Caio Augusto Leite é contista, poeta e romancista, autor dos livros de contos A repetição dos pães (2017) e Terra trêmula (2020).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
De segunda a sexta, trabalho como revisor de textos, então minha rotina matinal durante a semana é essa. Porém aproveito o tempo de deslocamento da minha casa até o trabalho para ler, mais ou menos uma hora e meia de percurso para ir e para voltar. Posso afirmar que mais de noventa por cento do que li na vida foi no transporte público, me considero um leitor em trânsito.
Já durante os finais de semana, procuro acordar cedo pra poder fazer as coisas que não deram tempo de fazer durante a semana. É uma rotina bem simples.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Bem, como trabalho durante a semana, nesses dias eu só escrevo mesmo durante o período da tarde/noite, embora sempre possa surgir no caminho uma ideia ou um verso que acabo anotando e desenvolvendo depois. Nos finais de semana posso escrever a qualquer momento do dia, então acho que não tenho um horário em que eu trabalhe melhor, a escrita é algo bem natural para mim e pode surgir realmente a qualquer momento.
Não é bem um ritual, mas prefiro escrever quando não tem ninguém olhando, pois considero o ato da escrita algo muito íntimo e travo se tiver alguém por perto. E também prefiro escrever no meu quarto, na minha cama, acho que é um lugar que já me deixa confortável para poder escrever, a grande maioria das coisas que escrevi foram ali.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
É bem difícil mensurar, mas acho que estou mais para escrever todo dia do que para escrever em períodos concentrados. Mas não existe uma meta, até porque não existe um objetivo claro com a escrita, não existem prazos, não existem cobranças. Eu escrevo quando quero. E acho muito mais prazerosa a parte da escrita do que a parte da publicação ou da leitura dos outros, acho que por isso não consigo parar de escrever e por isso não me agarro muito aos elogios e às críticas negativas, são dois momentos que logo passam e a escrita se impõe sobre eles.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A pesquisa é algo muito importante, por isso estou sempre lendo de tudo: poesia, contos, romances, livros de filosofia etc. Penso que tudo isso fica guardado dentro de mim até que surge o momento em que surge uma ideia e essa ideia nunca vem de graça, é quase sempre a união de algo que vivencio somado à experiência de leitura que interiorizei anteriormente. Então quando começo, nunca é um começo, mas já o meio do caminho, do meio pro final. O ato de escrita é quase o fim do percurso. Depois vêm as partes práticas: revisar, reescrever, publicar e ver o que acontece quando o texto chega ao outro.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Com a escrita acadêmica é sempre um momento doloroso o de travar, mas felizmente durante a minha dissertação não sofri tanto com isso. Já em relação à escrita não acadêmica, não tenho nenhum temor, pois, como disse antes, não há nenhuma cobrança. E também porque tenho poucas travas, o que não quer dizer que tudo que escreva me satisfaça, mas escrever, eu escrevo sempre.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Depende de onde vou publicá-lo. Se é no Facebook, ou outra rede social, eu reviso o suficiente para que não haja tantos erros de digitação e afins. Se for para publicar em livro eu acabo revisando muitas vezes e chega o momento que preciso aceitar que talvez não seja possível terminar de revisar, porque – como revisor – sei que um errinho aqui e outro ali sempre vai acabar passando, acho que preciso ter isso em mente, senão o livro não sai nunca. Como publico tudo no Facebook, acabo não mostrando nada exclusivamente para alguém. Só acontece quando é um livro pronto com uma reunião de textos, aí preciso de alguma opinião sim.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu só escrevo diretamente no computador. No meu caso, acho desperdício de tempo escrever à mão, pois sou muito devagar pra copiar. Mas livros eu ainda prefiro ler os de papel, não tenho ainda muita intimidade com a leitura em e-book.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Costumo ler sempre, ver filmes e quadros, ouvir músicas, acho que tudo isso é importante para criar uma teia de referências que acabam ajudando na hora de escrever, afinal nada é original, então o que importa é saber a maneira de dizer e não o quê dizer.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Acho que não mudou muita coisa, o que mudou foram as referências que acumulei e que fazem com que encontre caminhos novos para coisas que já havia escrito. Muitas vezes sinto que reescrevo certos textos, mas de um jeito melhor, mais sofisticado, talvez.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Não existe um projeto não começado, pois não projeto o que escrevo. Quando tenho uma ideia e sinto que posso dar conta dela eu escrevo, caso contrário eu simplesmente abandono, pois não me importo de não finalizar algo.
