneo. Se acho que pode dar pano para manga, anoto. Esses primeiros minutos são preciosos, não é raro eu ter ali uma ideia para um conto. Depois disso, e antes de falar com alguém, preciso de banho, café e uns minutos de silêncio e yoga. Então, mando o guri para a escola e vou a pé ou de bicicleta para o trabalho.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
A melhor hora para a escrita seria pela manhã, mas isso é impossível por conta do emprego. Então, ou acordo mais cedo ainda para escrever antes do trabalho, ou – o que é mais frequente – faço algumas anotações para detalhar mais tarde. Não tenho um ritual fixo, mas costumo ler ou pesquisar algo relativo ao ambiente da história que estou escrevendo, antes de começar.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Como tradutora, tenho que ter uma meta diária, senão, não dou conta do prazo de entrega. Como escritora tenho preferido escrever sem meta, mas todos os dias um pouco. No entanto, isso depende do livro e da fase do trabalho. Em geral, só quando tenho um esboço já pronto, tento tirar um tempo livre de outros compromissos para trabalhar em blocos concentrados.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrevo intuitivamente umas primeiras frases (ou transcrevo algo que pesquei na rua) e, se elas me agradam, parto em busca da história que poderia nascer delas. Só então faço pesquisa. Também trabalho frequentemente com entrevistas gravadas, que depois transformo em ficção. Em seguida, as coisas acontecem meio paralelamente. Vou escrevendo e pesquisando e escrevendo. Não tenho muito método até agora. Gostaria de ter, mas acho que minha criação tende a ser mais associativa do que metódica. No meu primeiro livro de contos, o Aí eu fiquei sem esse filho, todas as histórias foram escritas com base em entrevistas e matérias de jornais.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Estou escrevendo o meu primeiro romance e tendo esses problemas de trava pela primeira vez. Está sendo bem difícil encontrar o fôlego para um projeto tão longo. Com os contos – tenho dois livros, um publicado no ano passado e outro que acabo de terminar – foi diferente. Sou muito impaciente e gosto de concluir coisas e recomeçar do zero. Isso é algo que me dá grande prazer, uma injeção de adrenalina. Também prefiro uma linguagem enxuta, densa e elíptica, o que fica cansativo numa narrativa mais longa. Então, estou tateando. A minha solução até agora tem sido a disciplina e a natação. Me obrigo a escrever, mesmo que seja para jogar tudo fora no dia seguinte. E quando não consigo sair do lugar, vou nadar para esvaziar a cabeça.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reviso inúmeras vezes, mas sei que um livro nunca fica pronto. É sempre só uma espécie de cessar-fogo. Se você for ler mais tarde, terá necessidade de melhorar e reescrever. No entanto, acho que isso é um bom sinal, de amadurecimento e maiores exigências pessoais em relação à escrita.
Quando comecei a escrever, sentia muita necessidade de dividir com as pessoas, ouvir um feedback. Participei de oficinas de escrita, o que me ajudou muito. Agora me sinto mais segura, mas, ainda assim, quando termino um projeto, sempre dou para um escritor de minha confiança fazer uma leitura crítica. Acho importante porque a gente perde a distância em relação aos próprios textos.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Numa das minhas recentes viagens, o meu computador pifou e eu tentei escrever à mão. Não deu. Primeiro porque minha letra é ilegível para mim mesma. Segundo que, via de regra, como meus contos não são lineares, eu faço muito montagem já durante o esboço, mudo constantemente a ordem dos acontecimentos e parágrafos, pesquiso, troco palavras, não consigo escrever sem um dicionário de sinônimos. É tudo muito inquieto. Então, preciso não só do computador, mas de um bom acesso à internet. Pelo menos até agora tem sido assim, mas vai que muda. A gente nunca sabe como será o processo no próximo livro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Em geral, as minhas ideias vêm da observação do mundo ao meu redor. Converso muito com as pessoas na rua, no ônibus, no supermercado. Leio jornais. Tiro pouco material das minhas próprias vivências. Não me interessa falar de mim. Pelo menos não diretamente. O meu primeiro livro, como disse acima, foi escrito a partir de entrevistas e artigos de jornais. Foram contos baseados em histórias reais, que transformei em ficção. Já o meu segundo livro, que acabo de terminar, saiu todo da minha cabeça, mas também seguiu o molde da observação. Como disse a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015: há um monte de romances andando aí pelas ruas.
Outra fonte de inspiração é a leitura. Leio muito os autores contemporâneos, sobretudo os brasileiros, e escrevo resenhas. A resenha me ajuda a pensar o livro em profundidade.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Sinto que estou encontrando mais e mais uma voz própria, uma pulsão narrativa. Isso só veio no segundo livro. Antes, me escondia um pouco atrás da pesquisa com a oralidade e do hibridismo formal. Se eu pudesse voltar aos primeiros escritos, não mudaria necessariamente o estilo da linguagem, mas faria mais revisões e cortes. No começo a gente sempre põe coisa demais, explica demais, subestima a competência do leitor.
