Arlindo Gonçalves é fotógrafo e escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Antes ou durante a pandemia, o que não mudou é que tenho um trabalho fixo, com carteira assinada, essas coisas convencionais. Ainda bem, não perdi o emprego durante a crise sanitária que, daqui a pouco, completará dois anos. Antes dela, eu regularmente acordava às 6h, tomava café e, depois, ia para o escritório. Três vezes por semana, eu acordava mais cedo (5h) e corria na rua. Quando não conseguia acordar para isso, deixava para correr quando chegava do serviço. Duas vezes por semana, também, eu ia nadar na ACM-Centro, pertinho de casa. Com o coronavírus circulando, nunca mais nadei, mas continuo correndo. O esporte individual é algo sensacional que, além dos benefícios para o físico, é um ótimo estimulante para a minha atividade de escrita. Enquanto corro, minha cabeça é tomada por diversas ideias para literatura. Várias vezes, o fim de uma trama ou a ideia para ela surgiram enquanto me movimentava. É ciência: o exercício ajuda muito o cérebro, além do óbvio benefício ao corpo. Tenho diversas sinapses enquanto estou correndo.
Com a pandemia, o que mudou é que passei a atuar em home office e a correr sempre de máscara. Assim, continuo com as mesmas demais rotinas, com exceção de ter parado a natação e não usar mais os transportes públicos para ir ao emprego. Eu tenho mantido, sempre que posso, o regular horário das 6h para pular da cama quando não corro antes do expediente e saio dela às 5h quando vou para a rua praticar exercício. Essa rotina se modifica um pouco quando estou produzindo algum livro. Mas vamos deixar para abordar isso na próxima questão.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Eu rendo melhor de manhã, antes de trabalhar. As atividades que exerço no meu emprego são bastante complexas, impactam muito o raciocínio, que se esvai ao fim do dia. Então, quando estou escrevendo um livro novo ou revisando algo que vai ser publicado, eu até acordo mais cedo, às 4h, e enfio a cara na literatura. Teve um livro meu, o Joy Division – Closer: testamento musical, que, por eu ter me comprometido com um prazo para entregá-lo ao editor, demandou de mim uma rotina muito estafante de todo dia acordar bem cedinho e produzir.
Não sei se posso considerar um ritual de preparação para a escrita, mas eu tenho uma premissa: nunca começo um texto de ficção ou de não ficção (dedico-me a ambos) sem que tenha na cabeça o final, principalmente em termos visuais, com as imagens do desfecho. Essa é minha regra há vinte anos. Além disso, eu adoro escrever à mão, em caderninhos que sempre ganho da minha namorada, a também fotógrafa e escritora Luciana Fátima. É somente depois de burilar o material feito à caneta ou a lápis que vou para o computador. Por obrigações profissionais, eu já passo muito tempo no PC, o que é demasiado cansativo. Prefiro escrever à mão primeiro, por mais demorado que possa parecer. Mas estou muito acostumado a esse modus operandi. Costumo escrever bastante rápido.
Por fim, acho que mais do que rituais, o que muito valorizo é a disciplina. Nunca arrumo desculpas para não escrever. Sou muito exigente comigo mesmo em termos de cumprimento de rotinas. Não fico esperando inspiração. Nem sei se um dia tive alguma.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Quando eu começo algo em literatura, analiso a rotina que terei pela frente, ou seja, como encaixarei a escrita no tempo livre que terei para isso. Não consigo escrever todos os dias do mês. Nos cinco primeiros dias úteis, eu trabalho demais e não tenho pique para literatura. Até já tentei, mas é perda de tempo, não sai nada. Preciso ter a cabeça mais saneada para me dedicar a textos literários. Depois dessa fase rotineira de início de mês, a coisa fica mais amena, flui que é uma beleza. Eu passo, então, a programar os dias para a escrita e imagino o tempo que gastarei. Daí para frente, com bastante afinco, sento e escrevo umas duas horas durante cada dia que determinei para fazer isso. Quanto a metas diárias, não as tenho em termos de quantidade de texto, espaço preenchido no caderno ou caracteres no Word. Geralmente, eu vou tentando manter o ritmo das tais duas horas de escrita por dia. Leituras paralelas para consubstanciar a escrita dos meus textos eu faço sempre fora dos períodos dedicados a escrever. Posso me perder se trocar de atividade. A hora de escrever para mim é sagrada, por mais que eu gostaria de ter mais tempo para ela.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Bom, já comentei a premissa de só começar a escrever quando tenho na cabeça o final da trama. Também abordei a questão da escrita manual, depois a digital, além da rotina propriamente dita. Esses seriam os tópicos, digamos, primários. No que diz respeito a pesquisas prévias, eu as começo somente após ter a ideia de final da história. Sem isso, nem pesquiso nada. Quando estou seguro de que posso começar, de já ter uma ideia de fim, mesmo que venha a mudá-lo, acrescentar coisas a ele, aí, sim, dou partida nas pesquisas. Separo livros, artigos, ensaios, até filmes. Pego primeiro os mais importantes e vou lendo ou assistindo. Quando termino alguns títulos iniciais e que julgo necessários ter passado por eles antes da escrita, finalmente vou a ela. Mas a pesquisa normalmente prossegue por bastante tempo, até durante a escritura.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Eu quase não sofro de travas de escrita. Claro, tive algumas, mas – ainda bem – foram poucas ocorrências e todas elas ligadas, não ao processo de construção da literatura em si, mas a contextos gerais e externos. Se algo me desanima em alguma parte da minha vida, pessoal ou profissional, sinto dificuldade em me dedicar à literatura. Eu preciso estar bem, física e emocionalmente, para escrever. De procrastinação eu sofro pouco. Quando ocorre, é por alguma contingência, seja do emprego ou de afazeres novos que surgem. Adiamentos ocorrem muito pouco na minha rotina. Às vezes, tenho projetos enfileirados e, por pura empolgação, acabo sabotando a sequência imaginada e determinada ideia de escrita que estava lá atrás fura a fila.