Os livros existem, o que não existem são leitores para eles, muitas vezes o que foi escrito só vai agradar depois de muito tempo. Há livros escritos hoje em dia que não me dizem nada e há livros tão antigos que são tudo para mim ou o contrário. A beleza é só um entre os muitos modos de olhar.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Vou falar sobre o processo do último livro, Terra trêmula. Primeiramente não houve um projeto, eu fui escrevendo os contos aos poucos – uns na mesma semana, outros depois de alguns meses. Depois eu fui relendo meus últimos escritos e vi que tinha uma relação que os unia (alguns acabaram excluídos no processo) e daí nasceu o livro em si. Quanto ao texto, no detalhe, eu mexo muito pouco depois que termino. Pra esse livro, por exemplo, tirando as revisões normais de erros de digitação, eu só mudei um parágrafo do conto “O bom ladrão”, que antes eu achava muito didático e me incomodou ao reler. Então eu diria que deixo fluir, até que venha essa percepção de que há um conjunto mais ou menos coeso de textos. Acho que não conseguiria fazer de outro modo, já tentei pegar um tema e escrever alguns textos, mas sempre me soava artificial demais e acabava desistindo do projeto. Acho que o começo e o final são difíceis. É difícil começar, pode-se ficar muito tempo sem ter uma ideia sequer e pode-se também ter uma ideia que parece muito promissora e acaba que o resultado não atende às expectativas. O processo todo, pra mim, é complicado.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Acho que a pergunta anterior responde a essa. Não costumo ter projetos fixos, nem metas de escrita. Então a organização do tempo é totalmente aleatória: dias que escrevo muito, dias que não escrevo nada. Agora pensando no lançamento de livros, eu prefiro me concentrar em apenas um projeto para que o maior número de pessoas possa se interessar por ele. Penso que é mais complicado se tiver mais de um livro nesse processo, já que não tenho tantos leitores e nem sempre as pessoas têm dinheiro pra comprar mais de um livro.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Acho que o inesperado da vida acaba fazendo com que eu sinta vontade de escrever. Uma alegria, uma saudade, uma indignação, coisas que surgem no meio do dia e que eu sinto que precisam ser transfiguradas num poema, num conto, pra tentar reter – de maneira imperfeita infelizmente – aquele instante. Eu trabalho, na hora da escrita, muito com o espontâneo – um verso/enredo que chega de repente quando vejo algo na rua ou me lembro de um dia vivido, quando vejo um filme, leio outros livros. Não que eu escreva inspirado, acredito que é preciso dar um olhar novo a esse sentimento, não o simples ato de contar sem mediações, mas tornar aquilo algo que se sinta não pelo sentido imediato das palavras, mas pelo conjunto de imagens, sons, estruturas que acabem “traduzindo” essa experiência real. Como um sonho.
Eu comecei a “escrever” quando tinha treze anos. Numa aula de português a professora pediu pra gente escrever um poema sobre o Dia da Água, fiz umas rimas inocentes, mas acabei gostando. Continuei escrevendo os versinhos até entrar na faculdade, quando passei a ter contato com mais livros e a entender melhor os processos de escrita. Então considero esse momento, aos treze, o momento-chave mesmo, apesar de serem poemas ruins, foi ali que senti a vontade e a necessidade que até hoje não acabou.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
As dificuldades passam desde o não ter estilo algum e escrever várias coisas que não têm nada a ver com nada, numa experimentação vazia que acaba por tornar a coisa intragável de ser lida até chegar à fase de conhecer um estilo, se apaixonar por ele e tentar imitá-lo e não ficar bom. Acho que o estilo surge quando pelo menos se encontra um ou mais estilos que sejam interessantes pra você e a partir dele começar a fazer variações, dizer algo de modo que tal escritor não diria, até que se consiga descolar-se um pouco desses estilos, ir misturando influências. Não que seja algo original, mas ainda que se perceba de onde vem o estilo, notar que não é uma tentativa de cópia, que novas possibilidades foram experimentadas: uma sintaxe diferente, uma palavra, um verbo, uma sonoridade, um desfecho pro enredo que não seria o usual. É bem difícil não perder a mão entre o soar original (e ser excessivo e ficar muito gritante a vontade de soar novo) e o ser muito influenciado (e ser um copiador preso demais ao modelo). No fim nunca se termina de criar o estilo, sempre tem coisas que vão sendo acrescentadas ou retiradas. Penso que nunca se aprende a escrever totalmente.
Bom, sem dúvidas Clarice Lispector foi a escritora que mais me influenciou nos primeiros anos de escrita. Acho que sem Água viva eu não teria continuado a escrever do jeito que escrevo. Ali eu entendi que a escrita não precisa ficar presa aos gêneros como “romance”, “conto”, “poesia”. Nesse livro, que ela classifica de “Ficção”, está contida toda a liberdade da criação e uma das frases que levo pra vida “Gênero não me pega mais”. Depois vieram Cortázar – O jogo da amarelinha, As armas secretas, Octaedro –; Jorge L. Borges – Ficções e O Aleph –; Hermann Hesse – Sidarta e O jogo das contas de vidro –; Guimarães Rosa – Primeiras estórias –; Machado de Assis – Dom Casmurro e Esaú e Jacó – etc.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector, gosto do espelhamento entre forma e conteúdo que formam um retrato da própria estrutura social brasileira, com suas injustiças e exclusões e as possibilidades de diminuir a distância entre o eu e o outro – embora difícil. Um romance com camadas que permitem que ele seja lido do ponto de vista filosófico, sociológico, psicanalítico. Talvez a grande obra de Clarice.
Esaú e Jacó – Machado de Assis, o uso desse narrador que não sabemos com certeza quem é (se Aires ou um editor) é uma lição de ficcionalização. A história deriva dos diários do Conselheiro Aires (um texto pessoal, pautado em observações reais) e se transforma nesse romance (texto público, editado). Aqui a dualidade e as tensões do Brasil da época (e do atual também, por que não?) são expostas a partir da óptica desse narrador que tenta ao máximo não se comprometer. A história da tabuleta é genial.
Os amores difíceis – Italo Calvino, coletânea de contos que trabalha de forma inusitada as dificuldades das relações humanas – às vezes cômico, às vezes trágico. Leitura que fiz esse ano e que me marcou muito pela concisão das histórias e da força que elas contêm.
De gente mais nova escolho esses três: Enclave, do Marcelo Labes; Nuvem colona, do Gustavo Matte; e Desmatéria, da Sofia Ferrés.