Arzírio Cardoso é poeta e cronista, autor de “Bromas & Bromélias” e “Cartógrafo de Dunas”, pela Penalux, e “Conheço duas formas de acabar com a vida que são tiro e queda”, pela Patuá.

Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não sou organizado, a não ser que não se organizar já tenha se transformado numa outra espécie de organização, afinal os textos acabam sendo escritos assim mesmo, quando vejo eles estão lá, nos meus arquivos. É certo que exista alguma forma inconsciente de ordem por trás disso, mas como para mim funciona, prefiro não pensar nela, assim ela permanecerá inconsciente. E, melhor, funcionando.
Poucas vezes escrevi a partir de projetos. Na maior parte do tempo, escrevo só porque gosto mesmo. Prefiro a corrente desse fluxo natural, que aumenta ou diminui conforme os índices pluviométricos. Por isso, às vezes escrevo muito e quase todo dia, em rompantes de criatividade, e às vezes fico anos (e isso não é uma hipérbole) sem escrever. Quatro anos foi o recorde, mas depois disso publiquei 3 livros em curto espaço de tempo, além de ter participado de uma meia dúzia de antologias.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Acho que parte dessa pergunta já respondi na anterior. Mas quando escrevi por projeto (meu livro de poemas Cartógrafo de Dunas, por ex.) planejei-o em detalhes. Conceitualmente (e etimologicamente), projetar significa lançar à frente, ou seja, pensar em tudo antes. Claro que sem a rigidez matemática de um lançamento de foguete espacial, projetado para ser projetado.
Você segue uma rotina quando está escrevendo um livro? Você precisa de silêncio e um ambiente em particular para escrever?
Não. A palavra “rotina” é antipoética, túmulo literário. Talvez faça sentido para a produção de textos técnicos, dissertações, redação de contrato. Mas para o que me proponho a escrever, ela é feia. Jamais escreverei obedecendo a protocolos, calendários, despertadores e pressão externa ou autoinflingida. A literatura sempre foi um signo de negação. Em tempos velozes, ela caramujeia, em tempos de lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor, ela toma um trago na sarjeta.
Você desenvolveu técnicas para lidar com a procrastinação? O que você faz quando se sente travado?
Não. Como não tenho hora para escrever, nunca chego lá atrasado.
Quando me sinto travado, primeiro me alongo, depois escrevo um microconto, aquela embaixadinha pra mostrar pra mim mesmo que não perdi a intimidade com a bola.
Qual dos seus textos deu mais trabalho para ser escrito? E qual você mais se orgulha de ter feito?
Difícil eleger, todos são muito trabalhosos e com poucos fico satisfeito. Lembro de uma crônica chamada “Literatura: coisa de criança”, na qual argumento que é bastante literária a maneira como as crianças analisam o mundo. Durante alguns anos, fui coletando definições que meus alunos faziam a respeito de assuntos os mais variados, e parte das definições está presente na crônica. Deu trabalho porque demorou (para os padrões de uma crônica) e porque foi difícil ajustar o tom e não passar a impressão de que crianças dispõem de algum crachá que lhes confere acesso especial à realidade das coisas, algum canal de comunicação transcendente com o mundo, mas sim que elas enxergam o mundo de forma diferente, situadas diante de um número menor de filtro que os adultos.
Sobre orgulho, eu gosto mesmo é do poema do Leminski: “Tudo o que eu faço/ alguém em mim que eu desprezo/ sempre acha o máximo. / Mal rabisco, / não dá mais pra mudar nada. / Já é um clássico”. Ou então da fábula “A águia e a coruja”: a coruja chega na águia e diz que ela não deve mais comer os seus filhotes. A águia responde que é muito difícil diferenciá-los, saber quais são de um bicho, quais são de outro. A coruja diz: é simples, quando você encontrar os filhotes mais bonitos que existem, você não os come, pois são os meus. No outro dia, a águia encontra as corujinhas, verifica que são horríveis e as devora.
Mas, de qualquer forma, me orgulho muito (a despeito do pé atrás, afinal é muito difícil julgar o próprio texto, quando o escritor acha que está bom, o melhor a se fazer é ler de novo) do poema “Os desertos”, do livro Cartógrafo de Dunas; do poema “Eucaristia”, que foi finalista do Prêmio Carlos Drummond de Andrade, organizado pelo SESC-DF; da crônica “Quarentena: o que os filósofos diriam sobre o Coronavírus (sim, é meu, apesar de ter viralizado nos whats da vida sem meu nome); e do texto que falei para minha companheira, no dia do nosso casamento. Quando a juíza perguntou se eu queria dizer alguma coisa pra Ana, eu disse “Obrigado por ter vindo”.
Como você escolhe os temas para seus livros? Você mantém um leitor ideal em mente enquanto escreve?
