Atena Beauvoir é filósofa existencialista.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo confusa. É muita expectativa para uma existência transgênera, no país que mais mata identidades trans, estar acordando e reconhecer que tem um dia de 24 horas para viver. E essa vida é relativa a impulsos existenciais muito fortes. Mudar de existência, no tocante ao gênero – que é a identidade humana fixista, ou se é homem ou mulher e para sempre será – é um processo extremamente delicado. E essa delicadeza vem das dores que se fixaram no descolar de uma identidade que não correspondia à minha experiência humana inicial. Meu dia não começa. Sinto fortemente que o tempo se paralisa. Sinceramente, por isso a confusão. Não que eu desconheça o dia e a noite como entidades temporais, mas é que eu me desconheço ainda enquanto entidade existencial. Logo, minha rotina é extremamente confusa. Se pudesse reconhecer alguns pontos, diria que amo o café que existe pela manhã. É um prazer inenarrável. E me desespero quando vejo que já são 11h e devo organizar meu almoço. Eu gostaria que minha vida inteira fosse uma manhã com café recém passado. A leitura e a escrita nessa confusão, são os momentos de poder sobre mim mesma. É como se eu ordenasse quem sou, o que fui, de onde vim e porque estou onde estou. Quando escrevo nessa confusão, gero dignidade em mim mesma. Eu acredito que existo.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu nunca trabalho melhor. Minha escrita sou eu mesma. E sim, isso fortemente tem relação com minha existência transgênera. As pessoas às vezes se cansam, mas imagine eu mesma, no meu papel humano de não ser reconhecida enquanto validade existencial. Então escrever sobre filosofia existencialista, sobre transantropologia, sobre identidade humana, não é necessariamente trabalhar melhor, num estado de qualidade da metodologia ou de uma boa “vibe” de escrita. Minha melhor preparação para a escrita é a leitura, que denomino de pré-escrita, e o diálogo com pessoas que desejam falar sobre os temas que escrevo ou sobre assuntos que elas dominem para que eu mesma compreenda melhor minha produção literária. Então não sinto um trabalhar melhor, inclusive de estar de escrita. Quanto pior o trabalho de escrever sobre o que escrevo, melhor a leitura do texto. Meses depois, inclusive quando a obra já está publicada, eu evito ler o que está ali, escrito por mim, porque me remonta a todo o peso existencial que sustentei na escrita.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Tenho pouco tempo de escrita. Não escrevo muito e nem pouco. Escrevo sempre o suficiente. Às vezes passo semanas sem uma linha escrever. Chegando a me violentar, ao tentar realizar alguma escrita, um nojo do que produzi me faz criar asco desse esforço que não me leva a lugar algum. Me desligo da escrita e faço produção de leitura. Geralmente, quando sento para escrever, eu escrevo. Ou seja, não me conformo com o tempo. Portanto, produzo a pré-escrita durante meses, até que sento e escrevo, tudo, ou parte de tudo, que nem eu mesma sei onde findará o tudo da escrita. Tenho meta de projetos literários. Gasto o tempo que for para leitura e escrita de tais projetos.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
É um processo dolorido. Não de pieguismo ou emocionalidade frágil, mas de um impulso de me libertar desse peso existencial de tanto preconceito e discriminação, que minha escrita é fogo na minha ferida aberta. A cicatriz é a obra que as pessoas poderão ler. Tenho 22 tatuagens no corpo, sendo que 8 são no rosto. Dessas, 5 são títulos de livros meus que me constituíram, enquanto minha própria autonomia humana. E de fato, não me arrependo nem das tatuagens e nem das obras escritas, porque eu mesma sou elas. Porque me reconheço no que escrevi, ainda que qualquer leitora ou leitor jamais poderão me conhecer pela obra literária minha, senão organizar as linhas do meu pensamento fixadas nas palavras. Eu vejo minha ontologia nos meus escritos. As pessoas veem minha epistemologia. São coisas bem distintas. Leitura é fundamental para construir a escrita. Mas principalmente leitura que seja do meu agrado. É prazeroso para mim, ler filosofia existencialista francesa, ou escritos de Heidegger e Hegel, de Nietzsche a Derrida, Foucault e Kant. Sim, lê-los me auxilia a experienciar minha existencialidade enquanto escritora. Mas de fato não há a escritora, se em mim, não existir a filósofa. Minha escrita segue o conceito de literatura de Sartre, quando afirma que deve o escritor engajar-se no que escreve. E eu desejo existir nas minhas escritas. Por isso, todos os autores e autoras, carregam na história da literatura e da filosofia seus nomes lembrados nas suas obras, porque eles mesmos fundamentaram a existencialidade de si na escrita e tese defendidas em suas obras. Da pesquisa para a escrita me movimento em duas fontes: na existencialidade teórica dos filósofos e na minha existencialidade ontológica, que sou eu.