Brena O’Dwyer é antropóloga e escritora, doutoranda no Museu Nacional da UFRJ, autora de “As ilhas” (Urutau, 2019).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Eu gosto de acordar cedo – não precisa ser aquela coisa massacrante 6h da manhã, mas antes das 9h pela boa moral – e fazer café da manhã sem pressa, de preferência em silêncio, não gosto de acordar com música nem podcast, enquanto tomo café eu leio algo. Às vezes gosto de ler sem ter saído da cama, acordo, vou ao banheiro, volto pra cama e leio um pouco, não precisa ser muito, 15 minutos. Essa é a rotina ideal, que normalmente é interrompida pela necessidade de responder e-mails, mensagens e pelos atrasos cotidianos, mas tenho conseguido não começar o dia em feeds, o que é sempre uma vitória.
Eu trabalho com três tipos diferentes de escrita o que também implica em rotinas, cronogramas, formatos e manias diferentes.
Tem a escrita da minha tese de doutorado (uma escrita que ainda está em fase de trabalho de campo e leitura), sou aluna do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ); trabalho com revisão, preparação e tradução de textos acadêmicos e ficção, eu amo revisar e preparar porque é uma escrita mais colaborativa, em cima de um texto que já existe; e escrevo poesia que, por enquanto para mim, tem sido algo sem muito formato, se a escrita acadêmica e a revisão exigem cronogramas, datas, prazos, nesse sentido a poesia é mais livre.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
De 9h as 16h, depois é só enrolação. Não é exatamente um ritual, mas aquilo que todo mundo faz, pego o computador, olho todas as redes sociais possíveis, lembro que esqueci de lavar a louça, vou lá, aquela enrolação até o momento em que não tem nenhuma outra coisa, a não ser realmente encarar aquela página em branco. Na verdade, não é uma página em branco porque vivo de rascunhos, resenhas, ideias compiladas em listas e aí vou transformando esses outros formatos em um texto final. Normalmente compilo tudo isso em um único arquivo com cores diferentes, por exemplo, resenhas em verde, ideias a desenvolver em vermelho, citações em laranja e vou transformando esses pedaços, conectando as ideias, mudando algo de lugar conforme vou escrevendo.
Sobre local, tenho uma escrivaninha que serve só para guardar os arquivos e papéis porque escrevo mesmo de pernas cruzadas no sofá, quando trabalho final de semana pode ser até na cama.
Acho que a coisa mais importante para mim na hora de escrever é o silêncio, admiro muito quem consegue escrever ouvindo música ou alguma outra coisa, mas pra mim é impossível.
Quando a procrastinação e a falta de concentração estão difíceis eu uso o método pomodoro (25min para cada tarefa com 5min de intervalos) ou um aplicativo que se chama Forest que eu gosto bastante, você põe quantos minutos tem que ficar sem mexer no celular e no final quando você consegue cresce uma árvorezinha, é fofo e dá para sacar quanto tempo você realmente trabalhou e no quê porque ele permite que você marque a árvorezinha com uma tag.
Bibliotecas são sempre uma ótima ideia também, você vê os outros trabalhando e dá um certo ânimo, além do silêncio e de estar cercada por livros que é sempre uma coisa boa.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Escrevo e/ou leio todos os dias, acho importante falar das duas coisas porque para mim escrever é também um processo de leitura. Ler é a coisa mais importante para escrever, sei que é clichê, mas realmente acredito nisso, você precisa ler muito, muito, para escrever só um pouquinho.
Não tenho metas diárias para a escrita acadêmica, mas vivo de cronogramas, listas e adoro um prazo. Claro que a coisa mais importante de um cronograma é ter tempo no final para quando o cronograma der errado, contar com imprevistos é essencial na hora de se organizar e eu fui aprendendo isso com o tempo.
Quando trabalho com revisão ou preparação vejo qual é a dificuldade do texto, quantos dias tenho para entregar o trabalho, qual o tamanho do texto e faço uma conta baseada nisso; deixando alguns dias livres no final para os imprevistos e também os finais de semana (pelo menos um dia) livres para arejar.
