Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira é escritor.

Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Anteontem acordei animado com a literatura. Mas uma dor de cabeça dos infernos me obrigou a voltar para a cama. O Hades do sofrimento é sempre escuro, iletrado. Dormi.
Nada de labaredas, nenhum choro… Minha companheira disse que rangi os dentes.
Bem, a televisão estava ligada num programa político, de modo que ela pode ter se confundido. Sei não…
Que há bruxismos, há.
Você sabia? A pronúncia de bruxismo, para quem mastiga o nada entre as mandíbulas, é como a de axial.
Os males, por aqui, vão mesmo além das saúvas. A minha enxaqueca é clássica, com aura. Por isso, abomino estampas exageradas.
A insônia, amante da literatura, trazendo o dia antes do sol, entre lençóis.
Deixo a televisão ligada ao acaso. Esse hábito me livra de um zumbido que, talvez, um dia, me deixe surdo.
Como as partes tortas da vida, é não ouvir para crer.
Ontem estava melhor, tomei uma xícara de chá de café e liguei o computador, pronto para limar as incoerências de uma página que não se resolvia.
Um romance também teima, dolorido. Tem enxaquecas terríveis. Fui almoçar trocando os pés pelas mãos.
Ou as mãos pelos pés?
Sim, às vezes mudamos para pior. Quase sempre, vá lá.
Hoje acertei o caminho. Apaguei duas páginas e escrevi outra.
Toda literatura é revolucionária entre quatro paredes? Se continuar melhorando assim, termino numa página em branco.
Por falar nisso…
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
Tenho vários rituais.
Ateu, entretanto, faço muito gosto de quebrá-los um a um, metodicamente. Uma trabalheira dos céus.
Escrevo pelas manhãs, quando os galos roucos sossegaram a deduragem sempiterna. Canja não alivia engasgos.
Vive-se muito pelos depois? Então…
O ciúme das tardes, preteridas. Aulas de redação, jornais, leituras…
Tirar as palavras da rotina. Um exercício diário.
Olha, antes que eu me esqueça, quem quiser fazer um curso de redação, basta entrar em contato.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Meta é aquele objetivo inalcançável que projetamos para a existência do Outro.
O que vier.
A respiração, enfim, é o espelho da escrita. Mas os bons textos, na história das artes, nasceram de uma apneia voluntária.
Às vezes, não vêm. E você tosse a falência de ser.
A receita?
Um corticosteroide qualquer com três glóbulos homeopáticos.
Deletar e rasgar papéis.
Um escritor da Mogúncia, no Sacro Império Romano Germânico, amigo íntimo de Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, teve a ideia de publicar um livro inteiramente em branco. Riram dele.
Mesmo assim, ou, talvez, por isso mesmo, passou a vida trabalhando na obra. Quando morreu, estava inacabada.
No leito de morte, em 1448, chamou o melhor amigo e deixou-lhe a obra, para que a completasse, fosse como fosse.
Deu no que deu.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
A ideia é boa, hein? Um romance dado à luz antes de se tornar romance, feito por notas espalhadas, compilação ao acaso do destino. Um livro feito livro antes da escrita. Aliás…
As melhores obras são impressas por impressões? Penso que sim. As obras-primas ficam sempre para depois da morte do autor. Uma pena.
Lembra-me um caso. Um amigo dos tempos de faculdade queria muito ser escritor. Inteligente, desconfiava de que não levava muito jeito pra coisa. Bom leitor, sabia que escrevia mal, verdade seja apenas dita.
Desde então, fala por aí do grande romance que ainda escreverá, para o qual acumula cadernos e cadernos de notas imaginárias.
O mundo aguarda a sua obra incompleta.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Adianto aqui o prefácio que fiz para um de meus próximos livros, que será publicado não sei quando. Para provar que não minto, a revista piauí, número 185, acaba de publicar um dos contos.
um treminhão na banguela cruzando sem freios o fusquinha da vida
“Prefácio Interessantíssimo”
Mário de Andrade
Não se estranhe o título deste livro. É resultado de um outro que mutilei a meio termo, obra encartada num romance que vai bem, obrigado, talvez mesmo um tanto além de sua metade. Como é provável que não o termine, resolvi exumar dele alguns trechos em quase prosa, criação de um suicida malogrado, devo confessar − o que ao menos justificaria alguma suposta neurose literária. Deixei de lado apenas os poemas, que não caberiam nestas folhas.
Não, não sou homem de me matar, longe disso. A morbidez é da personagem que o escreveu, bem entendido. Lá, dei-lhe o título de “manual do suicida”. Aqui, este outro, longo a ponto de fazer um desavisado sair do meio da rua e das páginas, livrando-se de uma leitura atropelada por tempos bicudos. Hoje? De todo modo, se o leitor preferir, espere sentado o próximo livro, espiando as esquinas num botequim dos subúrbios. Será obra muito superior a esta. Ou, se não puder sair de casa, pegue um clássico qualquer, de preferência brasileiro. Antes tropeçar num buraco da própria calçada que sonhar com as sarjetas de Wall Street ou da Via del Corso, vá lá.
Entretanto, há outro sensível aspecto… Quase não o revelo, de vergonha, juro. Bem, pode parecer bobagem minha, por sobejados exemplos, mas sempre imaginei que a fortuna jamais deixaria um escritor, menor que fosse, morrer antes do ponto-final. Não por outra razão, cultivo um transtorno obsessivo que me fez especialista em começar livros. Explico-me. Próximo do fim, ou até antes, desisto. E pulo para outros parágrafos, supondo enganar o destino. Nesse regime, ando, por precaução, com três títulos na gaveta. Como este seria o quarto, e a gaveta é estreita, achei por bem publicá-lo.
Enfim, ainda se não por isso, venho, há meses, cultivando a ideia de uma novíssima obra que começaria mais ou menos assim,
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Reescrevo incontáveis vezes. E tudo o que publiquei, até hoje, foi rascunho.
Sim, já enviei obras para amigos, antes da publicação. De modo geral, no dia seguinte, peço que não leiam. Fiz algumas modificações muito importantes, digo.
Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Escrevo na cabeça, antes. A maioria das ideias se perdem, e é bom que seja assim. A natureza humana agradece. A sociedade, mais ainda…
De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
Dia desses, sonhei que bati a cara numa placa, que apareceu na sala de casa:
“Atenção para as coisas que ninguém olha”.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Antonio, Antonio, você ainda não acabou de escrever aquela frase…
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
O livro perdido para sempre do amigo morto e esquecido de Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg.