Bruna D’Avila Saldanha é tradutora e contadora de histórias.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Minha rotina matinal talvez seja a mesma da de muitos tradutores: acordo, tomo café, vejo a lista de trabalhos pendentes e começo a trabalhar. Sou tradutora de inglês e há períodos onde temos um alto volume de traduções a realizar, o que exige dedicação e tempo. Ou seja, muitas vezes os horários de café da manhã, almoço e até janta são diferentes daqueles que trabalham 8 horas em horário comercial. Por outro lado, quando o assunto é a escrita, logo que acordo tento lembrar do que sonhei, e geralmente consigo recordar e anotar, pois costumo ter sonhos bem loucos e criativos que, inclusive, são utilizados em textos que escrevo. Geralmente, escrevo crônicas, que pouco têm a ver com o universo onírico, mas gosto de rascunhar o que sonhei como meio de exercitar minha criatividade e nunca perder o hábito de escrever. Já elaborei minicontos com o que sonhei, mas nunca saiu do papel, pelo menos por enquanto.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Para começar, não me considero uma escritora, pelo menos não alguém que vive do que escreve. O que paga minhas contas é a tradução, a escrita de causos do cotidiano é mais um hobby e que, sim, pretendo levar adiante. No momento, tanto para tradução quanto para rascunhos de textos e crônicas, meu melhor momento é logo ao acordar, ou de tardezinha, e, em alguns períodos, de madrugada. Já tive ideias de textos quando estava deitada na cama, quase pegando no sono, naquele limiar do sonho, quando a ideia veio. Levantei e escrevi sonolentamente no celular a ideia e dormi. No dia seguinte fui ler e pensei “de onde tirei isso?”, “que louca”, mas aproveitei o rascunho e escrevi um texto. Quanto ao ritual de escrita, não tenho. Acho bem sofisticado aquele clichê do escritor, tomando seu cafezinho, com um gato no colo, de frente para o laptop e escrevendo um livro, mas não tenho nada disso. O que escrevo é o que observo, é a vida real. Uma conversa aleatória na rua, bate-papo entre amigos, músicas da moda, memes, algo visto no restaurante na hora do almoço; tudo isso rende. Como disse uma amiga minha, que, por falar nisso, também escreve: um chinelo esquecido na varanda rende um conto. Aliás, ela acabou de me dizer essa frase. Ou seja: isso é o que me move. As pessoas, as conversas de gente, a vida acontecendo, conselhos, opiniões, piadas, bobagens do dia-a-dia, desesperos, dificuldades. Se eu tivesse que eleger um ritual de escrita, acho que seria esse: observar as pessoas.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não, não tenho meta. Como a escrita é um prazer, não coloquei uma meta. Sinto que, se colocar um limite de máximo ou mínimo de textos, vou acabar escrevendo sobre algo que não tenho interesse ou meio “forçada”, sabe? Para mim, o cerne da crônica, o prazer dos causos é justamente o inesperado. Se tiver um dia em que nada me chamou a atenção (difícil, porque o cotidiano tá aí para nos surpreender), não escrevo. Não vou inventar um fato. Até gosto de escrever diálogos, mas com base em situações reais, não me vejo escrevendo uma ficção mais fantasiosa, por exemplo. Até acho estranho me dizer “cronista” (mesmo que nas horas vagas) porque, na verdade, eu gosto é de escrever, pura e simplesmente, não sou uma profissional da escrita (não por enquanto). Gosta de escrever seja onde for, seja nos meus posts do Facebook (onde mais escrevo, e também onde posto textos mais longos), algumas rapidinhas nos status de WhatsApp, até em guardanapo já rascunhei uma bobagem. Escrevo quando a ideia surge, simples assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Depende muito do tipo de texto. Uma vez tentei escrever um conto e foi um parto! Reuni as ideias, as notas, quem falaria o quê, e na hora de começar, não saiu, e quando saiu, não me empolgou. Quando o assunto é crônica, aí é bem diferente. Eu rascunho em um papel ou no celular o que vi, e escrever a partir disso é bem tranquilo, porque sai naturalmente, tão naturalmente que não sinto que estou produzindo um texto. Sabe quando alguém tira uma foto nossa e dizemos “ai, tô muito feia, apaga!” e alguém diz “não, imagina, tá linda!”? Pois é, eu me sinto assim com os textos que escrevo. Eu escrevo bobajadas cotidianas no Facebook e aconteceu de as pessoas gostarem. E o mais louco: elogiam. Elogiam e parabenizam por algo que para mim é tão natural. Uma vez, acho que vai fazer um ano até, inventei de fazer uns vídeos, fiz dois ou três, falando coisas do cotidiano mesmo, e gostaram. Vieram perguntar: “tu treinou muito o texto que tu falou no vídeo?” Me espantei, porque falar o que eu pensava ali foi tão natural que nem pensei nisso de treinar. Acho que com a crônica é a mesma coisa: é tão natural que nem sinto que tô fazendo.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Isso é muito normal. Quando eu estava na faculdade (me formei em Letras pela UFRGS), fiz uma cadeira na qual tínhamos que produzir diferentes tipos de texto, como contos, crônicas, etc. Então, realmente, rolou uma ansiedade, e como mais colegas iriam ler, bateu esse medo “será que vão gostar?”, afinal, não são nossos pais que estarão avaliando, não é? Podemos escrever “vovô vê a uva” que os pais vão achar uma obra-prima da poesia parnasiana, mas ali eram meus colegas e professores que leriam, pessoas que também escreviam. Na hora de escrever o conto, gelei. Não é minha área. Então elaborei um diálogo com base em uma situação do cotidiano que inclusive tinha observado na própria faculdade. Rascunhei um diálogo, arrumei uma coisinha só e joguei aos leões. Li em voz alta ainda (pavor!) e gostaram. Vieram depois da aula falar comigo dizendo que tinham se identificado com o conto. “Teu texto é simples e faz a gente se identificar com o que acontece”. E acho que isso se relaciona com a procrastinação: se enrolo muito para fazer algo, para escrever uma ideia, achando que o texto tem que sair perfeito, é porque não é para ser. Deixo para lá e volto outra hora. Texto que retrata o cotidiano não tem que só soar natural, ele tem que ser natural, como se fosse alguém conversando e te contando uma história.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
A primeira pergunta eu acabei respondendo sem querer antes. Se eu ficar muito tempo em cima da revisão de ideias e editando e lipoaspirando o texto, ele fica muito embonecado e nada natural. Não serve para mim. Reviso o português, a ortografia, pontuação e já era. Algumas vezes até mostrei para família e amigos meus textos que publico em redes sociais, para que dissessem o que achavam, mas como nunca publiquei oficialmente nada, não sei se conta. Por outro lado, se fosse publicar um livro de crônicas, com certeza, minha família e meus amigos seriam os primeiros a ter o direito de dar suas opiniões.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Eu adoro o que a tecnologia proporciona. Veja só esse caso agora: uma entrevista em um blog e a pessoa entrevistada é alguém que escreve causos no Facebook. Blog é tecnologia, Facebook, também. As redes e mídias sociais dão visibilidade para as pessoas, tanto para aquelas que publicam frases motivacionais de “bom dia” tanto para aquelas que escrevem e não têm onde publicar e querem um espaço. Claro, isso tem dois lados: qualquer um pode escrever o que quiser numa rede social ou gravar um vídeo no YouTube. Isso é visibilidade. No entanto, um criativo no YouTube pode ficar soterrado no meio de tantos vídeos “mais do mesmo” e não ser olhado. Acaba sendo, ironicamente, invisibilizado. Eu gosto da tecnologia pelas coisas boas que proporciona e tento, a meu modo, usá-la a meu favor e divulgar o que escrevo. Foi por meio do Facebook que uma amiga me convidou para escrever na página dela, a Estante Cultural; foi por meio da tecnologia que a Amanda Leonardi, escritora gaúcha, conheceu o que escrevo e me indicou para esse blog, que, por sua vez, usa a tecnologia para auxiliar e divulgar escritores. Isso é muito bacana. Quanto aos rascunhos, eu rabisco no que estiver na frente: guardanapo, bloco de notas do celular, post-it, o que estiver perto. Se deixo de escrever e perco a ideia, já era.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Minhas ideias vêm do cotidiano. Pessoas. Gente. Conversas. Realidade. Eu adoro ler ficção, amo romance policial, coisa bem investigativa, mas para escrever… o que me fascina mesmo é a realidade, é a vida das pessoas. Se tu for parar para analisar, se tu escutar com atenção o que te contam teus amigos, tu vai ver que a vida real supera a ficção em muitos aspectos. Coincidências loucas não acontecem só em filme: parando e prestando atenção, nós vamos ver que a vida cotidiana, considerada monótona por muitos, é uma miríade de fatos, piadas, causos, diálogos e situações dignas de TV. Proponho um exercício: pense nas diferentes situações da tua vida, pense em como conheceu teus amigos, por exemplo. Dia desses uma amiga me perguntou como eu tinha conhecido uma outra menina, e respondi “Numa aula de tango”. Olha, já rende. E é vida real. Leia as conversas com teus amigos nos aplicativos de conversa, olha quantas histórias de vida acontecendo. Acredito que esse seja meu principal hábito: observar o cotidiano. Não tenho isso de “estou sentada num banco de praça alimentando os pombos e ouvindo histórias, coletando dados para minhas crônicas”. Nada disso, eu levo minha vida que nem todo mundo: levanto, trabalho, a coisa toda. Só que deixo meus olhos e ouvidos abertos para a vida que acontece e depois, de alguma forma, tento contar o que vi e ouvi para as pessoas.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
O que mudou, na minha opinião, foi a naturalidade. Hoje não penso mais “ah, vou sentar e escrever e só saio daqui quando tiver tudo pronto”. Se não saiu, não saiu. Quando vier a ideia, aí sim. Claro, se for pensar lá atrás, eu sempre gostei de escrever, quando criança até uma revistinha eu montei, fazia odes ao Cazuza, no aniversário da minha avó fiz uma “ode à vó”, sempre gostei, mesmo de forma inconsciente, de colocar pra fora e em palavras o que eu estava pensando. Nem tenho como avaliar com os olhos de hoje o que escrevi quando pequena, mas era tudo muito natural, porque eu ainda não tinha aquela malícia de “o que os outros vão pensar”. Escrevia minha revistinha e deu. Depois na adolescência continuei gostando de escrever, pessoas diziam que eu escrevia bem, mas tudo sem muito compromisso. Foi recente isso de “escreva sobre tal coisa”. Dia desses uma amiga disse que gostava de entrar no Facebook para ler meus textos. Imagina minha cara! Nessa rede social, tenho bastante amigos e conhecidos, mas a maioria eu conheço pessoalmente, mas não sou aquela pessoa com centenas de seguidores e curtidas. Quando ouço comentários do tipo “Li o que tu escreveu e amei, mostrei para minha família e todos adoraram”, vejo o impacto da internet (isso, aliás, conversa com a pergunta sobre tecnologia). Às vezes me pego pensando, justamente por esse motivo: “Será que devo falar desse assunto?” Mas acabo escrevendo, dando um jeito de abarcar todo mundo. Se eu pudesse dizer algo para meu eu adolescente, diria: “Não tenha vergonha de escrever e jogue tuas crônicas pro mundo!”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Um livro de crônicas, sem dúvida. Tenho muita vontade. Queria publicar um livro daqueles gostosos de ler, que a gente lê deitado na rede da praia, que a gente lê rindo e se identificando. Queria compilar os causos e, por meio do livro, contar histórias, fazer as pessoas verem a Porto Alegre (ou qualquer outro lugar, porque gente é gente, independente do local) com seus personagens e loucuras. Quero ser mais uma contadora de histórias do que uma cronista. Também gostaria de escrever um dia um livro de microcontos e diálogos, textos e histórias “tiro curto”, para serem lidas em momentos de lazer, sem pretensão. Agora, um livro que gostaria de ler? Não sei se existe, mas adoraria ler um livro de contos que retratassem os sonhos das pessoas. Quando colocamos a cabeça no travesseiro, o que nossa mente produz é um material muito rico. Sabe quando acordamos e dizemos “Tive um sonho muito louco!”? Então, eu acho que sonhos rendem ótimos contos. Eu adoraria ler (ou, quem sabe, escrever) algo do gênero.