Tem períodos que exigem mais, final de semestre, quando estava prestes a defender o mestrado ou quando estou com algum prazo de trabalho mais apertado, essas são as coisas que acabam ditando os períodos de escrita ao fim e ao cabo. Acho importante pensar sobre isso, especialmente para quem vive de escrever, como eu, pensar na rotina, em fazer um pouco todos os dias, para desmistificar aquela coisa do escritor genial que tem uma ideia e passa madrugada escrevendo, para a maioria das pessoas não é assim.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Meu processo consiste basicamente em juntar trechos, arranjá-los em uma certa ordem, conectar esses trechos e depois ir refazendo. Junto as notas de aulas, as resenhas, notas de campo, ideias que tive e vou arranjando. É um processo bem lento, tem dias que leio um artigo, faço uma resenha escrevo um parágrafo ou algumas poucas linhas, nunca fui de deixar nada para o último dia porque não funciono, simplesmente não dá tempo. Quando acho que está com um formato mínimo gosto de imprimir, aí faço anotações e corto coisas na caneta mesmo e também vou vendo o que precisa mudar de lugar e o que está faltando. Costumo fazer cronogramas indicando dias de leitura, escrita e de revisão; também faço cronogramas priorizando as leituras, a verdade é que adoro uma lista e não consigo me organizar de cabeça, no momento uso o app Trello para deixar tudo num lugar só.
Não é uma questão de ter notas suficientes, até porque elas nunca serão suficientes, sempre há algo novo para ler e para pensar, mas acho que saber quais os limites da insuficiência e esses limites tem muito a ver com o mundo material também, qual seu prazo para aquele trabalho, quanto tempo você tem hoje para fazê-lo, esse tipo de coisa tem que ser levada em consideração. Também não sei se é exatamente sobre se mover da pesquisa para a escrita, porque são o mesmo processo.
As vezes sei que preciso escrever algo, mas não sei como então vou no documento do Word e escrevo algo como “aqui entra um parágrafo sobre x, com referência y” e deixo de uma cor diferente e assim vou juntando ideias.
Uso várias cores, preto é o que está pronto, verde o que precisa desenvolver, roxo é citação, laranja é algo que tirei de algum caderno de disciplina e assim por diante. Aí vou transformando o texto pra que fique uma unidade.
Depois é muito importante mostrar o texto para alguém, seja sua orientadora, suas amigas, uma revisora. Eu não gosto dessa ideia de textos escritos a duas mãos, os melhores textos normalmente são escritos a várias e acredito que mostrar o texto para alguém é muito importante para movimentar as ideias.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Acho que estou ficando repetitiva, mas se eu não estou conseguindo escrever eu leio. Supondo que precise escrever um artigo, se não está saindo nada, leio algum artigo sobre o assunto, faço um fichamento, penso no que aquilo pode ajudar a pensar as questões daquele artigo que precisa ser escrito.
Também gosto de trabalhar com tópicos, então, por exemplo, eu sei que falta um parágrafo sobre o movimento feminista nos anos 1960 na minha tese, vou lá e escrevo um tópico no documento onde eu acho que esse parágrafo faz sentido e fica ali como um rascunho, que eu posso modificar depois.
Acho muito importante também copiar e colar de coisas que já tenho, resenhas que fiz no passado, disciplinas que cursei, anotações, isso facilita ir montando o texto e mesmo que não seja aquele momento da escrita em que você está lá ativamente digitando você vai juntando material e organizando as ideias.
Minha orientadora no mestrado – Maria Luiza Heilborn – me deu um conselho que sigo com diligência: é melhor escrever algo e poder melhorar aquilo do que não escrever nada e não ter sobre o que trabalhar. Ela me dizia que se eu estivesse travada que fosse escrever os agradecimentos, organizar as referências, os subtítulos ou as notas de rodapé, mas que não deixasse de trabalhar.
Acho que uma coisa que ajuda a lidar com expectativas é ler trabalhos semelhantes, você precisa escrever uma dissertação? Leia uma dissertação, precisa escrever um trabalho final de disciplina? Peça para ler o trabalho de alguma colega e assim por diante. Isso ajuda a dar dimensão para o que você precisa fazer e também mostra que os outros erram, deixam falhas, repetem frases, igual a todo mundo.
Acho muito importante tirar da cabeça essa ideia do texto perfeito, da tese que ganha prêmio ou do trabalho elogiado no congresso. Tento sempre pensar primeiro no arroz e feijão, o que é principal ali, com quem aquele texto conversa e para quem ele presta contas. Não existe trabalho perfeito, sem erros ou impassível de críticas. Depois que comecei a trabalhar com revisão percebi isso: livros são escritos, traduzidos, preparados, revisados, passam por uma editora e tem erros, mesmo com todas essas pessoas trabalhando, um projeto menor de um autor terá também e faz parte do processo de escrita.
