Augusto Guimaraens Cavalcanti é escritor, pós-doutorando em Letras pela UFRJ.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Tenho extrema dificuldade em organizar minha semana de trabalho. Acabo escrevendo aquilo que é mais urgente pelo prazo, mas sim, costumo ter vários projetos ao mesmo tempo, o que acaba sendo uma forma de me manter minimamente ativo e de não cair na burocracia da escrita. Por exemplo, atualmente durante a pandemia, após contrair COVID em janeiro e me recuperar, tenho escrito com mais dificuldades do que o normal e é o fato de ter projetos simultâneos o que me possibilitou continuar produzindo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Ao dar início a um novo projeto de livro eu leio e pesquiso muito sobre o assunto para só então deixar fluir. Mesmo na área da poesia e da ficção é necessário fazer uma espécie de jardinagem mental antes de escrever para que a linguagem seja minimamente orgânica, mas sem ser tão somente um primeiro jorro de inspiração.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Preciso de silêncio para escrever e por isso costumo trabalhar de madrugada (quando meus vizinhos dormem). Quando estou imerso nalgum processo de escrita viro praticamente um vampiro, um ficcionista vampiresco que troca o dia pela noite e se nutre do dia como um manancial de pesquisa também sobre tudo aquilo que lê e vê quando está acordado. A minha rotina é formada basicamente pelo silêncio e pelos gatos que me acompanham na minha insônia (tenho 4 felinos: Luísa, Marie, Frida e Fritz). Como não consigo produzir com a mínima interferência externa, quando tenho que escrever com alguma obrigação de prazo, tenho que colocar o fone de ouvido com alguma música instrumental (de preferência de meditação), mas o barulho para mim representa a morte da escrita.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Quando me sinto travado saio para caminhar pela cidade ou então leio algum livro de ficção para tentar encontrar um novo ponto de equilíbrio, mas não fico me punindo pela procrastinação. Andar na areia e mergulhar no mar também são técnicas simples que me auxiliam a ter uma perspectiva diversa sobre aquilo que estou escrevendo. O que me parece mais importante é lidar com a trava de inspiração como uma parte natural do processo criativo do escritor, sem que isso se transforme numa neurose, numa obsessão ou numa punição.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Como sou também acadêmico além de escritor (sou no presente pós-doutorando do PACC-Letras da UFRJ e coeditor da Revista Z Cultural do mesmo Departamento de Letras), para mim nada dá tanto trabalho como labor de pesquisador, profissão tão pouco valorizada neste país (embora eu seja bolsista da FAPERJ e já tenha tido bolsa da CAPES e do CNPQ, a pesquisa é uma carreira em extinção no Brasil). A área da poesia é onde consigo mais conciliar a técnica com o prazer da composição. Na área da prosa, meu único livro até aqui foi o “Fui à Bulgária procurar por Campos de Carvalho” (de 2012), obra de viagem mental que me demandou tempos de leitura, mas da qual me orgulho imensamente pelo que resultou. Na atualidade estou escrevendo a continuação da minha trilogia de viagem, a se chamar “Fui à Romênia procurar por Ionesco”. Este projeto tem me requerido estudar sobre a Romênia, sobre a Transilvânia, sobre Bucareste, sobre o Emil Cioran, sobre o Mircea Eliade, sobre o Mihai Eminescu, além de ler a obra completa do Eugène Ionesco (que será o personagem principal da trama).
