Camila Fernandes é escritora, tradutora, preparadora e revisora de textos, autora de “Reino das Névoas”, “Contos sombrios” e “A noite não me deixa dormir”.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Durmo tarde, faço questão de pelo menos oito horas de sono e, se acordar cedo, será de mau humor. De segunda a sexta, a coisa mais parecida com uma rotina matinal na minha vida é tomar café da manhã rápido e sair para caminhar ou cumprir tarefas na rua, como mercado, médico, correio ou um curso que esteja frequentando. Passei 2018 fazendo atividade física acompanhada duas manhãs por semana, porque o corpo de quem passa o dia sentada, digitando, uma hora pede arrego. Em geral, começo a trabalhar pouco antes do almoço e vou até tarde. A quantidade de horas que dedico a isso varia, tentando equilibrar disposição, compromissos e prazos. Depois que encerro o expediente, séries de TV, livros e alguns videogames fazem parte do momento “eu mereço”. Sábado e domingo, tudo pode acontecer.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Sou bicho vespertino. Em quase tudo na vida, produzo mais à tarde e no começo da noite. Geralmente, são mais horas sem interrupções. Não tenho um ritual inescapável para escrever, mas duas medidas que me ajudam a entrar no fluxo são tomar banho e ouvir música instrumental. O banho parece apoiar a desfragmentação do disco interno, por assim dizer, além de refrescar o corpo e criar um separador entre as tarefas físicas que encerrei e as mentais que estou para começar. A música bloqueia ruídos externos e facilita a concentração. Infelizmente, não consigo trabalhar num texto e ao mesmo tempo ouvir música com letra bem definida, por isso minhas bandas favoritas não entram na seleção. O que mais ouço são trilhas sonoras de videogames, em que predomina o instrumental: The Witcher, Assassin’s Creed, Ori and The Blind Forest… Também aceito as sugestões do YouTube e acabo esbarrando em boas surpresas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho dificuldade para seguir diretrizes como “escreva pelo menos meia hora por dia”, apesar de achar que é um bom conselho, porque demoro muito a entrar no fluxo. Faço o máximo para reservar períodos concentrados para isso, como um dia ou tarde inteira. Minha única meta de escrita é escrever. Gosto de anotar a quantidade de horas trabalhadas e palavras produzidas por dia, mas é mais para ter uma noção do que fiz. Se tentar medir o progresso por esses números, desanimo. O que importa é gostar do resultado.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Copiando a metáfora de uma amiga, também escritora, a pesquisa é um labirinto no qual é delicioso e terrível se perder. Nunca sei quando parar, primeiro porque gosto de pesquisar e segundo porque nunca acho que já sei o bastante (spoiler: você nunca vai saber tudo o que há sobre um assunto, porque mais conhecimento está sendo produzido e oferecido enquanto você pesquisa o que já tem, mas em algum momento vai ter que parar de ler e começar a escrever). Quando penso que já posso passar à etapa da escrita, esbarro em detalhes como “epa, não sei em que tipo de recipiente as pessoas carregavam bebida nesse período e lugar” ou “será que essa forma de segurar a flecha no arco é universal?” (spoiler: não é). Aí interrompo a escrita e pesquiso um pouco mais. Não recomendo meu modo de fazer. Eu mesma ainda o estou ajustando de modo a aumentar a produção e diminuir a dor de cabeça. Cada autora deve testar e encontrar os métodos que mais a favoreçam.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Geralmente, as travas na escrita me aparecem quando não estou apaixonada o bastante por uma ideia a ponto de me dedicar a ela ou quando já me apaixonei e dediquei tanto que estou exaurida. Isso acontece em projetos longos, como o romance em que estou trabalhando desde 2014. Na procrastinação sou mestra. Tendo a fugir de tarefas para as quais sinta que não estou pronta. Como sei que, na maior parte das vezes, essa é uma sensação falsa e improdutiva (você nunca vai estar pronta se não começar a se aprontar), venho tentando me desafiar com perguntas do tipo: se daqui a dois anos você souber que passou este dia enrolando, e o anterior também, e o seguinte, vai se orgulhar do que (não) fez ou vai se achar uma besta? Essa impressão de que não vou corresponder, antes de tudo, às minhas próprias expectativas tem um quê de ansiedade e, acho, de arrogância também. É preciso lembrar que ninguém é irretocável, por isso não há motivo razoável para pensar que eu vou ser.