Lembrar que para trabalhar bem é preciso se divertir (a famosa: a vida não cabe no lattes), sair um pouco do mundo da escrita, fazer outras coisas, conversar com outros formatos. Circular é muito importante para conseguir deixar o medo e a ansiedade de lado porque expande seus horizontes e muitas vezes permite ver que aquele trabalho é importante, mas não é tudo. Saber disso sempre me ajuda a acalmar a mente e o coração para conseguir escrever.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muito menos do que deveria, apesar de trabalhar com revisão e preparação e amar fazer isso, sou péssima em revisar meus próprios textos. Mas acho melhor assim, tem uma hora quando se está escrevendo em que você perde um pouco o fio da meada, a organização do pensamento, o que você já disse e o que falta e é para isso que serve a preparação e a revisão e é bom que elas sejam feitas por outra pessoa.
Além disso, converso muito sobre meus textos. De poesia troco muito com amigas poetas – Taís Bravo e Andrea Pech, obrigada, migas – e textos acadêmicos principalmente com minha orientadora, María Elvira Díaz-Benitez e todo o grupo do NuSEX (Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade) que participo como pesquisadora no PPGAS/MN/UFRJ, fazemos encontros em que lemos os textos uns dos outros e comentamos, são essenciais no processo.
Acho que essa ideia da escrita, especialmente a acadêmica, como solitária algo que só serve para aumentar o estresse e o ambiente de competição. Escrever não é algo solitário, você precisar ler outras pessoas, assistir aulas, conversar com pessoas que pesquisam temas próximos e com pessoas que pesquisam temas distantes, explicar para sua avó o que você está pesquisando, tudo isso faz parte do processo, mas acaba sendo uma parte negligenciada, o que é bem triste porque essa é parte da troca com o outro, que é o que realmente possibilita a escrita.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo principalmente no computador, tablet e celular. Uso aplicativos que ficam online então posso editar o conteúdo de qualquer lugar e isso facilita minha vida. Eu sou muito esquecida, então se tenho uma ideia preciso anotá-la logo.
No mestrado comecei esse hábito e gosto muito, se lembro de uma aula que foi importante de um autor x, é só usar a ferramenta localizar no meu caderno online.
Acho que isso ajuda especialmente quando escrevo poesia, porque as vezes alguém me fala uma coisa interessante num bar ou penso em algo no ônibus no meio do caminho e aí faço uma nota.
Eu tenho usado cada vez menos cadernos físicos, apesar de ter um para o campo; escrever tem sido para mim cada vez mais digitar.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Acho que o principal hábito é ler, de tudo um pouco e a maior variedade de coisas possíveis. Eu leio literatura – de todos os tipos, autoajuda, young adult, nacionais, internacionais, só tenho um pouco de preguiça dos clássicos, mesmo assim, insisto – poesia, jornal, textão, as instruções do shampoo.
Além disso, é central conversar com os outros e estar atenta ao que as pessoas dizem; especialmente para poesia é importante roubar, você vê uma palavra usada de outra forma, uma frase, uma metáfora diferente, e aí – pelo menos na poesia – você pode roubar isso e usar no seu texto, criando um terceiro texto, uma coisa nova, eu acho esse procedimento incrível. Na escrita acadêmica é preciso citar as ideias dos outros, o que é menos divertido, não é um roubo, fica mais como um empréstimo.
Além disso, eu amo ser aluna. Adoro fazer disciplinas (mesmo como ouvinte), porque ler em conjunto é muito melhor do que ler sozinha e isso ajuda a refrescar as ideias. Existe uma certa hora que não da mais para pensar sozinha, sua cabeça já pensou naquilo de todas as formas que ela consegue, então, estar com os colegas e as professoras na sala de aula ajuda muito a manter a criatividade ativa.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo tem se tornado mais oral. Gosto de gravar áudios com minhas ideias ou então ir ditando no telefone (que transforma a voz em texto) ao invés de digitar, especialmente em momentos nos quais há uma trava na escrita, tentar explicar para você mesma em voz alta o que você quer fazer pode ajudar, isso tem a vantagem também de que você pode ter uma ideia a qualquer momento, você pega o telefone e manda um áudio para si mesma.
Eu diria “revise mais seus textos e pague alguém pra revisar”, minha dissertação nesse sentido é uma vergonha, já tinha defendido, estava exausta e não tive a paciência e o carinho de revisá-la e hoje me arrependo. Especialmente depois que comecei a trabalhar com revisão e percebi a importância dessa outra leitura.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Acho essa pergunta um pouco impossível de responder, porque tem muita coisa boa por aí e me falta muito leitura ainda, tem tantos livros que existem que eu gostaria de ler que imaginar um que não existe fique difícil.
Sobre projetos próprios, acabo de lançar meu primeiro livro de poesia, pela Editora Urutau, se chama As ilhas, são poemas escritos entre 2016 e 2018, então agora acho que gostaria de começar a escrever o segundo, com algumas coisas desse ano, para não perder o ritmo.