Bruno Nascimento de Abreu é poeta.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Bebo bastante água, tomo café e busco o sol. Mas não tenho rotina.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Escrevo melhor de manhã, principalmente depois de acordar de um sono pesado e bom. É provável que meus poemas de que mais gosto não tenham sido escritos de manhã, mas certamente fincaram raiz nalguma delas, pra brotar mais tarde. Poemas servem para acordar, mas acordar é o que se segue imediatamente ao sonho. Gosto de poemas que se parecem com sonhos que esquecemos quase completamente. Poemas que nos deixam enganchados nessa fronteira entre o sol forte e os nossos desejos mais fundos, pros quais temos que reencontrar as imagens à luz do dia.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo quase todos os dias, às vezes consigo ficar dias, não mais que uma semana, sem escrever, o que é revigorante. Quando escrevo é como se estivesse finalmente respirando debaixo d’água, e lá a quantidade muda: todos os poemas são um, aquele que estou escrevendo. Meta de escrita é não deixar de respirar ao escrever. É não precisar prender a respiração, nem, é claro, me afogar. Tem um jeito de fazer isso, mas é muito difícil. Até porque posso ser muito afobado e impaciente. Com frequência me afogo ou prendo a respiração e subo pra superfície. É péssimo.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Não tenho pesquisa, não faço notas. Escrevo os poemas quando estou inspirado. E estar inspirado para mim significa estar amando. Eu não registro muito bem quando leio sobre a descrença na inspiração, porque entendo isso como descrença no amor. Não conseguiria suportar o imenso e doloroso trabalho de desapego que é a reescrita se não estivesse amando. A inspiração é algo frequentemente muito exigente e mesmo humilhante, porque é basicamente um sinônimo para amor, e amor também significa deixar-se amar, e deixar-se amar é submeter-se a um tipo de descontrole, a uma formulação totalmente imprevisível de si mesmo. Não existe arte sem essa busca e essa entrega.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como eu – por enquanto – só escrevo poesia e não tenho nenhuma preocupação de sustento material com ela, isso fica um pouco menos difícil pra mim. Procrastinação é algo de que não sofro na poesia porque não me obrigo a nada. Gostaria até de saber abandonar mais. Lido com as travas da escrita lendo poesia que me emociona, porque é o tipo de poesia que me devolve, que me relembra do que é poesia, que desmancha minha vaidade porque é puro serviço, escuta e força. Lido com a preocupação de corresponder às expectativas mostrando meus poemas pra pessoas que me ensinaram a escrever com os poemas delas. Nesses momentos eu só fico quieto. Mesmo quando nos silenciamos estamos frequentemente concordando com nós mesmos, percebo que até mesmo quando estou sendo crítico comigo estou sendo crítico de um jeito tão previsível que é uma espécie de cúmulo da concordância. Mas quando ficamos sozinhos junto a outra pessoa, quando deixamos outra pessoa falar e nos esforçamos para escutá-la, aí sim a discordância pode acontecer. E o amor, consequentemente, também. O amor, que é uma espécie de “rabo preso” que a gente tem com a pessoa porque ela supriu um negócio que a gente não vai encontrar em outro lugar (um poema bom, ou seja, inspirado, é um poema que tem um rabo-preso com um daimon ou algo do tipo, tem uma ferida aberta de eterno espanto e agradecimento diante de uma leitura imprevisível do seu próprio coração, que você jamais faria sozinho). Pois bem, deixo a pessoa falar e percebo humilhado que continuo tentando concordar, minha mente faz um esforço enorme pra concordar com todas as críticas dela, mas tem uma hora que não dá, e daí algo completamente novo pode nascer – se eu conseguir não retrucar, que é mais uma tentativa de chegar em uma concordância, de aniquilar o mundo para apaziguar a dor da diferença. Esse método é bom porque é comum o poeta se confundir com o próprio poema e com seus leitores como se fossem o próprio fígado dele. A gente precisa então ficar forçando esse desprendimento, dói muito mas depois as coisas podem voltar a se equilibrar (a vaidade nos faz sofrer de imanência, o problema é que tudo transcende demais, sempre, a inspiração nos obriga a reconhecer isso para que ela possa durar, a transcendência dói como uma pedra, tudo é muito selvagemente misterioso). Talvez daí alguma coisa bela possa realmente vir à tona.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