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu releio e reviso até ficar zonza! Mesmo assim, muita coisa escapa. E, sim, mostro meus trabalhos a outras pessoas porque é fundamental contar com leitores críticos profissionais ou, no mínimo, amigos com bom senso crítico que possam atuar como leitores beta. São eles que vão enxergar o que escapou. Se não houver dinheiro para contratar um leitor crítico, sempre se pode montar um grupo de leitores confiáveis, escolhidos a dedo (que não vão avacalhar a obra por pirraça nem enaltecê-la por carinho), com quem se pode trocar impressões: você lê e avalia os textos deles, eles leem e avaliam os seus. Quando se faz amizade com outros escritores (ou leitores exigentes), esse grupo acaba se formando. Por exemplo, vários textos de “Contos sombrios” (Editora Dandelion, 2017) são o resultado de anos de escrita e troca com os autores com quem montei o Necrozine (zine de contos gratuito) e a coleção Necrópole (três volumes, Editora Alaúde, 2005, 2006 e 2008). Acabamos nos apelidando de Necroautores. O Necrozine, publicação gratuita e caprichada que esse grupo distribuía impressa e em PDF, foi um ótimo laboratório; acho que todos crescemos muito participando dele. Em “Reino das Névoas — contos de fadas para adultos” (Tarja Editorial, 2011), contei com opiniões de amigos e uma leitora crítica profissional.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo direto no computador. Não gosto de escrever à mão porque vou devagar e me canso depressa. No computador sou mais rápida, edito com facilidade e não gasto papel. Na adolescência, recheava cadernos e mais cadernos com anotações de todo tipo, mas naquela época eu tinha muito tempo livre e esculpia a letra. Hoje, só o faço na ausência de meio eletrônico. Tentei manter diários de viagens, prática que acho bonita e curiosa, mas acabei largando os caderninhos de lado depois de preencher só um e meio.
É preciso usar a tecnologia com inteligência. Uma vez, perdi o progresso de um dia inteiro de trabalho no conto-título de “Reino das Névoas” por causa de uma queda de energia, pois não tinha um no-break. Hoje, salvo versões e cópias de segurança de tudo o que estou escrevendo.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Não tenho um conjunto de hábitos com esse objetivo específico, mas sou curiosa e gosto de me entreter. Assim, estou sempre fomentando a inspiração quando leio livros, vejo séries de TV e documentários, visito lugares e converso com gente interessante. Uso muito a internet para pesquisar assuntos que me interessem, seja de modo recorrente ou esporádico. Acompanho ilustradores no Instagram, mantenho amizades no Facebook e tento comparecer a eventos literários e reuniões com amigos. Tudo isso é estimulante. Às vezes, um detalhe na sombra da rua ou palavras pinçadas do meio da conversa alheia são a fagulha inesperada que incendeia a imaginação. As ideias nascem da fusão de referências que é a vida diária, acompanhada de experiências mais raras e marcantes, como viagens. Também nascem de sonhos; tenho sonhos muito vívidos, alguns horríveis, alguns intrigantes demais para deixar passar. Meu primeiro conto publicado em livro, “A casa dos loucos” (“Necrópole volume I, histórias de vampiros”, Editora Alaúde, 2005), é uma trama desenvolvida a partir da atmosfera delirante de um sonho.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que o processo em si não mudou muito, a não ser pelo fato de que antes eu estava mais concentrada em escrever contos e hoje estou tentando terminar um romance. Um conto eu finalizava em poucos dias, mas qualquer romance exige mais tempo de dedicação. Eu me desenvolvi e me tornei mais cuidadosa. No começo eu me achava muito boa, e é óbvio que estava enganada. Hoje, acho que se me esforçar consigo escrever alguma coisa que preste.
Se pudesse dar um conselho à Camila do passado, diria: “pare de enrolar, o tempo vai ser cada vez mais curto; de resto, é isso aí, continue escrevendo, mas pare de tentar distribuir zine em balada: seu público está na internet e nos eventos de literatura”.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Ah! São tantos! Tenho uma planilha com os projetos que esperava tocar adiante nos últimos anos e que, obviamente, está defasada. Até pouco tempo atrás eu só escrevia contos, formato que permite experimentar estilos diferentes e trabalhar histórias breves. Ainda quero escrevê-los, pois é muito bom participar de coletâneas com outros autores. Mas o projeto atual e os próximos são romances. Como disse, estou há quatro anos trabalhando numa narrativa que, mesmo tecida a quatro mãos, exigiu tanto de mim, na pesquisa de vários assuntos e no desenvolvimento de um estilo que se sustente ao longo da obra, que acredito ter evoluído muito com ele e me sinto mais preparada para escrever outros romances. No ano que vem, depois que soltar essa coisa faraônica no mundo, quero escrever uma história mais simples e leve, que seja como um refresco para mim e para os leitores. Depois há um outro romance “complicadinho” na fila. E depois… Bom, as mulheres da minha família tendem a passar dos 80 anos. Espero que dê tempo de fazer pelo menos um terço do que eu quero!