Ari Marinho Bueno é poeta e bacharel em filosofia pela Universidade de São Paulo.
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Não inicio o dia escrevendo, ou mesmo pensando em escrever. O que vez por outra acontece é de alguma “ideia” estar a passear na cabeça, sem forma ou mesmo indício de que será alguma coisa que me levará a escrever. Na maior parte das vezes ela, essa ideia, se deixa levar pela própria carência de sentido que, depois de certo tempo, demonstra possuir.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Me sinto melhor para realizar qualquer atividade pela manhã, acho que meu rendimento é mais efetivo. Mas, curiosamente, isso não se aplica ao que escrevo. Já levantei de madrugada pra colocar no papel uma ideia, ou mudar uma frase ou o sentido de algum trecho ou verso que não me deixara satisfeito.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho disciplina alguma com relação à periodicidade, nem me preocupo com uma meta – deixo a coisa fluir quando me sinto impulsionado a dar cabo de uma ideia que julguei apropriada. Mas é claro que pode acontecer também, após esse fluxo impulsivo, de achar o que pus no papel uma porcaria e desistir da coisa – ou o que é pior – de tentar “melhorá-la”.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
São raras as vezes em que faço anotações. Em geral as “anotações” são uma versão inicial para que o texto tome corpo, e a cada releitura do já escrito ideias novas e complementares para as verossimilhanças vão surgindo e se aperfeiçoando. É comum também um verso surgir pronto em minha cabeça, mas sem acompanhamento, e eu aprendi o momento (ou acho que aprendi) de aguardar ele desvelar-se.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Entendo a procrastinação como um exercício de crítica. Eu disse numa outra entrevista que qualquer um pode escrever um poema, mas o problema é dar a conhecer o quanto de humanidade existe nele, só por ser um poema. Pra mim a questão central é: esse poema vai ser benquisto? Qual será sua relevância na vida de quem o ler? E é na busca por estas respostas que a procrastinação mostra a mim, autor, o que tem valor ou não na escrita, o quanto vale em termos de satisfação e prazer na feitura a distância e a retomada de um texto inacabado.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Lia raramente alguns textos para parentes e conhecidos, e no momento mesmo em que o fazia já tinha a noção de que precisava mudá-lo, aprimorá-lo. Isso me fez abandonar a ideia, pois percebi que a leitura era mais para mim do que para o outro. Mas isso foi a muito tempo. Em geral apresento os originais diretamente aos editores. Essa tarefa de revisar textos, entretanto, não acaba nunca: depois de publicados, depois de meia dúzia de pessoas haverem deitado os olhos sobre eles antes, você ainda vê que poderia melhorar alguma coisa, acrescentar aqui, cortar ali.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Hoje prefiro escrever diretamente no computador, mas isso não é uma regra. Se estiver com papel e caneta à mão e pintar um motivo, se aquilo me tocar a ponto de eu querer registrar, rabisco na hora. A vantagem para textos maiores, que exijam um burilamento mais trabalhoso é ir direto para o computador. O poema “Os onze”, por exemplo, embora não seja muito, muito extenso, foi escrito em forma de publicações de texto no meu perfil do Facebook, durante onze dias (uma parte por dia). Quase não o alterei ao publicar em livro.
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
O e. e. cummings, poeta que aprecio muito, dizia que não possuía uma técnica; que era um fazedor, um cara ligado no Fazer, e para o qual passado esse prazer, as coisas perdiam o interesse. Aqui, no meu caso, acho melhor utilizar exemplos: tenho um poema chamado “Distração” que trata de um sapo enorme que vi atropelado (esmagado) numa rua de minha cidade natal, em minha juventude (se não me engano estava indo pra escola). Aquela visão me tocou de uma forma que não pude entender ou definir, naquele momento preciso, mas que virou o poema algumas semanas depois. Numa outra ocasião, na criação de um poema chamado “Os onze” – aquele que citei acima, o que fiz foi imaginar onze jogadores (onze poetas) fazendo poesia (jogando futebol) – a ordem interna do poema é esta mesma, e faz parte do impulso que me levou a escrevê-lo. E fui lá e fiz. Dessa forma, não sei se posso afirmar, sem ser desonesto, que possuo um método criativo específico.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
A prática de escrita acarreta aperfeiçoamentos que você vai identificando o quanto mais escreve. Intuitivamente já posso reconhecer uma ideia que vingará de uma que não seja bacana pelo fato de imaginar como desenvolvê-la, quais caminhos de início posso tomar para tornar aquilo algo palatável. Particularmente, a leitura permanente de diferentes autores dá subsídios à escrita e aumenta o repertório de possibilidades, desde que se esteja atento ao que pode ser útil ali, ao que possa ser assimilado sem parecer imitação. O recado que posso dar a mim mesmo no passado é: leia, escreva, releia e reescreva – depois jogue fora e comece de novo. Não tenha pudor de errar. Cada leitura é uma descoberta, para o mal e para o bem.
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
Tenho um livro de contos no forno, quase finalizado. Espero publicá-lo em breve. O livro que gostaria de ler é aquele que ainda não existe pra mim, seja porque não tive acesso a ele, seja porque o li e não consegui assimilá-lo como gostaria.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
Com toda a certeza deixo fluir. Não sou um autor profissional, que vive do que escreve. Sob este aspecto diletante da minha escrita, ocupo-me do que me dará prazer ao ser realizado, ao ser feito. O início é sempre o mais difícil, para mim, pois de certa forma já houve uma “triagem” anterior que me levou a começar. Não que haja infalibilidade nesta triagem, mas ela funciona como um desencargo de consciência, diante da validade daquilo.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Como tenho uma atividade remunerada extra autoral com jornada de trabalho fixa, quando estou trabalhando num texto o faço nos momentos de folga, ou à noite, após o expediente. Não há uma sistemática com relação a horários e dias, mas sim com a disponibilidade e meu impulso e vontade em ver o texto pronto.
O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
O que me motiva a escrever: o fazer e o vingar. É como me contrapor de modo resistente às minhas limitações humanas construindo, como diria Malraux, meu anti destino. É a vingança contra a frustração de uma impotência apriorística contra a desumanidade.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?
Não tenho um estilo, próprio, no meu entendimento. Acho que sou um simulacro do que veio antes de mim, um pouco de cada coisa que gosto ou que me toca de alguma forma.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
“Não”, de Bruna Mitrano (Ed. Patuá, 2016): é uma poesia sedutora que mostra o drama do cotidiano a transcender a surrealidade do real, uma poesia que tenta dar hiper sentido ao real.
“Uma cidade nas nuvens”, de Renato Silva (Ed. Patuá, 2011): de uma enganadora simplicidade, poesia ocultada nas camadas do coloquial, cheia de insights.
“O monstro e seus vazios”, de Wellington Souza (Ed. Benfazeja, 2015): o monstro que nos tornamos por querer, ou sem querer; as rupturas e os lances que nos levam a tal desencontro marcado.
“Resenhas da solidão”, de Fabíola Weykamp (Ed. Literacidade, 2015): segredos particulares transformados em epifanias, tornadas palavras, num encontro com um presente quase perdido.