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Nunca travei na escrita, porque não existe uma sistematização. Respeito meu tempo de produção literária e enquanto estou sem escrever, estou pré-escrevendo na leitura de outras obras e de mim mesma. Meus projetos estão livres de estarem prontos e isso me faculta total liberdade de construí-los como eu desejar. Não tenho medo da minha escrita. Ela muitas vezes se amedronta, porque sabe que não sei diferenciar o que escrevo do que eu sou. Procrastinar é impaciência existencial e capitalização de produção literária, seja dentro ou fora da academia, para que a todo momento se esteja ou escrevendo ou produzindo, sem nenhuma espécie de re-conhecimento de si no que se propõe escrever. Não tenho projetos longos. Enquanto muitas pessoas escrevem suas emoções e o que sentem, eu procuro escrever quem eu sou, o ser que sou.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Nenhum dos meus trabalhos está pronto. Existe uma finalização, mas creio que tenho intimidade existencial com meus textos, exatamente para afirmar que todos eles se envolvem com o futuro de outras escritas. Sempre para publicar ele tem uma harmonia, mas às vezes poderia ser complementado com uma série de outros estritos. Mas quando sinto que a obra já me diz alguma coisa, inteligível a mim, certamente será para alguma outra pessoa. Eu mostro meu trabalho, mas não importalizo tanto reconhecimento em quem vai analisar, antes de publicar. Às vezes uso neologismos, ou intervenções de escrita não comum, e que somente com a obra por inteira é que faz sentido. Se não para quem lê, para mim.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
A epistemologia construída através da minha ontologia, uma espécie de fenomenologia literária. A minha escrita está baseada na minha dor existencial. Às vezes me pergunto se seria escritora, caso não houvesse essas fincadas na minha existencialidade. E vejo tantas meninas trans e meninos trans, que passam situações semelhantes quanto à própria identidade humana que são problematizadas por todas as áreas do conhecimento: Educação, Ciência, Direito, Saúde, etc. Todas corroboram em identificar a humanidade trans enquanto desmerecedora do crédito existencial que todo o resto da humanidade carrega e produz, de autonomia existencial e autenticidade humana. Quando eu escrevo, sinto a dor, essa espécie de peso interno, na palma da minha mão. E quanto mais aperto, mais a sinto. E sentindo, escrevo. Às vezes é proposital e para tal, não posso me enganar. Tenho de ser sincera e honesta com o que sou e sinto. E dessa relação comigo mesma, produzo meus textos. Se existe um conjunto de hábitos que cultivo, é o de existir. E a luta por existir para uma humanidade invisibilizada como a trans, é de uma profunda alteração nas próprias crenças de que não há espaço para nós, em uma sociedade transfóbica e insensível. Perceba, eu faço parte de uma população de mulheres transexuais e mulheres travestis, onde 96% trabalha na prostituição. Sou parte dos 4% que não está nessa linha de violência existencial, pois que não estão nas esquinas porque querem, gostam ou desejam, mas porque foi o destino existencial que exiladas, permitiram ali, estarem. Quem permitiu? A história do passado. Quem construiu a história? Quem detinha o poder. Como diz Foucault, esse Biopoder de ordenar a vida. Não sou ingênua, sei muito bem que as entranhas da sociedade humana são burlescas e hipócritas e destina a necropolítica, como indica Mbembe, aos túmulos da inexistência. Decidi me vingar, dar vingo, vida, a minha sensorialidade escrita. Não me defenderia tão somente, mas faria com que todo o ser humano que lesse meus escritos, duvidasse da própria experiência humana. E isso tenho feito.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Meu processo nesses últimos três anos de escrita, sinto que é o mesmo. O que mudou foi meu processo de pré-escrita. A leitura em si, mudou muito no processo de produção. Sinto que só aprendi a escrever quando compreendi o meu processo de leitura. Eu francamente não diria nada para mim mesma no início da minha produção textual. Eu confio de que fiz tudo que sinto dever ter feito.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O projeto de dar existencialidade a minha existência humana transgênera. Reunir minhas publicações independentes e as com editoras, como sendo meu projeto de transantropologia literária brasileira. Até agora estou com 6 projetos literários no prelo com estimativa para lançamento nos próximos 2 anos. No total organizo 15 obras a serem produzidas por mim nos próximos 5 anos. Se eu deixar de escrever, eu deixo de existir, logo escrevo para mim.