É uma revisão infinita e extremamente cuidadosa, mas justamente por conta desse cuidado muita montanha vem abaixo. É fácil estragar as coisas, difícil é fazer estruturas inteiras ruírem – sem acabar esmagado, principalmente. Mostro, mas guardo muito comigo também. Acho que dar um tempo pro poema mais fresco, um tempo em que só há você e ele, significa mostrar pra si que você acredita na própria capacidade e na força dele, que você tem realmente algo singular pra dizer, e que é importante, importantíssimo. Mostrar muito dilui a poesia, porque as outras pessoas têm outras coisas importantíssimas a dizer – embora haja quem consiga publicar mesmo rascunhos em redes sociais mantendo essa relação de intimidade com o poema, coisa que eu adoraria conseguir fazer, escrever a céu aberto e dentro do coração simultaneamente. Mas meu sol fica na casa 12 do mapa astral… preciso de isolamento.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo tudo no bloco de notas do celular. Qualquer dispositivo mais sólido cria uma solenidade que me distrai muito. Nunca escrevi nada que preste em papel físico.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Não sei de onde vem minhas ideias. Um hábito que me mantém criativo é tentar tê-las o menos possível. Eu me inspiro em outras vozes, tenho vozes na cabeça, de poetas que admiro e que tem um temperamento parecido com o meu, um jeito de dizer o mundo parecido com o meu. Sou muito sensível ao que há de singular numa voz. Num timbre. Já ideias são estéreis no meu caso. Quando consigo não partir de ideias fixas, o poema aparece ele mesmo como uma ideia, nua e crua, redonda, que nunca ninguém pensou antes, mas que agora todo mundo pode pensar – ele tem uma voz. Muitas vezes é uma ideia ruim, mas ainda sim é infinitamente melhor que um poema meu que nasceu de uma ideia. Acho que, em poesia, partir da ideia de que não fazemos ideia do que seja uma ideia pode ser muito libertador… É a fonte comum de poesia e filosofia. Mas a poesia tem que permanecer nesse momento de tensão, em que se deseja saber mas não se sabe, sem dar pra trás, porque com ceticismo não se faz arte; nem dar um passo pra frente, porque com respostas práticas ou científicas também não. Esse momento da tensão em que você sabe que há respostas mas não sabe quais é o momento da beleza, e é muito difícil de aguentar, não só pela angústia da ausência de respostas mas por conta dessa espécie de certeza louca quase física de que há respostas, e de que elas são mesmo infinitas. A beleza é insuportável pra uma pessoa inteligente. Fica mais insuportável ainda na música, porque a musica dá o passo pra frente, faz um movimento parecido com a filosofia, de ir e vir, parece uma fala, parece ter momentos de certeza e aporia, e você se vê concordando plenamente com um negócio que nem sequer começou a falar ainda. Já a poesia torna essa beleza “filosófica” da música suportável, restaura o equilíbrio por uma simultaneidade plástica de quadro, ou de escultura.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Essa pergunta é muito bonita. Foi um longo processo de amadurecimento. Hoje posso dizer que um poema não está dissociado da vida moral nunca. Um poema mostra a vida como virtuosa ou como viciada. Toda virtude é criativa, todo vicio é dogmático. Voltando pros meus primeiros poemas, que escrevi com 16 anos, vi que eles tinham uma abertura pra vida que era brilhante e que perdi em grande parte com os vícios do “amadurecimento”, os fechamentos de si que praticamos diante do medo do que não tem solução. Acho que estou passando por um processo de cura ao revisitar meus primeiros poemas. Há dois ou três de que ainda gosto, mas ainda bem que eu os escrevi.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Eu gostaria de ler um grande amigo ou amiga que é um grande poeta, sempre. Embora a gente seja tudo meio podre e caquético por dentro, há pessoas que além disso tem um coração maravilhoso e que frequentemente me tornam menos covarde diante das minhas feiuras. Gostaria de continuar lendo o coração delas, o que frequentemente acontece quando elas me mostram como elas leem o meu.