Sinceramente, não sei. No Cartógrafo de Dunas, quis escrever sobre o deserto. Mas um deserto metafórico, um deserto como símbolo do nosso modo de vida, das nossas relações, da nossa secura. Parecia que era um tema bom de ser contado a partir de uma certa perspectiva. No livro de crônicas, “Conheço duas formas de acabar com a vida que são tiro e queda”, há muitos textos que tratam da linguagem, de sua materialidade inescapável e de como escritores que sejam dignos desse nome, como já dizia Haroldo de Campos, não podem se furtar a levar isso em consideração: o material de um escritor são as palavras, não as ideias. Era uma bronca que eu tinha e precisava expurgá-la, então o fiz de maneira mais ou menos diluída, de forma que só a leitura integral do livro vai deixar clara essa noção. Me parece, então, que a escolha do tema tem a ver com aquilo que de certa forma me incomodava, a escrita como acerto de contas.
Quanto a um leitor ideal, penso o seguinte: o maior imperativo de um escritor brasileiro é continuar escrevendo como se o Brasil fosse letrado. Em outras palavras, jamais subestimo o leitor, jamais fico explicando tudo pra ele como se ele fosse uma tábula rasa.
Em que ponto você se sente à vontade para mostrar seus rascunhos para outras pessoas? Quem são as primeiras pessoas a ler seus manuscritos antes de eles seguirem para publicação?
Nunca estou à vontade, pois nunca sei se estão bons. Por isso demorei anos até mostrá-los, até publicá-los. O que acontece, no entanto, é que ser adulto passa necessariamente por se acostumar a fazer coisas desconfortáveis, então vez ou outra publico textos maiores nas redes sociais, para ver a reação. Poemas curtos e micronarrativas eu já publico com mais frequência, mas sem compromisso algum com periodicidade. Quem lê meus textos antes é minha companheira, Ana.
Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita? O que você gostaria de ter ouvido quando começou e ninguém te contou?
Sim. No primeiro ano do curso de Letras. Já escrevia antes, mas ali decidi que isso seria um ofício (ou tentativa de). O que gostaria de ter ouvido foi exatamente o que ouvi. Mostrei uns poemas ao melhor professor do curso. No outro dia ele me devolveu, olhou para mim e disse “são muito ruins”. E de fato eram. A pior coisa que pode acontecer a um escritor iniciante é ganhar tapinha nas costas e elogios vazios do tipo “nossa, que bonito”. Dalton Trevisan, mestre inconteste, em carta ao também escritor Carlos Castello Branco, escreveu: “Estou esperando, aflito, carta sua. Diga-me o que achou dos contos. Seja duro, implacável.”
É isso que falta, sermos implacáveis, pois é uma forma de respeito. É isso que tento reproduzir, hoje, quando alguém me envia textos, pedindo para eu opinar. Foi assim que, há alguns dias, respondi a um menino que sonha em publicar livros:
“Eu li, X. O que senti é que o que você escreve vem com sabor de verso antigo, com ecos do período romântico, uso sistemático de rimas e alguma métrica, tudo isso aliado a uma tentativa de usar palavras rebuscadas e umas imagens um tanto inóspitas e/ou repetidas: a morte como uma velha senhora é uma imagem muito desgastada. Assim como a comparação entre a suposta liberdade do pássaro e a clausura humana. E tudo isso remete ao que os românticos já fizeram há quase dois séculos.
Você escreve super bem. Mesmo. E acho que te faria bem mergulhar na leitura de poetas modernos: Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Walt Whitman, Erza Pound, Alvaro de Campos, Alberto Caeiro. Quando se trata de escrever poesia no sec. XXI, acho que esses autores apontam caminhos melhores do que os românticos.
Digo isso com a convicção de que tentar repetir caminhos já traçados até pode funcionar como exercício, mas dificulta bastante a aquisição de uma voz própria, que é o sonho de quem escreve, fazer com que os versos tenham uma face pessoal. Isso aconteceu comigo também (e não quero passar a impressão de estar te passando lições, pois literatura é um caminho solitário, de autoconstrução)…no começo meus poemas todos soavam parecidos com Fernando Pessoa: pode até impressionar alguém no início, mas o mundo não precisa de um novo Fernando Pessoa. Os teus 3 poemas não me mostraram ainda uma voz própria, mas reminiscências e fragmentos de velhos períodos literários. As influências são inevitáveis, mas é preciso diluí-las. Tenho certeza que o tempo e a prática te mostrarão como construir o próprio caminho.”
Foi por amor à literatura que Trevisan pediu ao seu leitor-analista para ser implacável.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Muitas. A angústia da influência nos persegue sempre. No começo, tudo o que eu escrevia parecia já ter sido escrito antes por alguém, tamanha era minha habilidade inconsciente de assimilar e emular estilos alheios. Isso foi bom, no início. Significava que a leitura era tão apaixonada que eu acabava transformando tudo aquilo em minha própria matéria orgânica. Mas é bom apenas como treino, como etapa inicial do longo processo de tentativa e erro que aos poucos nos conduz na direção de uma voz própria. Acho que a resposta a respeito das dificuldades é essa: é preciso tempo, escrever muito. Não há saltos no mundo da escrita. Tudo é lento e é preciso que seja assim. Elimina os apressados.
O autor que sem dúvida alguma me influenciou mais que outros foi Fernando Pessoa.
Que livro você mais tem recomendado para as outras pessoas?
A mulher submersa, de Mar Becker.