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Os temas para os meus livros me surgem muito do que estou lendo ou pesquisando no momento. Nesta minha pesquisa atual de pós-doutorado (com orientação da Beatriz Resende) tenho escrito sobre o “Jogo da amarelinha” (Rayuela) do Cortázar, obra em que é mencionada uma busca por um leitor-cúmplice. Tal procura por um leitor em comum (um intérprete ativo, o “leitor-saltado” do qual fala Macedonio Fernández) tem permeado cada vez mais a minha escrita, mas isso de leitor-ideal acho que não existe. O leitor-ideal é uma ficção de leitor que muito me interessa enquanto invenção de linguagem, mas não como uma meta a ser atingida para que um livro tenha milhares de leitores “ideais”. A meu ver, cada livro escolhe fortuitamente os seus leitores e sobre tal processo o ficcionista não tem o tanto de controle que gostaria ter. E é bom que assim o seja. Sou pela liberdade de cada leitor encontrar os próprios meios de escapar das fórmulas fáceis de interpretação, para além de toda tutoria mercadológica. Sigo acreditando no leitor e nas suas escolhas incondicionadas, por isso escrevo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Quanto a mostrar rascunhos e manuscritos a terceiros sou definitivamente introvertido. Prefiro que as pessoas leiam depois do livro publicado, pois acabo confiando que aquilo que está sendo publicado é a melhor versão possível de todo o material que passei meses editando. Todavia, sinto uma inveja construtiva dos escritores que entregam seus manuscritos para outros leitores-escritores e a partir daí constroem uma espécie de leitura compartilhada. Quem sabe um dia eu possa vir a ter um desprendimento parecido e uma confiança em entregar minha escrita ao crivo de uma leitura compartilhada.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Como venho de uma família de artistas (por parte materna sou bisneto do Alphonsus de Guimaraens e parente do Bernardo Guimarães, e por parte paterna sou parente próximo do cineasta Alberto Cavalcanti), sempre tive o desejo de ser escritor desde adolescente. O que eu não sabia era como era difícil e árduo o caminho de um escritor no Brasil (agravado pelo fato de sermos um país em que se lê pouco). Publiquei meu primeiro livro em 2006, “Poemas para se ler ao meio-dia”, e o que eu mais gostaria de ter ouvido naquela época é que o mais importante é seguir buscando uma linguagem particular e um estilo próprio, para além das modas literárias. Encontrar a própria linguagem é o que faz o labor de um escritor tão único também. Não tentar de antemão copiar ninguém, mas sim produzir um estilo singular a partir das próprias referências (que podem vir da cultura erudita e/ou da popular, sem hierarquias prévias). Ser inventivo a partir dos próprios meios – sem ter uma subserviência excessiva aos escritores que te influenciam –, isso me parece imprescindível para que um leitor futuro venha a te reconhecer como alguém que esteve interessado em construir um caminho único em sua escrita.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A última frase já responde um pouco à pergunta sobre as dificuldades e os percalços que um escritor pode vir a encontrar para desenvolver um estilo próprio. Para tanto, faz-se necessário ler e reler muito, estando sempre aberto ao estranhamento e ao diferente. Não confio e nem acredito muito nos escritores que não leem compulsivamente. Ao menos em algum período da vida, é meio que inevitável ter passado por um período de educação sentimental a partir e através dos livros. Nesse sentido, a lista dos autores que mais me influenciaram é extensa, mas se tivesse que listar somente dez deles, citaria: Julio Cortázar, Campos de Carvalho, Murilo Mendes, Octavio Paz, Paul Éluard, Macedonio Fernández, Eugène Ionesco, Samuel Beckett, Herberto Helder e Gonçalo Tavares. Todos os ficcionistas supracitados (poetas, prosadores e teatrólogos) que tinham um compromisso radical com a própria arte sem, contudo, serem herméticos, formalistas ou obcecados com a técnica literária. Todavia, para além do suporte físico do livro, um filme, uma canção ou um quadro podem vir a me influenciar e a me impactar tanto quanto uma produção livresca. No cinema, por exemplo, sou apaixonado pelo Luis Buñuel, pelo Federico Fellini e pelo David Lynch, assim como nas artes plásticas pelo René Magritte, pelo Max Ernst, pelo Marcel Duchamp e pelo Ismael Nery. Todos estes me motivaram a ser escritor.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O “Jogo da amarelinha” (Rayuela) será sempre um dos meus livros de cabeceira. Recomendo esta obra a todos os que querem iniciar-se na seara literária. Ao menos, no meu caso, este foi o livro que marcou a minha adolescência. Outro foi o “Catatau” do Paulo Leminski. Mas prefiro que cada leitor-escritor descubra o seu Aleph, a sua pedra de toque a partir e ao redor da qual tudo será erigido. O mais importante é aprender a trilhar um caminho próprio. Cada vez mais tenho me interessado pelos autores vivos, então, recomendaria a um leitor futuro ter a mesma aptidão desejante a que assiste uma série da Netflix quando se aproximar de um livro. Se tivesse que indicar dois romances nacionais recentes (do século XXI), recomendaria o “Nove noites” (2002) do Bernardo de Carvalho e o “Habitante irreal” (2011) do Paulo Scott. Para além do contemporâneo, a obra ficcional que mais me impactou ultimamente foi “O solitário” (1973) do Ionesco, único romance escrito pelo teatrólogo absurdista franco-romeno. Entretanto, isso de recomendar leituras é muito subjetivo. Prefiro que cada leitor encontre o prazer do texto à sua maneira.