Uma coisa curiosa que está ocorrendo exatamente agora comigo é o que chamo de “crise de entusiasmo”. Minha literatura é muito calcada em ideais sociais, que defendo em ficção e não ficção. Quando me ponho a defender alguma ideologia em literatura, se durante o caminho da criação acontece algo que põe em questionamento o que pretendo defender em letras, aí eu sofro muito e acabo questionando a validade da minha própria escrita. Está acontecendo justamente agora. Eu terminei um livro cuja trama se passa na pandemia e a história defende alguns ideais de solidariedade, ideais estes que eu via aflorar nas pessoas muito mais no começo da crise sanitária do que agora. Hoje, beirando o segundo ano imersos todos nós no drama da covid, eu vejo determinados sentimentos arrefecerem na sociedade, dando espaço a comportamentos coletivos que agridem muito as ideias do livro que terminei. Isso me desanimou muito e confesso estar em dúvida se devo mesmo publicar a novela, se não vou soar ingênuo demais, bobo mesmo… As condições desumanas em que o país se encontra levam à beira do abismo pessoas pacifistas, idealistas e comunitárias como eu, resvalando na depressão, na desesperança e descambando para o pânico. Mas preciso resistir e retomar a energia que vi esmorecer.
Sobre projetos longos, admito que não quero mais ficar tanto tempo em um mesmo livro. Quando escrevi o In aeternum – Joy Division: a busca afetiva por um imagem, trabalhei durante cinco anos para fazê-lo. Ainda bem que eu tinha outros livros já terminados e pude publicá-los enquanto fazia o mais extenso. Mas ficar tanto tempo em um mesmo tema é algo que não me agrada tanto. Não me vejo gastando mais cinco anos num livro. Se precisar, fico, lógico, mas tenho de achar uma forma de fazer outras coisas mais ágeis. Com a pandemia, passei a achar que as nossas vidas podem cessar a qualquer momento e não gostaria de deixar nada sem um ponto final.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Eu costumo escrever muito rápido, mas reviso exaustivamente. Prefiro despejar logo o que sinto no papel e, depois, ir burilando. A única explicação para isso é fruição. Eu adoro escrever, ver as páginas sendo tomadas pelos meus garranchos. Mas revisar é sagrado, uma obrigação a que me imponho. Releio no mínimo três vezes antes de passar para a Luciana. Quando ela me devolve, leio mais duas vezes. Daí, envio para a editora. Ao receber de volta com as emendas, correções, adequações, ajusto e vejo tudo de novo mais uma vez. Quando o livro fica diagramado, olho pelo menos mais uma vez. Não poupo esforços para isso. Em alguns projetos, cheguei às raias da paranoia, aquele medo horroroso de, mesmo sabendo escrever, errar alguma obviedade. De algumas mancadas que cometi no passado (graças a Deus, ocorrem menos atualmente) eu nunca me recuperei.
