Anna Apolinário é poeta, autora de Zarabatana (Patuá, 2016).
Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
Começo o dia tentando não sucumbir ao esmagamento pela maquinaria do trabalho, pela rotina, obrigações e burocracias, conflitos psíquicos internos, inúmeras e violentas questões externas, sobrevivo todos os dias ao sistema que tenta me engolir e mascarar minhas paixões, que diz não à poesia, à literatura, que insiste em amordaçar os desejos e pulsões. Escrever poesia é um ato de resistência, transgressão. Glauber Rocha disse: “É dever do artista violentar.” No tempo de agora, como artista, não me é permitido criar em tempo integral, como eu gostaria, só após passar horas numa repartição pública fazendo aquilo que paga as contas, minha existência se justifica e se expande, quando me coloco à frente do poema e me sinto possessa, eu só descanso dentro da convulsão de um belo poema.
Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para escrita?
Gosto de escrever à noite, é quando tenho mais liberdade, mas não há regra, a qualquer hora do dia posso ser raptada por uma ideia ou verso, que pode vir de algum estímulo externo, como a leitura de um livro ou apreciação de alguma obra artística, a observação do ambiente, coisas e pessoas ao redor, ou de uma provocação interna, um desejo de expressar e recriar algo íntimo, particular. Nesse momento faço anotações, apontamentos, necessito de tranquilidade para me fechar dentro da labuta e sair com algo apurado e potente, com estilo e dicção próprias.
Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
Não tenho metas de escrita. Escrevo quando me sinto tocada por algo, gosto de pensar que a poesia sempre sabe mais que o poeta, é algo que alimento como paixão, um trabalho prazeroso, e imprevisível, posso passar dias sem escrever, o que não é comum, dependendo da rotina, então não costumo me preocupar com a frequência, sigo me alimentando de obras e leituras que converto em referências, tentando criar um universo favorável à criação, a escrita exige rigor e entrega, o mergulho deve ser abissal. Meu último livro, por exemplo, foi escrito durante três anos, há sangue e nervos nele, um corpo-grimório vivo e incandescente.
Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
Escrever é uma espécie de ofício visceral para mim, uma exigência de espírito, essencial necessidade de mergulho no maravilhoso, em contínua luta contra o embotamento dos sentidos e a domesticação das imagens, minha busca é pela beleza convulsa, o sublime e ominoso absurdo das coisas. Isso se concretiza através de um movimento de transfiguração das subjetividades, quando manejo o cerne brutal da experiência/matéria, dando-lhe corpo/forma estética, numa operação dialética entre a (i)lógica onírica e uma afiada consciência de linguagem, daí surge a realidade nova e surpreendente que é o poema, um lugar de conflito e deslocamento, um abismo dionisíaco. Alguns poemas nascem como arroubos e me possuem com um força descomunal, pondo-me num estado de lucidez alucinatória, ou como disse o poeta Murilo Mendes, um “estado de bagunça transcendente”. Antes da escrita passo algum tempo, pode ser horas ou dias, sentindo as vibrações e tateando os contornos dos objetos e temas, preciso estar tranquila, num ambiente amistoso, para que as ideias pousem e o poema se aproxime, algumas vezes ele chega com tumulto, outras, com serenidade, e há momentos em que simplesmente o texto não vem, então é preciso paciência para lidar com a ansiedade e angústia que isso desencadeia. E há também o momento posterior à escrita, em que passo a conviver com os poemas, relendo-os, alguns deles permanecem ecoando na memória, feito mantras, abrindo fendas e fissuras na tela dos sentidos.
Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
Prezo pelo sublime, me esforço para produzir algo singular e marcante, algo que traga encantamento a mim e ao leitor, o mais difícil é atingir o tom universal, e às vezes o fracasso é inevitável, tento lidar de forma positiva, sem tantas cobranças, mantendo a maleabilidade e serenidade, compreendendo que o hiato e o silêncio também são necessários. Projetos longos costumam causar certa ansiedade e insegurança, procuro não me abalar e seguir, a obra encontra um meio de se realizar, às vezes, independente dos percalços e até dos desejos do autor.
Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
Muitas vezes os textos surgem brutos, em sequências dispersas e isso demanda um denso trabalho de construção, reescrita e revisão. Gosto de buscar o melhor modo de expressar a ideia, o som e a imagem, caçando a palavra mais afiada, para o corte mais preciso, agudo e lancinante. Quando sinto que atingi algum auge/cume, é a experiência mais deliciosa que há, recriar a beleza das coisas, dos nomes, do mundo, é algo que justifica uma vida inteira de amor e dedicação à escrita. Gosto de mostrar meus poemas apenas a amigos próximos, que geralmente também escrevem, sentir e observar suas leituras, conversar sobre os meios e fins da escrita.
Como é a sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
Tenho apego ao papel, ao poema escrito à mão, ao livro impresso. O hábito de manter diários vem desde a adolescência. Sempre que penso em começar um livro novo, compro logo um caderno, que passo a carregar na bolsa, depois abro um documento no computador. Faço anotações, rascunhos, inicialmente à mão, guardo trechos no celular também, e depois passo para o computador.
De onde vem suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativa?