Tive um professor na escola de teatro (minha formação original é de atriz) que dizia que o ator iniciante (e acho que vale também para o escritor) tende a querer expressar toda a tragédia humana do personagem numa única cena, e que talvez fosse mais eficaz decalcar uma única cena da tragédia do personagem. O resto é silêncio, como disse o Hamlet.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Gostaria muito de escrever poemas, mas ainda não tenho músculos suficientes. Na poesia, cada palavra pesa uma tonelada.
Acho que gostaria de ler o livro sobre o fim da era Trump.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
No meu caso, o processo é completamente diferente, dependendo se estou escrevendo contos ou romance. Para um conto, eu começo geralmente com uma frase ou um personagem que me vem à cabeça mais ou menos intuitivamente e deixo fluir até o ponto em que uma história se esboça. Só aí é que vou pesquisar por equivalentes e fazer uma pequena escaleta.
Já no caso do romance, eu começo com um tema. E o interessante é que este tema é quase sempre uma variação de algo que já tratei antes. Tem motes que inquietam a gente mais do que outros. Perseguem a gente. Tenho percebido esse fenômeno em vários escritores que admiro. Se você olhar com atenção, verá que na verdade eles escrevem uma só história, variando-a a cada livro. Por exemplo, ando lendo muito a portuguesa Ana Teresa Pereira. No caso dela, independentemente dos enredos, todos os livros tratam, de alguma forma, da questão do duplo. Às vezes até com histórias tão semelhantes que você se pergunta se já não leu aquele determinado livro. E, pelo menos para mim, isso não torna a obra menos interessante, pelo contrário, o caráter serial na arte me fascina porque faz a gente olhar de várias perspectivas para uma mesma imagem e reconhecer nela as pequenas diferenças, as ambivalências, que não havia percebido antes. O olhar fica cada vez mais afiado, vai mais fundo, e, com ele, a percepção.
Quanto à segunda pergunta, sem dúvida alguma, a última frase é muito mais difícil para mim. A primeira, quase sempre me vem assim “do nada”, mas também nunca aconteceu de ela manter seu posto até a versão final do livro. Eu sempre acabo mudando o começo depois que escrevo o fim. Sendo assim, a última frase a ser escrita acaba sendo a primeira, o que torna impossível responder à sua pergunta!
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como também sou tradutora, costumo trabalhar sempre num projeto de tradução e num de escrita própria. Como agora pedi demissão do meu emprego fixo, fica mais fácil, e eu geralmente trabalho pela manhã na minha escrita e à tarde na tradução. Mas, dependendo da fase, faço também blocos de vários dias de trabalho em uma coisa ou em outra. Mas mais do que dois projetos criativos simultâneos, eu não dou conta.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Eu tomei coragem para as minhas próprias histórias bem tarde, em 2015, quando já era tradutora. De início, eu quis escrever para traduzir melhor, para diferenciar com mais exatidão as nuances da linguagem, compreender as escolhas dos/das autores/autoras, o processo de escrita em si. Aí, tomei gosto.
Escrever, para mim, é uma maneira de pensar alto. Uma forma de reflexão, de tentar entender o mundo, o caos lá fora e os fantasmas dentro de mim. A filósofa alemã Hanah Arendt disse certa vez: “a escrita é parte do processo de compreensão”. Para mim é a mesma coisa, ainda que eu não escreva textos científicos, mas sim, ficção.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
Claro que, sobretudo no começo, a gente sempre sofre uma grande influência dos autores e autoras que admira, a ponto de imitar, ocorra isso de forma consciente ou inconsciente. Eu acho até que esse é um comportamento natural e muito saudável. Veja: as crianças também aprendem imitando os adultos, toda a nossa formação cultural vem da reprodução de determinados padrões ou de um cânone social e comportamental. A imitação é uma forma de aprendizagem observacional. Eu, especialmente, como autodidata, aprendo muito da observação, o que também se deve à minha formação de atriz (eu estudei teatro).
Então, no começo, eu também imitava os meus autores preferidos, ou tentava imitar, sobretudo o Luiz Ruffato, cuja escrita foi uma espécie de revelação para mim, aquela polifonia dele, a narrativa multifacetada. Foi como se eu entendesse, ah, também é possível escrever assim! Mas imitá-lo é obviamente impossível, e não deu certo, não funcionou. Então eu passei a ler estilos diversos, até meio opostos e também os que não tinham nada a ver com o que eu gosto. Daí, me aprofundando nessas linguagens as mais diversas possíveis, uma voz pessoal começou a surgir, eu fui tateando e de vez em quando sentia um ritmo próprio que me carregava. A famosa pulsão narrativa, da qual fala o Raimundo Carrero.
Leio autores contemporâneos, muitos brasileiros. Além do Ruffato, alguns dos que me influenciaram foram a Ana Paula Maia, o Sérgio Sant’Anna, o André Sant’Anna, Carol Rodrigues, Ana Teresa Pereira, como já mencionei acima, Guimarães Rosa, Heiner Müller, Max Frisch e Friedrich Hölderlin.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato, pela polifonia e inventividade linguística.
“Sem vista para o mar”, de Carol Rodrigues, por sua digressão sintática muito própria e poética.
“Karen”, de Ana Teresa Pereira, pela linguagem cristalina, enredo cativante, personagem central enigmático e final surpreendente.