No começo da minha jornada, eu consegui parceiros de leitura de alto nível, como os escritores Fernando Bonassi, Nelson de Oliveira, Luiz Ruffato, Roniwalter Jatobá, Marçal Aquino, Bruno Zeni, João Carrascoza e Maria Valéria Rezende. Era incrível como havia mais precariedade de meios de comunicação em comparação com o cenário de hoje, com WhatsApp, Face e Insta, e, mesmo assim, tínhamos muito mais receptividade uns para com os outros. Eu tive muita sorte em ter tido essas pessoas todas lendo meus textos e me ajudando. Hoje, não conto com muita gente. Arrisco a dizer que o ambiente atual representa o oposto daquele quando comecei, ou seja, escritores se ignorando, escritores sentindo-se ameaçados de perder espaço para outros escritores, escritores apenas interessados em likes, prêmios literários suspeitos de armação, gente vendendo-se exaustivamente nas redes e sem nenhum interesse na escrita feita ao lado. Mas tenho a Luciana, que me ajuda muito.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Acabei abordando isso no começo. Eu adoro escrita manual. E faço isso sem muitas idealizações. A questão é apenas que já fico cerca de nove horas por dia num PC. Deixar as teclas e ir para lápis e caneta chega a ser um alívio. Às vezes, eu dou de presente a pessoas amigas algum caderninho preenchido. Fiz isso recentemente com o Matheus Vigliar, ilustrador de vários livros meus. Disse a ele que se eu morrer e ficar famoso, ele ficará rico por ter manuscritos de uma celebridade… Meu relacionamento com tecnologia é brando. Não sou um superusuário de recursos digitais. Para ter uma ideia, somente agora, aos 51 anos, por causa da pandemia, é que assinei um streaming de filmes. Ouço música em matrizes físicas (CDs e vinis) e assisto a filmes em DVDs originais. Só baixo alguma obra quando esgoto todas as possibilidade de ter uma versão original, com pagamento dos direitos autorais, tributos e fretes – todos têm de ser remunerados pelas obras que produzem, todos que fazem chegar a nós tais obras precisam também receber sua parte. Sou muito conservador nessa área, principalmente com música. Acho música um elemento quase sagrado ou totalmente sagrado – algo que não posso macular com pirataria.
Já em redes sociais, sou pouco presente, mas tenho regularidade de aparecimento – reduzida, no caso, mas consistente. Uso apenas para divulgação de arte, sejam livros de minha autoria ou de terceiros, ensaios fotográficos que faço e nos quais eu nunca sou o protagonista. Não entro em polêmicas nas redes sociais, expresso meu posicionamento político, ético e espiritual por ações concretas no dia a dia a quem tem contato comigo, não por declarações em busca de likes. Quando posto algo em tom de protesto, procuro fazer uso de sutilezas, abordagens indiretas etc. A todos os que me procuram via mensagens, respondo imediatamente. Não gosto de deixar ninguém sem resposta e adoro os poucos leitores que tenho; são pessoas que se sentiram tocadas pelo que escrevo e sempre me fazem depoimentos de alto teor emotivo e sentimental. É uma delícia estar em sintonia com os leitores. Como tenho poucos, me dedico a todos.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Extraio do cotidiano as ideias para minhas histórias. Meus textos surgem da realidade observada no dia a dia. Tenho de ir para a rua, circular, entrar em estabelecimentos comerciais, ouvir as pessoas ao meu redor. Só assim as tramas vão ganhando corpo. Essa seria a principal coisa a fazer para me manter ativo intelectualmente e estar apto para a tarefa de escrever. Fora a convivência nos espaços urbanos da cidade, a atividade física, que já mencionei, é fundamental para me conservar na literatura. A fotografia é outra fonte também. A imagem fotográfica, quando produzida dentro de contextos ético e artístico sérios e consistentes, em termos de discurso pessoal, é uma forte maneira de narrar a vida. Como sou fotógrafo desde antes de ser escritor, me acostumei a contar histórias por meio da imagem. Fora esses pontos, eu recebo e absorvo estímulos de toda leitura que faço e de atividades culturais, como ir a museus, teatros, cinema. A música também é um poderoso elemento na hora de criar.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Com o tempo, percebo mais segurança e fluidez, o que é bom. Sobre voltar à escrita de meus primeiros livros, não só pensava nisso como de fato fiz. Entre 2019 e 2020, retornei aos meus três primeiros livros, que formam um único romance com as mesmas personagens. Trabalhei por dois anos na releitura de todo o conteúdo e reescritura de algumas partes. Como eram publicações anteriores ao acordo ortográfico agora vigente, o mais árduo que tive de fazer foi a adequação das palavras, acentos, hifens, essas coisas. Em termos de trama, fiz poucos ajustes. Como os livros têm fotografias minhas, e o material era muito antigo, ainda da época da fotografia digital, tive de tratar imagem a imagem no computador. Aproveitei e inseri algumas fotos dos projetos originais, mas que haviam sido excluídas pelos editores. Foi uma grande satisfação voltar aos primeiros anos como escritor. Fiquei feliz por mudar pouco o material original em termos narrativos – praticamente supressões de partes muito pequenas. Lancei os três livros em volume único agora em 2021.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Vou responder às duas perguntas com um único possível livro. Eu gostaria de escrever um romance sobre a vida do dramaturgo Plínio Marcos. Acho que não existe nada nesse estilo, pelo menos em ficção (biografias tradicionais a gente já dispõe há tempos). Gostaria de ler sobre a vida dele em uma trama ficcional, cheia de referências à nossa sociedade atual, releituras, interpretações, interação dele com as personagens, atores, produtores, entre outros. Espero que alguém um dia escreva um projeto desses porque eu não me sinto à altura do Plínio para entrar numa empreitada assim. Sou apenas um grande fã dele.