Meu processo criativo envolve o cultivo de uma sensibilidade aguçada, a exploração de sentidos e desvios, experimentação e precisão, risco e artifício. Sou guiada pelos transbordamentos, pela necessidade de trazer à superfície essa substância ardente e misteriosa, a partir do trabalho entre feeling e linguagem, criando um animal vivo e coeso: o poema. Além disso, estou sempre consumindo arte, alimentando minha escrita através de leituras, imagens, sons, sensações e vivências, num exercício de fusão arte-vida, revelando e elevando tudo à máxima voltagem poética. Escrever um poema é lapidar um delírio, fazê-lo brilhar como um diamante selvagem.
O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesma se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
Ao longo dos anos, adquiri uma maior consciência sobre linguagem e método. Através do estudo e das leituras, pude aprimorar e explorar vários elementos como concisão, rigor, sublimação, buscando o equilíbrio entre energia catártica/faísca criativa e organização do pensamento, interpretação e tradução do abstrato/subjetivo. Aprendi, como diz João Cabral de Melo Neto, a dar “à vertigem, geometria”. Eu reafirmaria o de sempre: “Continue, insista, este é seu caminho, deixe que a poesia inunde e incendeie sua vida.”
Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ainda não existe?
Trabalhar com performance e teatro, me aprofundar nisso, gosto do entrelaçamento das artes, desse diálogo potencializador entre poesia, música, teatro. E também quero ministrar oficinas de criação, explorando várias linguagens e temas. Gostaria de ver as poetas estrangeiras que admiro publicadas em edições brasileiras, Joyce Mansour tem uma obra extensa e nenhum livro traduzido para o português, assim como Anne Sexton.
Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?
O fogo criativo é como a vida: sempre inesperada, essencialmente voraz e misteriosa. Os versos tecem suas voltagens em meu espírito, sou um rascunho vivo de inquietudes e quimeras. A trama poética é palpável, porém imprevisível e perigosa, e permanece violentamente entrelaçada às minhas vivências. Os poemas costumam fluir por longos períodos e convergem em livro, o mote e as linhas de força da obra nascem de um processo insólito de revelação sensorial. Na arena da linguagem é necessário domar os touros tautológicos, evitar as armadilhas retóricas, tecer trapaças semânticas, detonar os ilusionismos, deslocar, subverter, erguer novos mundos. O mais delicioso é ser feiticeira da palavra, inventar temperos, experimentar poções e beberagens, mergulhar voluptuosamente no vórtice, flanar em vertigem, bruxa e bailarina entre labaredas.
Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?
Não costumo estabelecer cronogramas para a escrita, gosto da fluência, dos assaltos poéticos e acasos objetivos, da vivência experimental atiçando a verve. Porém a rotina turbulenta e as tarefas burocráticas estão sempre querendo me engolir e muitas vezes simplesmente não há tempo suficiente ou contexto favorável para produzir. Quanto aos projetos, é indispensável o planejamento e a definição de prazos, gosto de elaborar, dialogar e realizar em parceria.
O que motiva você como escritora? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?
Minha pele é constantemente assaltada pela poesia, o corpo percebe-a e atreve-se a decifrá-la através da linguagem, a febre é sempre ágrafa e feroz, é necessário ir além da mimese, tornar-se demiurga, alquimista, moira. A fome pela escrita nasce como desígnio perene, manifestação de júbilo e terror, gozo e agonia, incêndio e possessão, delírio e volúpia.
Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Alguma autora influenciou você mais do que outras?
O mergulho em si e a fusão alquímica entre o corpo da poeta e o corpo do mundo é crucial para encontrar e fazer reverberar a sua voz. Encontro-me nessa busca incessante, mantenho sempre o faro atiçado e as armas engatilhadas. Escrevo para vociferar o sonho, ritualizar as fomes, atingir o cerne, sangrar e amar a selva de si. Sempre estive próxima à literatura feita por mulheres, mantenho-me irmanada com a poesia de autoras como Sylvia Plath, Joyce Mansour e Hilda Hilst. Busco fortalecer a autoria feminina através do empoderamento e protagonismo de escritoras contemporâneas, essa é a proposta do Sarau Selváticas, projeto que organizo junto a Aline Cardoso, desde 2017.
Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?
Ariel, da Sylvia Plath, a poesia de Sylvia sempre me causou encanto e terror, pela força, mistério, beleza e tormento. Os poemas em Ariel são impiedosos delírios lapidados, gritos rasgados de amor, febres líricas alucinógenas.
Mulheres que correm com os lobos, da Clarissa Pinkola Estés, um grimório poderoso e oracular, obra magna para mulheres.
Gritos, rasgos e rapinas – 23 poemas de Joyce Mansour, escrevi sobre o livro aqui.
São 23 poemas que deixarão o leitor minimamente abismado, ao folhear o livro, uma perturbação logo toma corpo e se converte em pânico, deleite, delírio ou repulsa, pela ferocidade com que Joyce investe contra o imaginário cristão e patriarcal, subvertendo, transgredindo e demolindo totens religiosos e morais, através de uma imagética furiosamente surrealista e sacrílega, repleta de um erotismo visceral, cru e místico.